Grossas telas de um pintor sem nome

Parado no cômodo que fica isolado dos demais – sendo este o seu preferido – depois de ter acordado mais cedo que de costume ele aprecia suas obras anônimas, na parede em sua frente estão penduradas dezessete telas em molduras grossas, todas estas, são relacionadas à cultura oriental, na linha de cima estão dragões, alguns chineses compridos e com suas escamas grossas e outros de desenhos animados, alguns animes que particularmente não fazem muito seu estilo. Descendo a parede logo abaixo estão à altura de seus olhos duas carpas, uma de um amarelo dourado e olhando pra baixo e ao lado direito desta está outra um pouco mais avermelhada e olhando pra cima como se estivesse nadando contra a correnteza. Abaixo destas tem a maior tela desta parede, um samurai de joelhos, sentado sobre os próprios calcanhares, com sua espada descansando sobre seu colo e trajando uma armadura rubra um pouco desbotada. E ao redor de todas estas, em telas menores várias escrituras compõem o resto do aglomerado de telas de um tecido que parece velho e gasto, palavras de ordem, de amor e amizade em poucos caracteres de uma arte milenar.

Dando meia volta, agora de frente com a parede que estava a suas costas estão mais vinte e duas telas reservadas a personagens de quadrinho, heróis e vilões disputam o cenário, alguns em preto e branco, mas em sua maioria todos cheios de cores que já foram em algum tempo passado muito mais vivas e fortes.

Na esquerda está a parede que possui menos telas até então, apenas sete preenchem o espaço branco da parede de gesso, esta parte foi reservada especialmente para figuras mitológicas de várias culturas, e todas as telas desta parte são maiores que as outras e parecem seguir um padrão, todas do mesmo tamanho, semelhante ao tamanho da tela do samurai, a esquerda no alto está em preto e branco um vistoso Leviatã, no canto superior direito várias fadas dividem a mesma tela, e formando um triângulo mais pro meio da parede, estão um Minotauro, um Centauro e um Cérbero, as duas últimas nos cantos inferiores, da esquerda para a direita está o grande filho do caos, o lobo Fenrir e um grifo imponente e majestoso que parece possuir um olhar superior aos outros com uma esfinge a completar a paisagem de fundo. Por um momento ele observa o espaço vazio no meio, um espaço que cabe mais uma tela e pensativo ele se perde em devaneios, ele se lembra de quando fez estas obras de arte, já fazem mais de dez anos que ele não constrói com suas próprias mãos as maravilhosas telas que jamais ousaria tirar destas paredes, jamais contaria a alguém, que pudesse por acaso tirá-las dali, e privá-lo de olhá-las, e em silêncio ele guarda as telas debaixo da própria casa, isolado do mundo em seu porão.

Recuperando a lucidez saindo de seus sonhos por voltar a agir ele apaga a luz do quarto, fecha a porta, dá duas voltas na chave e sobe às escadas, ele precisa de inspiração.

Terminando as escadas ele anda através do corredor, passa pela cozinha e sai nos fundos da casa, em sua garagem ele procura por madeira e encontra, tentando se lembrar das medidas ele serra, corta, prega e cola, fazendo um quadrado fixo e rijo, olhando ao redor ele percebe que no varal do quintal está pendurado um vestido negro que pertencera a um corpo delgado e branco daquela que lhe presenteou com saudades, sobrepondo a armação sobre as costas do vestido ele parece medir e se contentar por conseguir fazer a armação do tamanho certo.

