O RIACHO

Sempre acreditei que a maioria das pessoas desperdiça boa parte de suas vidas esperando que algo grandioso venha a lhes acontecer. É verdade que uns e outros realmente acabam sendo agraciados por algum tipo de dádiva, enquanto outros a recebem e não se dão conta. Pode ocorrer, também, o fato de um grande número nada receber. Entretanto, vez ou outra, surge aquele indivíduo que se torna uma exceção dentro da realidade. Não por ter sido brindado pela essência da sorte, mesmo porque, sorte e azar, dádiva e maldição, são apenas palavras que representam vertentes flutuantes passíveis de interpretação. Quando digo exceção, me refiro a algo que está fora dos padrões da normalidade, algo que não se pode conquistar pelo simples fato da falta de perspectiva acerca de suas propriedades.

Baseado nesse pensamento, posso afirmar que os fatos que me abraçaram podem perfeitamente se encaixar na categoria de excentricidades da vida. Desde então, tudo mudou. A lembrança daquela noite ainda está viva em minha memória, e aqui deixo o relato do ocorrido conforme me recordo, exatamente do jeito que aconteceu.

Eu estava no meio de uma viagem, uma empreitada tão usual, longe de ser a primeira ou a última, pelo menos de acordo com o meu julgamento. Meu objetivo era chegar aos pés da cordilheira e de lá alcançar o pico mais elevado da região. Entretanto, minha intenção esbarrava no fato de que o conjunto de serras era margeado por uma densa área de mata nativa. Existia apenas uma trilha por entre a vegetação, sem transporte rotineiro. Com isso, fui obrigado a esperar dois dias até conseguir um modo de vencer os infindáveis quilômetros através da floresta.

Hospedei-me numa pousada, o local estava cheio, outros aventureiros aguardavam a chance de conhecer os contornos incomparáveis de tão decantado recanto. Desta forma, eu teria companhia durante as longas horas do trajeto. Nosso transporte nada mais era do que um vagão sobre rodas preenchido por assentos duros e perigosos, extremamente desconfortável e puxado por um trator em péssimo estado de conservação. Mas, como não havia outra forma de vencer a distância, embarcamos no incomum veículo.

O início do percurso mostrou-se deslumbrante. A vegetação viva e exuberante saltava aos olhos. Entretanto, com o passar das horas, o impacto inicial foi gradativamente sendo substituído por um enfadonho tédio. Nada enxergávamos além da ininterrupta sucessão de árvores. O som do riacho há muito havia sido substituído unicamente pelos estrondos do motor à frente da pesada máquina. De maneira surpreendente, alguns conseguiam cochilar, mesmo sacudidos pelos inconvenientes solavancos proporcionados pela irregularidade do solo barrento.

Adentramos muitos quilômetros pela mata, até chegarmos a um ponto onde já não era possível perceber o início da trilha, tampouco seu final. A essa altura o cansaço incomodava muito mais do que os insistentes insetos. Mas, como eu disse, ventura e revés são contornos perceptíveis a partir da ótica que lançamos sobre eles. Mediante uma análise superficial, estar numa situação como essa poderia ser extremamente desagradável, mas acredite, ainda não era...

As pessoas que cochilavam foram acordadas por um balançar mais violento e anormal. Alguns protestaram, mas o movimento súbito não fora proporcionado pelo condutor, nem pelo terreno acidentado. Para nossa infelicidade, o motor do trator acabava de emitir seus últimos suspiros.

Permanecemos em silêncio enquanto o condutor, um sujeito mal encarado e de barba por fazer, levantava o capô e analisava o ocorrido. Ele não parou de mascar fumo durante toda a operação. Então, quando ele baixou a tampa de modo desanimado e sacudiu a cabeça em negativa, tivemos a certeza de que problema era maior do que o imaginado.

O tratorista estabeleceu contato via rádio com o vilarejo, em seguida nos informou que o auxílio só chegaria na manhã seguinte. Assim, não restava outra opção que não fosse esperar. Logo a noite chegou e tudo ficou quieto, um silêncio tão absoluto que chegava a incomodar. As pessoas nada falavam, pareciam estar mergulhadas numa amargura sem explicação. A única frase que o condutor do trator disse, antes de se recolher num canto, foi para não nos servirmos do que havia na mata. Eu sinceramente não entendi muito bem o que ele quis dizer com um conselho tão sem cabimento como aquele, mas, pouco importava. Eu estava muito bem abastecido com as provisões em minha mochila.

