A Ausência
A Ausência
Por Ramon Bacelar
Abalado pela impureza de um recente pesadelo, seu mundo onírico agora vacilava. A ameaça ganhou forma, intensidade e momentum, mas antes de investir contra sua essência interior, foi impedida pela luz que penetrava pela janela e acariciava suas pálbebras num defensivo gesto de suave alerta: abriu os olhos.
Com as retinas absorvendo a imaculada brancura do teto, Luísa meditava e questionava: qual o significado? Não era superticiosa, nem dada a interpretações de herméticos simbolismos oníricos, mas a sensação gerada em seu universo de sonhos invadiu o mundo desperto e agora persistia como um incessante badalar, um sussurro de alerta. Respirou fundo, meditou ... Como uma fotografia revelada em tempo acelerado, identificou a sensação com transparência cristalina: ausência.
Um vago calafrio percorreu seu corpo escultural; estendeu o braço num gesto ansioso, pegou o fone:
-Lídia?-A voz saiu com um temor velado e reprimido.
-Luísa? Tudo bem?-Perguntou com voz de seda.
-T-tudo.
O efeito balsâmico da voz familiar lhe trouxera por um breve instante paz de espírito : Lídia não estava ausente... e nem a ausência: a sensação continuava.
Com crescente ansiedade revirou a gaveta do criado mudo e ao lado do envelope papel pardo com o resultado do teste de gravidez de quatro meses, encontrou a aliança de noivado. Aliviada, como se para reforçar a sensação de bem-estar, direcionou o olhar para o bouquet de rosas que Cláudio lhe tinha enviado: ondas de contentamento e felicidade a contemplavam e lutavam para ganhar domínio em seu espírito, mas forças opostas, a força oposta, espreitava paciente e pulsava com desvelada ansiedade: ia dominá-la.
Levantou-se da cama e buscou abrigo nas certezas materiais ao seu redor: acima da penteadeira, preso em uma desgastada moldura enferrujada, os olhos do seu pai apazigaram-na com seu olhar de ternura e desmedida sabedoria. Com passos leves e cautelosos abriu o guarda roupa e foi tragada pelo breu e cheiro de naftalina; acostumada ao negrume, o vasculhou com olhar inquisitivo e concluiu que estava em ordem, a ordem exterior. Não era o tipo de certezas que procurava, certezas pouco confortadoras e nocivas à ordem do seu mundo interior, certezas que só confirmavam a existência da sensação que a atormentava : a ausência respirava.
Triiiimmm... a chamada a arrancou do seu torpor.
-Luísa, está bem? Porque desligou?
- Desculpe Lídia, a ligação caiu-Mentiu- Ia ligar para o Cláudio e caiu no seu número, mas como você retornou...- As palavras, dominadas pelo medo, em contato com a saliva grossa e pegajosa, saíram pesadas, reprimidas e carentes de vontade própria.
-Luísa, por favor... estou indo aí.
-Não!!-Bateu o fone.
Não era ela, nunca tinha falado desta maneira com sua melhor amiga. Era como se gradualmente perdesse domínio dos seus movimentos, vontades e emoções, seu mundo interior estava abalado: a ausência tinha uma nova morada.
Uma sede repentina a obrigou a ir a cozinha. Pegou a caneca e bebeu, bebeu...não ficando saciada continuou a beber, a sede aumentava exigia, e Luísa bebia...bebia..suava...suava... em movimentos espasmódicos levava a caneca a boca e a água corria...corria...escorria... e ela bebia e a ausência persistia: a água não preenchia. Bam, bam... um novo som incomodou seus tímpanos mas não o identificou. Involuntariamente a caneca vacilou em suas mãos trêmulas e foi de encontro ao chão; a estridência lhe castigou os tímpanos e somado ao caos disforme dos estilhaços no chão invadindo sua retina, percebeu o absurdo de sua atitude: ia vomitar.
Bam, bam...
Ajoelhada de cabeça baixa no banheiro, contemplava serenamente a trajetória do vômito cristalino na junção dos azulejos; sentia-se fraca, tremores e calafrios exploravam seu corpo, se deu conta que o suor a dominava: precisava de um banho.
Bam, bam..
O barulho insistia, irritava, a ausência persistia, dominava. Atravessou o banheiro e de encontro ao espelho foi tomada por um olhar de horror e confusão: seu olhar a questionava. Seus olhos, tomados de puro pavor, a alertaram para a realidade de sua condição. Olhou-se do busto para baixo e a ausência finalmente tomou forma, se fez presente:o bebê não existia, a ausência RIA!.Sua face respondeu ao vislumbre com contorções e inchamentos como se seu rosto fosse despedaçar: AAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHH meu bebê!!!! Explodiu o horror da realidade em sua mente e face na forma de um grito agonizante, arremessou-se no espelho de cabeça, estilhaçando a verdade em infinitas partículas vermelhas transluzentes.
Bam... bam...
Bam...bam
Bam...bam
Bam...BLAAAAAAAMMM
Era como se o rasgo sonoro penetrasse o tecido temporal: a Realidade da Realidade.
A porta cedeu e Lídia foi ao socorro da amiga: de face encharcada e olhos escancarados, Luísa, recém resgatada do pesadelo pelo abalo sonoro, em posição fetal no colchão úmido, sussurava debilmente uma canção de ninar, enquanto acariciava suavemente os delicados pontos de costura que ia do busto ao umbigo: meu beb... fechou os olhos.
FIM
Ramon Bacelar é contista, crítico e ensaísta. Mantém um blog sobre cinema, quadrinhos, literatura e cultura underground (Maquinário da Noite: www.maquinariodanoite.blogspot.com) e publica contos no Recanto das Letras: http://www.recantodasletras.com.br/autores/ramonbacelar e em seu site pessoal Miragens Ofuscantes: http://www.miragensofuscantes.blogspot.com