* * *

Um pouco mais tarde já dentro do trem, sentado ao lado da janela ele aprecia a bela paisagem composta por colinas verdes que parecem se esticar vagarosamente pra alcançar a luz do olho amarelo radiante pregado no grande tecido azul que parece tremular em ondas de brancas nuvens, mas ele sabe não que pode reproduzir tal paisagem, pois ele não é capaz de pintar tais formas, ele não possui tal dom. Distraído com o andar rápido do trem rasgando a paisagem como uma lança perfurando um animal ele nem percebe que em sua cabine agora compartilha de seu espaço uma mulher num vestido negro que o faz lembrar-se de outros corpos que já viu trajando vestidos semelhantes, ela é alta e têm seios fartos e pernas levemente torneadas, cabelos castanhos e ondulados que parecem ser tão macios quanto à voz que parece ter. Sobre seu colo descansa um livro de capa negra e letras douradas que traz as letras POE na capa, abraçado por esguios e delicados dedos. Os olhos são dois ônix impenetráveis, austeros e enigmaticamente carismáticos ao mesmo tempo, tingindo os lábios com a cor do desejo, paira um vermelho de carne viva, tão convidativo quanto ameaçador. Sua face, que agora está corada ao perceber tal apreciação do estranho, não parece rejeitar tal feito e expulsa com agressividade um belo sorriso que o faz lembrar das nuvens distantes fugindo da luz sol que ele apreciou com igual ferocidade momentos antes.

– Bom dia, minha adorável. - Disse ele finalmente.

– Bom dia, senhor! - Responde ela tímida com um ar de que quer continuar a conversa.

– É um ótimo dia para se apreciar coisas tão belas sobre o sol de hoje, minha jovem. Se me permite saber, o que faria uma donzela tão inspiradora faz indo pro centro da cidade?

– É que sou pintora, e irei buscar alguns pincéis e tinta pra reproduzir imagens que tenho em mente. Aliás, agradeço por me nomear inspiradora, em minha arte isso é extremamente fundamental, e tal inspiração gosto de buscar em palavras tão belas quanto as que tu diz.

– Percebe-se isso pela ótima leitura que vejo ter escolhido, fico contente que seja pintora, pois também posso ser considerado um artista, e te revelarei um segredo meu que não haja pessoa viva que o conhece, eu possuo algumas telas em meu aposento feitas por minhas próprias mãos, porém há tempos eu não via algo tão inspirador que me fizesse querer fazer outras como a que aprecio agora, porém, ainda não sei o que deve preencher o tecido em minha armação. O que você gosta de pintar?

– Me sinto agraciada sabendo que ainda existem outros pintores nestas terras, e particularmente gosto de tentar reproduzir o que interpreto do que eu leio, gosto de dar uma versão própria a personagens literários e tornar mais reais cenas que leio, em minha casa possuo pinturas em aquarela de gatos negros, tenho tigres e dragões vermelhos, tenho a máscara de uma rubra morte e carrego sempre comigo uma réplica de minha tela preferida, uma criatura marinha e alada desenhada com traços de minha mente.

– Mas vejo que não carrega nada contigo além desta pequena bolsa e este livro, sua tela não cabe nesta bolsa, cabe?

– Está certo, minha tela não cabe nesta minúscula bolsa, e disse que carrego uma réplica e não a própria.

Assim que ela termina a frase, vagarosamente ela se levanta se vira de costas, afrouxa as alças de seu vestido e deixa o tecido deslizar sobre as costas lisas e alvejadas até meio palmo acima da cintura e lá está, naquele pouco pedaço de couro macio e levemente delicado paira imponente e único, a enorme e aterrorizadora criatura das profundezas desconhecidas, a criatura marinha mais medonha que poderia assombrar os sonhos de alguém, asas e tentáculos de ventosas grotescas enfeitam teu grosseiro corpo e aos seus pés o mar parece bradar em comemoração pela criação de tal ser. Os traços são muito bem reproduzidos e são tão perfeitos a ponto de se confundir com os de uma tela de verdade, e o verde do mar parece se mesclar em partes com o tom de musgo que a criatura possui.

Desde que avistara a moça ele sabia que algo nela era diferente e ali estava, sua musa inspiradora com a arte necessária, ele calmamente ergue sua mão direita e com a leveza de uma pluma ele acaricia as costas da moça, que faz com que ela se arrepie e erga o vestido se cobrindo de uma forma rápida que demonstra certo constrangimento.

