Mãe
Tivera dois filhos, aos quais batizou como Caim e Abel. A natureza jamais a dotara das belas feições e do suave entalhe da mulher que se esconde sob o tênue véu e inspira os poetas na sua beleza; muito ao contrário, Maria era uma dessas mulheres fortes, com um corpo de formas retas enormes e uma expressão dura que a vida de labuta lhe havia entalhado nas faces. Se por um lado, a beleza jamais lhe fora o principal atributo, Maria tinha a seu favor a maestria nas tarefas domésticas: na costura, os tecidos, a agulha e linha deslizavam, obedientes, sob a habilidade natural das grossas mãos de sua senhora; a limpeza, impecável, vigiada ininterruptamente pelo olhar tirânico e incansável que a todas as frestas alcançava e a severidade inquebrável quando lidava com os empregados. Parecia nascida para o controle, se lhe depositassem o universo nas costas, quem seria capaz de duvidar que Maria o administrasse tão bem ou melhor que o próprio Deus?
A antiga educação das famílias tradicionais rezava que a mulher era nada mais que realizadora das tarefas para as quais se preparava bem cedo; se houvesse uma escola para esta graduação, Maria seria aprovada com louvor: não havia situação do lar, por mais complicada que pudesse parecer, da qual Maria não soubesse a solução e, com a tranqüilidade do maestro mais experiente, sem a expressão de esforço, conseguisse o sucesso, escarnecendo ainda das situações com um riso superior de ferro.
Quando se fez mãe e perdeu ainda bem cedo o marido, isso não a abalou. A morte do marido era uma adversidade que ela mesma cuidou em resolver, negociando o enterro e entregando à terra os despojos... agora era mãe, não tinha o direito de se desesperar – e nem o faria. Encarou a perda com a mesma dureza de sua rígida educação: não chorou, não pensou nem se lamentou: viveu como se nunca tivesse tido marido, como se tivesse participado sozinha da gênese dos filhos... O amor? Não havia amor no casamento: uma família era uma instituição e nada mais.
Cresceram as crianças, muito bem educadas, sob a sombra materna. Com o passar do tempo, entretanto, os seres crescem, e a triste verdade é que a mãe é um objeto intrínseco, porém, descartável, participante apenas da formação e do molde de suas criaturas, que partem inevitavelmente.
Maria, já prevendo esse momento, cultivou com maestria no coração de seus filhos uma estranha semente: uma espécie de amor demasiado e nocivo, que preenchia todos os espaços de suas vidas... Se a mãe dedicava-se por inteiro aos filhos, porque não podiam eles dedicar-se também a ela?
A mãe era onipresente: não se sabe como, tinha conhecimento de todos os passos dos filhos na escola. Nada se sucedia sem seu conhecimento, nada que se fazia sem sua permissão era digno. Quando ela dormia, tudo dormia; quando acordava, tudo acordava junto com ela... nada de relevante se sucedia longe de sua presença. Esse amor era aterrorizante: Caim e Abel cresceram tolhidos e trêmulos, sempre receosos em desagradar sua poderosa mãe.
Já homens formados, Caim e Abel eram respeitados em seus empregos. A barba potente que lhes crescia no rosto e a pose aristocrática causava-lhes uma aura de respeito por onde quer que fossem. Os homens, contudo, dobravam-se diante da mãe, que os vinha ver no trabalho quase todos os dias. Os mesmos olhos frios e resolutos dos homens que guiavam a empresa e seus funcionários, transformavam-se diante de sua mãe. A voz olímpica de Caim tornava-se a voz submissa de um escravo diante de seu deus, ao qual ele apenas tinha a permissão de responder “sim, senhora”, com os olhos fitos no chão. Abel, acostumado a administrar com punho de ferro a empresa, tornava-se inútil diante do olhar crítico e cruel de sua deusa materna... quase desaprendendo a falar, gaguejando, incerto das respostas... O que sentiam era amor? Suponho que a humanidade ainda não tenha inventado nome para essa semente que fora implantada nos corações dos meninos... um híbrido exato entre o amor e o medo irracional que sente a alma alquebrada desde os alicerces.
Na casa pairava a sombra de Maria. Esta não descansava nem mesmo quando estava descansando... a sua aura permanecia sempre e, por mais que estivesse ausente, o seu estar era uma força maior em todas as almas que habitavam sob o seu teto, sob o seu universo. As vidas que Maria havia concedido aos filhos eram sua obra, sua propriedade, portanto, os filhos eram seus e, ao pronunciar a frase “meus filhos” ela dava uma entonação especial ao pronome realmente possessivo... “Meus filhos”... fazendo questão de dizer, sem palavra alguma, que era seu direito, e deste direito, jamais se poderia escapar.
Havia uma força apenas que era maior que a força de Maria: o tempo e a doença... agiram ambos com a mesma paciência do vento que corrói as montanhas de grão em grão. A mãe foi ficando velha, mais fraca, sem nem perceber... esta fraqueza lenta e gradativa não passou despercebida aos olhos dos filhos, que se sentiram um tanto quanto aliviados, vendo ao menos uma brecha humana na couraça de sua mãe.
Um dia, sem alarde algum, Maria morreu. Os filhos sentiram um pesar verdadeiro, embora se envergonhassem do alívio e da sensação de liberdade que jamais tinham sentido em suas vidas até agora e que nunca ousaram revelar um ao outro.
Certa noite, porém, na treva, o espectro de Maria passou a assombrá-los, surgindo sempre após o soar das doze badaladas... Caim matou-se um ano após a morte de Maria e Abel, louco e desesperado, morreu tuberculoso, doente e delirante numa fria cela de hospício.