Acordei com o ruído de gravetos secos sendo partidos. Levantei. Minhas costas doíam bastante. Olhei ao redor, todos dormiam. A escuridão a nossa volta era absoluta. Então, espalhei os olhos da lanterna de um lado para o outro. Tudo em aparente calma. Mas foi só eu deslizar o botão com o polegar para que inúmeros pontos cintilantes surgissem em minha frente. Gritei, e minha voz alertou os demais. Num ato reflexo me joguei no chão, e essa foi a melhor atitude que eu poderia tomar. Com as costas na relva, vi um mar de órbitas vermelhas dançando sobre o vagão onde instantes antes eu estava.

Mesmo ferido me arrastei pelo chão e ganhei a mata. O som distante de gritos e rosnados chegava aos meus ouvidos enquanto eu corria às cegas. Continuei a correr mesmo quando meus músculos começaram a clamar por piedade. A essa altura o silêncio só era quebrado pelas rajadas de minha respiração ofegante. Só parei quando uma raiz traiçoeira se enlaçou em minhas pernas, levando-me ao chão. Lá permaneci, chorando com o rosto grudado na vegetação úmida, enquanto, em desespero, apertava a terra com os dedos.

Mesmo contra todas as probabilidades, adormeci. E quando meus olhos se abriram, um novo dia se mostrava. Eu estava exausto, ferido, perturbado, e sem a menor idéia do que fazer. Minha mochila ficara no vagão. As árvores eram tão altas que era impossível perceber até mesmo o topo da grande cordilheira. Meu senso de direção estava ausente. Nem mesmo uma bússola me fazia companhia. Eu estava perdido.

Caminhei um busca de algo que me fizesse encontrar esperança, quem sabe a trilha não aparecesse diante de mim? Entretanto, conforme eu andava, essa possibilidade se mostrava cada vez mais distante. Logo a noite chegou. E outra manhã. Então, novo anoitecer. Uma sucessão torturante e interminável. Não tardou para que eu perdesse a noção do tempo. A fome e a sede me dominavam por completo, atrapalhando o livre raciocínio.

Quando eu já achava que não haveria salvação, ouvi o som de água corrente. Venci alguns arbustos e me deparei com um riacho. Não acreditei no que vi. De sede eu não morreria. Não sei se foi por obra da área mal iluminada pela lua, mas as águas me pareceram escuras, avermelhadas, barrentas, talvez. Mas isso pouco importava. Mergulhei a cabeça no leito do riacho, sorvi com sofreguidão aquele líquido amargo. Só após alguns minutos me dei conta de que não estava só naquele local. Na outra margem, incontáveis pontos rubros refletiam a luminosidade ao toque pálido do luar.

Estremeci. O grupo formado à minha frente parecia estar em plena refeição, pois eu ouvia o perturbador estalar de ossos sendo partidos. Eu bebia da sua fonte e isso poderia significar um problema imensurável para mim. Lentamente me afastei sem tirar os olhos das esferas cintilantes, até alcançar novamente os braços da floresta. Então, uma vez coberto pela vegetação, corri. Mesmo sem forças, eu corri. Eu sabia que os integrantes daquele grupo sairiam em meu encalço, mas, como se quisessem me confrontar, não vieram.

Eu gargalhava no meio da mata. Achava graça dos caprichos da natureza. Eu, ali, indefeso, uma presa fácil, e, de maneira incoerente, esnobado. Aos poucos o ritmo dos meus batimentos cardíacos voltava ao normal.

Segui em direção oposta ao curso do rio, mas não ousei arriscar uma caminhada a céu aberto e me mantive oculto pelas folhagens. Apesar de não ser muito largo, o riacho acabara por mostrar-se extenso, dessa forma caminhei por um bom tempo até ser vencido novamente pelo cansaço. Assim, recostei-me no tronco de uma árvore a fim de renovar as forças, mas acabei tomado pelo sono.

