Malaquias (16)
Ainda a caminho da Cidade Baixa, ainda a rever matéria dada para tentar abstrair-se e atenuar o choque que a visão daquele buraco infecto e retorcido causava na massa folhada e fofa do seu cérebro, pouco certo de que o estratagema estava a impedi-lo de se sentir enlouquecer quanto mais descia o viaduto número sete, Malaquias lembrava-se ainda, e porque não haveria de se lembrar visto que isto acontecera escassas horas atrás, de ter ligado ao seu contacto na Telefónica para lhe moer mais uma vez o juízo com o pretexto de querer novas informações sobre o mesmo número de telefone da outra vez, o que o Palhaço publicitava juntos com os seus serviços de “animador de festinhas de aniversário da pequenada” nas Páginas Amarelas, o desplante do tipo, e a conversa decorrera mais ou menos nestes modos:
“Fala Malaquias.”
“Que é feito de ti?”
“Quero informações sobre o número que te dei, aquele da outra vez.”
“Do tal Palhaço? Estás de volta a esse caso?”
“Estou. E quero a morada que corresponde a esse número.”
“Se bem me lembro, era um número de telemóvel. Como sabes, esses não têm morada. Posso é fazer um rastreio ao sinal e blah blah blah jargão técnico blah blah blah quasi-impenetrável dialecto caixa-de-óculos blah blah, se quiseres, blah.”
“Isso para ontem.”
“Blah blah blah blah blah não é assim, blah blah tens que seguir os procedimentos do blah blah blah referência esperada à casa da Joana, blah blah blah blah linguagem burocrática da treta com vista a empatar o normal discorrer da vida de um gajo, blah blah blah, estás a ver, não estás?”
“Isso para ontem, por baixo da mesa, ou apareço-te em casa para espancar a tua avozinha.”
“A minha avozinha, que Deus tem?”
“Vou ao cemitério, exumo a senhora, espanco-lhe os restos mortais até lhe tirar a poeira toda do esqueleto.”
“Cremámos a gaja.”
“Jogo à bola com a urna dela se não me fazes o que te peço.”
Depois de reiterar os seus blah blah blahs, impregnados em lamúrias que mais não eram que uma derradeira e impotente tentativa de resistência por parte do contacto de Malaquias na Telefónica, o mesmo prometeu que ia fazer os possíveis para satisfazer as necessidades telecomunicativas do detective e dessa maneira evitar que o ataúde portátil da razoavelmente estimada por todos avozinha sofresse as amolgadelas previsíveis e derramasse os preciosos conteúdos acinzentados à força dos pontapés à campeão distrital de futsal que Malaquias, o playmaker da equipa dos Homicídios que se juntava aos fins-de-semana para humilhar a formação da brigada de trânsito, prometera. Malaquias desligou o seu telemóvel e foi tratar de arranjar um carro que desse menos nas vistas e dum almoço que não fosse tão sumptuoso que depois não lhe permitisse caber no supracitado veículo, ambas as missões admitidamente impossíveis mas, para Malaquias, o Extraordinário, exequíveis e, enquanto as exequitava, alarme, alarme, essa palavra não existe, veio de lá com um Fiat Uno cor de abóbora menina e a barriga cheia de empadas de galinha, arrozinho de batata doce, salsichas frescas embrulhadas em repolho, que deixou à beira do prato, o repolho, não as salsichas, essas desapareceram-lhe da travessa ainda o empregado que as viera trazer não tivera tempo de lhe virar as costas para ir buscar os pratos seguintes, tudo regado com Coca Cola, adequadamente light, que era para não abusar, embora fosse tarde demais para isso, e já se fizesse tarde, e o tipo da Telefónica demorar em ligar-lhe a dizer que o sinal do telemóvel se perdia no nevoeiro da Cidade Baixa que reduzia a mais moderna das telecomunicações, tipo até a nova geração de blah-blahs que acabava de ser lançada, a meros tinidos impossíveis de localizar com precisão e que por conseguinte, o melhor que se podia arranjar no que tocava a situar o tal Palhaço através do telemóvel era uma área de dois quilómetros quadrados no centro da Cidade Baixa, o que já não era nada mau, Malaquias viu-se forçado a concordar, e a arrotar, e a agradecer com tacto ao contacto, a dizer-lhe que lhe ficava a dever um favor, e o contacto a aproveitar logo a deixa, não era parvo nenhum, para cobrar de imediato esse favor devido na medida em que Malaquias não devia voltar a telefonar a pedir-lhe favores daqueles, ou dos outros, nunca mais, porque blah blah blah blah.
Malaquias, o Embuchado, calçou o Fiat Uno e fez-se à estrada com os blahs do outro ainda a ecoar no espaço de soberba acústica que se criava entre as orelhas mata-moscas do seu rosto vermelho-indigestão, arrotando o gás da água suja do capitalismo e promessas de tratar da saúde ao Palhaço, já faltara mais para que o doutor Malaquias fizesse uma visitinha ao domicílio, aí vinha ele, não perdia pela sua demora, ao contrário de um dos sobrinhos, que perder, e muito, e ambos os cunhados também, nomeadamente a vida, mas o que lá ia, pronto, é que lá ia mesmo, e agora ele ali vinha, envergando um utilitário três números abaixo do seu estrada fora, subindo a colina para daqui a nada voltar a descê-la, determinado em olhar para a frente, para o futuro, para salvar o que ainda se podia salvar, que era um dos gémeos, com ou sem, e, mais importante ainda, tratar da saúde ao Palhaço, auscultar-lhe o coração ao ouvido depois de o arrancar com as mãos, examinar-lhe os pulmões depois de os arejar com chumbo grosso, ver-lhe o estado das amígdalas depois de lhe enfiar o punho pela goela abaixo, escabichar-lhes os olhos depois de os morder com as dentolas que tinham acabado de triturar uma perna de borrego inteira, batatinhas e salada de alface, fazer-lhe coisas à laia de medicina moderna que muito sobrolho espevitariam aos defensores dos Direitos Humanos, mas o Palhaço não era humano, não estava coberto pela legislação, era um assassino, um canibal, má rés e sem redenção possível, a não ser a morte, violenta se possível, e, sim, Malaquias achava que era possível, Malaquias achava que era mesmo muito provável, a cura de todos os males, excepto o acne, tinha o remédio para as aflições muito próprias do Palhaço, remédio santo, abre a boca e fecha os olhos, diz “aaaahhh” ao Malaquias, diz “trinta e três” a Malaquias, um senhor Doutor.