– Tal figura se assemelha a uma assinatura que compõe o quadro que é o teu corpo. - Diz ele tentando se desculpar pelo constrangimento da moça.

– Eu realmente agradeço e peço que me acompanhe aonde irei hoje para que possa ver mais de minhas obras já que gostou desta, alguns de meus quadros estão onde eu consigo meus materiais, eu retiro o valor do quadro em pincéis, tinta e telas brancas. - Respondeu a moça, com a face corada mais uma vez.

– Seria uma ótima oportunidade partilhar mais ainda de sua presença, pois assim conseguirei fixar em minha mente tal inspiração.

Ela sorri e agradece com um gesto simples balançando a cabeça, senta-se novamente e quando olha pro homem percebe que ele está atônito e perdido em devaneios que parecem passar e aparecer tão depressa quanto as árvores que o encantam do lado de fora. Não querendo interrompê-lo ela abre o livro e começa a ler mais um pouco.

Algum tempo depois o trem para e ela fecha o livro, o homem está olhando pra ela e demonstra uma certa impaciência antes de dizer:

– Eu não queria interromper tua tão concentrada leitura, ou inspiração como tu me disse há pouco, mas creio é hora de você me guiar até onde estão tuas obras, não?

– Claro! Vamos depressa pois creio que eles fecham pra almoço, e acho que ainda podemos chegar antes disso. - Responde a pintora.

Os dois saem do trem, ela na frente e o homem logo em seguida e já começam um passo apressado, conversam muito pouco, quase nada durante o caminho. Após uns vinte minutos de caminhada entre as pessoas ela para em frente um enorme ateliê de grande magnitude e que impõe respeito, parecendo ser uma das construções mais antigas da cidade que ainda manteve seus alicerces e paredes ao estilo de quando foi construída. Entrando no local os dois são recebidos como se fossem parentes como filhos ou irmãos do próprio dono, tamanha foi a cordialidade nas palavras. Como se tivesse sido combinado, os dois se separam e vai cada um para um lado, ela com o interesse em seus materiais e ele vislumbrado por algo que parece atravessar o tecido das dimensões precárias de uma tela e chamá-lo a compartilhar de um mundo monocromático criado por pincéis e dor. De frente para a tela que parece viva, está ele, sobre uma cruz parecendo querer voar a qualquer momento, parado como num braço de espantalho o corvo, a ave negra de um grasnar tão ardiloso que parece ser audível na pintura. Talvez tenha passado quinze minutos ou mais até que ele percebesse que ainda estava encantado pelo quadro e esquecera totalmente do resto do mundo, quando ele se vê de volta ao ateliê a bela jovem se encontra atrás dele com uma sacola pequena contendo algumas bisnagas de tinta óleo, uns dois ou três pincéis e um tanto de óleo de linhaça.

– Vejo que gostou de meu corvo – disse a jovem.

– Realmente é de um talento assombroso tal figura, só não superior da outra em suas costas. - replicou o homem.

– Eles precisam fechar a loja, vamos eu conheço um lugar onde podemos comer e conversar tranquilamente sobre nossas belas artes, aliás ainda não tive a concreta certeza de tua arte, não me disseste o que tu gosta de pintar – disse a mulher indo em direção a porta de saída acompanhada pelo homem.

No lado de fora do estabelecimento, sobre a calçada e banhados pelo sol os dois se olham nos olhos, ela curiosa e incerta por se entregar a um homem desconhecido e ele um tanto quanto confuso enquanto pensa o que dizer, até que parecendo se decidir de uma difícil escolha ele diz:

– Gostaria sim de partilhar mais tempo ao teu lado, mas creio que no almoço de hoje não será possível, pois não trouxe nada a mais do que o dinheiro da passagem de volta, e particularmente prefiro minha própria comida.

– Mesmo assim eu insisto, me acompanhe, eu lhe pago o almoço.