Acordei com o cano de um rifle a me sacudir. Antes que eu pudesse me assustar, o velho mateiro, que surgira como uma assombração, me pediu calma. Ele fez sinal com o braço para que eu o seguisse. Atravessamos um declive e chegamos a uma cabana de madeira. Durante o trajeto, o homem nada disse. Mas, uma vez dentro do abrigo, como se precisasse de plena segurança para fazê-lo, ele se apresentou. Expliquei a ele que estava perdido, tentei falar do incidente, mas ele me cortou, como se não quisesse saber o conteúdo do meu relato. Então, me contive. Ele me ofereceu água e comida. Tomei a ajuda em minhas mãos e devorei o alimento como o faminto que eu era. O velho nada dizia, apenas observava a voracidade dos meus atos.

Meu estômago doía, parecia ter se acostumado à inanição e naquele momento clamava contra os invasores eu seus domínios. O dia clareava. Quando terminei a refeição, o homem de contornos robustos perguntou meu nome, onde prontamente respondi, e então, ele me fez uma outra pergunta, mas esta fora devastadora, a indagação arranhou meus tímpanos como vidro. O tom naquelas palavras me soou como uma acusação. O sujeito queria saber se eu havia me servido de alguma coisa da floresta. Balancei a cabeça em afirmação, disse-lhe que havia bebido da água do riacho.

Ele não quis saber mais nada. Bateu na rústica mesa com as mãos espalmadas. Vociferou uma orientação de como encontrar um caminho de volta ao vilarejo e praticamente me expulsou de sua casa. Segui pela trilha indicada até um outro riacho. Só então percebi que o anterior corria num sentido ilógico, oposto às montanhas. Mas este, onde repousava a canoa oferecida pelo mateiro, se originava das agora visíveis serras, como deveria ser, e suas águas eram transparentes e convidativas.

Remei num ritmo cadenciado e tranqüilo. O riacho descrevia caminhos improváveis, sinuosos, porém plácidos e horizontais através da vastidão verde. Parecia que aquele recanto fazia questão de se manter afastado. Como o mateiro havia dito, o curso d’água terminava numa queda. Então encostei e amarrei a canoa. Olhei pela cachoeira, cujo final ostentava um lago, e beirando a formação estava o vilarejo, conforme prometido. Finalmente a salvação!

Chegando à vila, as pessoas pareciam me ignorar. Senti vontade de argumentar sobre o ocorrido, mas os olhares reprovadores trataram de desfazer minhas intenções. Estava claro que eu não era bem-vindo e que nenhuma palavra precisava ser dita. Retirei minhas coisas da pensão na qual estava instalado e parti para a estação. Por sorte o trem para fora daquele lugar passaria em pouco tempo.

Uma hora depois eu estava acomodado, seguindo em viagem. Dois dias depois, eu estava em casa, mas não sem ter de enfrentar uma série de baldeações para tal. O tempo passou e pouco a pouco fui esquecendo a terrível situação na qual estivera mergulhado. No entanto, a tranqüilidade começou a me abandonar exatos vinte e nove dias depois. Eu estava particularmente cansado naquela noite, sem apetite e mergulhado em desânimo. Ao chegar em casa despenquei num sono profundo e único, uma experiência que jamais tivera. No entanto, a letargia não viria a durar muito. Acordei com o corpo ardendo em febre. Calafrios me dominavam. Sede. Uma sede intensa corroía minha garganta. A dor em meu estômago era indescritível, eu não ficaria surpreso se minhas próprias vísceras estivessem sendo consumidas.

Cheguei à garagem da melhor maneira que pude. Só Deus sabe como consegui vencer a distância até uma clínica médica. Passei essa primeira noite do período de encontro, expressão que encontrei para definir a fase de turbulências na qual mergulhei, absorvido por toda sorte de medicamentos. Permaneci durante toda a noite, e também boa parte da manhã seguinte, sedado e recebendo soro na veia. Tenho certeza de ter sido invadido por horríveis pesadelos, mas não consegui definir a lembrança acerca deles.

Voltei para casa e passei o dia dormindo. Atribuí ao poder dos sedativos a minha incômoda sonolência. A segunda noite chegou e com ela os mesmos distúrbios, não, não eram os mesmos, posso afirmar que a situação piorara consideravelmente, pois somados aos açoites da dor vieram a agitação, as alucinações e uma incompreensível sudorese, além da fome torturante e da sede intensa. Em meio ao caos, tive a certeza de que aquilo que acontecia comigo não poderia ser tratado por médicos. Corri para o chuveiro e deixei a água gelada escorrer pelo meu corpo. Abri a boca para que as gotas pudessem trazer alívio à minha garganta. Em vão. Nenhum alento me abraçou. Corri para a cozinha, arfando sem parar. Em minha busca por conforto, joguei no chão quase tudo que estava contido na geladeira. Agarrei as sobras de um frango e levei-as à boca como um insano. Eu mastigava a carne cozida e fria como um animal, despejava garganta abaixo o conteúdo de uma garrafa de suco industrializado. Quase imediatamente regurgitei tudo o que acabara de engolir. Gritei e esmurrei meu próprio rosto. Chutei a porta da geladeira, que pendeu para o lado mediante a violência do golpe. Meus olhos faiscaram quando percebi uma travessa preenchida por cubos de carne bovina resfriada. Sem pensar muito, comecei a jogar os pedaços na boca, de forma automática, quase não mastigava. Mesmo misturada ao gelo, pude sentir a essência daquilo que precisava. Após alguns minutos, eu estava jogado no piso frio da cozinha, abraçado às minhas próprias pernas, chorando pela insanidade que acabara de cometer.

Abri os olhos. Eu estava no quarto. Não me lembrava de ter saído da cozinha. Um tremor me dominava dos pés à cabeça. O digital do relógio me informava que já era o dia seguinte, ou melhor, a noite seguinte, a terceira noite. Tudo indicava que eu havia passado todo o dia dormindo. Eu estava um pouco melhor no que dizia respeito à aflição, embora a febre ainda se fizesse presente, e com ela o suor, a fome e a sede. Meu corpo estava fragilizado, mas eu sabia que não encontraria satisfação na simplicidade dos alimentos. Mesmo contra o bom senso, perscrutei o interior da geladeira em busca de combustível para minha loucura, mas não havia nada que apetecesse meus anseios. Arquitetei a idéia de sair para comprar algo. Então, caminhei lentamente para a saída e ganhei o quintal. Mas antes que eu pudesse chegar ao automóvel, aconteceu algo terrível, a certeza de que os alicerces de minha vida estariam para sempre alterados.

Senti um odor que me fez salivar. Segui a orientação dos meus sentidos e cheguei a um beco. Parecia absurdo, mas o magnetismo que me chamava vinha de dois gatos que brigavam por restos de lixo. Não sei como não perceberam a minha presença, mas antes que se dessem conta, já estavam sob meu jugo. Eu sentia prazer em apertar aqueles frágeis pescoços. Os animais se debatiam enquanto em caminhava de volta para casa. Uma vez a salvo de olhares recriminatórios, arranquei a cabeça de um e comecei a sorver apressadamente os fluídos do seu corpo, enquanto deixava o outro bicho correr pela casa numa tentativa inútil de escapar.

Quarta noite do período de encontro. Mais uma vez não vi a luz do dia. Talvez essa tenha sido a noite mais difícil de todas. Percebi num canto do quarto as cabeças felinas. Nem sinal dos corpos, mas eu sabia onde estavam. Minhas articulações praticamente não existiam. Era impossível mover qualquer músculo. Permaneci deitado na cama, meu corpo definhava. Não havia unhas em meus dedos, não havia qualquer fio de cabelo em minha cabeça. Minha boca estava seca e vazia, pois nela nenhum dente se fazia presente. Era perceptível a mudança em meu corpo. Eu sentia o movimento de microondulações sob minha pele. Meu tórax se movia lentamente, não havia dor, eu estava anestesiado. Gotas de sangue brotavam dos poros dilatados. Esforcei-me para voltar a dormir e não ter de sofrer com tamanha agonia, mas o sono tardou a chegar e permaneci toda a noite em um pesadelo real.

O som estridente da campainha me acordou na quinta noite. O ruído insistiu por algum tempo até que ouvi, isso mesmo, ouvi os estalidos da chave ao girar na fechadura. Desesperei-me diante da situação. Só poderia ser uma pessoa, a única amiga que eu tinha, aquela que não pôde me acompanhar na viagem à cordilheira, mas que sempre estava e se preocupava comigo. Ela possuía as chaves da minha casa e certamente estava preocupada com o meu súbito desaparecimento. Não, ela não poderia me ver daquele jeito. A carne voltava a envolver meus ossos, mas a pele que me revestia estava modificada, era espessa e escura. Minhas unhas voltaram, mas também eram negras como a noite. Eu não sentia dor, nem tremores ou vertigem. Somente a fome e a sede permaneciam, e essas, permaneceriam para sempre.

Coloquei-me de pé. Eu ouvia seus passos, sua respiração e até mesmo seus batimentos cardíacos. Caminhei em seu encontro. Evitei o contato visual com o espelho do corredor, pois sabia ser impossível reconhecer a pessoa no reflexo. Seu cheiro era doce, suave, irresistível, perigosamente diferente dos gatos e da carne congelada. Ela me chamou e eu quis responder, mas temi afugentá-la com minha voz. Postei-me diante da escadaria. Ela me viu e gritou. Eu a vi e saltei. Mordi sua traquéia, pois meus dentes estavam renovados e próprios para isso, apertei até que sufocasse. Minha boca espumava como a de um cão raivoso. Arranquei e devorei seus olhos e língua. Abri seu ventre e me servi de suas vísceras.

A última barreira havia caído. A humanidade me abandonara por completo. Alimentei-me da vida daquela mulher, sem me importar com ética, moral ou piedade. Ao terminar, evadi do local que chamava de lar, sabia que nunca mais poderia retornar. Ganhei a noite em fuga desabalada. Corri até o raiar do dia, quando me escondi para descansar.

Sexta noite. Acordei aos pés do vilarejo, o mesmo visitado por mim semanas atrás. Mas desta vez eu estava diferente. Meu corpo já não comportava a delicadeza dos traços humanos, os que ainda resistiam, mostravam-se como vagas lembranças do que um dia foram. Não fiz questão de me manter oculto pelas sombras, insisti na manifestação selvagem de minha presença e exigi um preço justo de cada um que cruzou meu caminho. E foram muitos a pagar! Li em seus olhos a certeza de que me conheciam.

As marcas deixadas pelas ruas de pedra tardariam a desaparecer. Talvez os olhares lançados sobre mim quando retornei vivo da mata estivessem adivinhando o que aconteceria. Não os culpo, mas não tenho pelo que lamentar. Recolhi-me perante a presença iminente do sol, logo o manto negro entenderia seu manto mais uma vez.

Uma grande lua brindava o início da sétima noite. Já não havia qualquer vestígio de humanidade em meu corpo. A trilha de barro havia ficado para trás. Eu caminhava pelas cercanias da velha cabana do mateiro. O cheiro acre de seu suor se impregnava em minhas narinas, ele estava com medo. Precisei resistir à vontade de por um fim ao seu sofrimento, mas a urgência de um chamado me impedia, e eu precisava atendê-lo. Os contornos da mata estavam tão vivos como eu jamais poderia imaginar. Cores novas se apresentavam em matizes de lilás e violeta. Minhas orelhas em riste captavam o som da correnteza, era o riacho de águas escuras, meu objetivo.

Junto à margem, fui recebido por um grupo de semelhantes. A maioria se refestelava num banquete repleto de carcaças humanas. Línguas espessas chicoteavam as águas encarnadas. Percebi que alguns indivíduos observavam a margem oposta, todos, assim como eu mesmo, exibiam o negrume na pelagem e o rubi nos olhos. O motivo de tanta atenção era a presença de um homem extremamente magro a se banhar no rio. Ele se fartava com as águas malditas. Ele não sabia, mas havia sido escolhido por revelar maior capacidade dentre os caçados. Ao saciar sua sede, ele se daria conta dos olhos a lhe espreitar. Então correria em desnecessária fuga, inútil, pois não há como escapar de si mesmo. Em algumas semanas seu ciclo teria início, seu próprio período de encontro. Injustiça. Infortúnio. Maldição. Palavras que não o deixarão por algum tempo, até que a energia proveniente do alimento o faça perceber o tamanho da dádiva que recebera. Mas, como eu disse, sorte ou azar, tudo depende da interpretação.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 27/04/2010
Reeditado em 27/04/2010
Código do texto: T2223187
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