– Eu sou grato pelo que você já me fez hoje, como me disse mais cedo, em nossa arte necessitamos de inspiração e ela deve ser aproveitada enquanto a sentimos. Preciso ir pra casa agora. Se quiser, pode vir comigo e apreciar minhas telas, já que você é uma peça marcante de uma de minhas futuras obras.

– Com tal convite fico realmente curiosa se sou mesmo essa musa que tu diz ou se seria somente uma conversa genérica.

– Tão original quanto verdadeira são minhas palavras que lhe dou a escolha, você pode vir comigo e ver como fará parte em minhas telas ou pode seguir em frente sem me dar este prazer. Mas desde já, agradeço pelos nobres momentos.

Dizendo isso ele tomou a mão da moça, curvou-se e beijou as costas da mão dela, voltou a sua posição normal e fez uma leve reverência antes de dar as costas para ela e sair em passos firmes e decididos. Em poucos segundos passaram incontáveis possibilidades pela cabeça da jovem pintora, ela sente a confiança nele desde a conversa no trem, e naquela hora ela já possuía um certo interesse no homem bem vestido e experiente nas palavras. Concluindo seus pensamentos ela decide chamá-lo e pedir que a esperasse, porém não fazia idéia de como chamá-lo.

– Ei, nem teu nome eu sei, me espere pois irei contigo! – disse ela num tom que se sobressaía ao ruído causado pela multidão.

– Você pode me chamar de Charles e eu agradeço a companhia. – respondeu o homem que agora possuía um nome.

Durante a viagem os dois conversaram mais um pouco sobre a pintora, sobre o seu interesse pela leitura e sobre como adquiriu a tatuagem em suas costas. Ele sempre atento a olhando parecendo feri-la com o par de adagas castanhas que possuía, e ela cada vez mais curiosa, pois sempre que perguntava algo sobre ele, recebia como resposta outra pergunta que a instigava a falar sobre suas paixões, sabendo como levar a conversa adiante e guardar a surpresa que iria fazer a moça ele passa toda a viagem ludibriando a donzela.

Quando os assuntos interessantes pra se conversar parecem ter acabado ela percebendo que ele não queria falar sobre si, se convence que não deve perguntar mais até o momento certo. Sentada de frente para Charles também ao lado da janela ela decide apreciar o caminho que leva até a casa do homem e é pega de surpresa num lugar que ela não conhece e nem faz a mínima idéia de onde possa ser.

– Onde estamos Charles? Creio que eu nunca tenha vindo a essa parte da cidade antes. – indagou num tom que expressava uma pequena fração de medo.

– Estamos em minha casa! – respondeu Charles com um tom ameaçador em resposta ao medo dela, no momento em que o trem começava a parar na estação.

Mesmo diante de tais situações ela não sentia um arrependimento por ter feito o que fez, dar confiança a um homem desconhecido, pois ela já fizera isso várias vezes, e essa era a única maneira de fazer novos amigos que ela tinha, aliás ela possuía bons amigos que fizera desse jeito. E foi pensando nas boas amizades que ela tinha conseguido assim como conhecera Charles que ela se acalmou, pegou na mão dele que agora estava estendida e parada a sua frente a convidando a saírem do veículo, se levantou e calmamente deixaram para trás o trem que marcara tanto suas vidas.

Abandonando a estação e caminhando sobre um estreito caminho de terra os dois avançam em passos vagarosos e despreocupados enquanto ela se maravilha com a diversidade de flores e árvores que a faz querer pintá-las, pássaros cantam e rodopiam no ar parecendo dar boas vindas a jovem, sempre olhando fixamente no horizonte a frente, Charles guia a moça por uns quarenta minutos que parecem ter passado muito depressa para a jovem quando ele finalmente diz que chegaram.

Um enorme casarão rubro de madeira um pouco gasta, brota em meio tal cenário verdolengo, um vasto jardim com enormes pedras brancas compõe o quintal do homem, flores e trepadeiras cobrem a cerca que rodeia o casarão e formam uma espécie de portal feito por duas pedras mais altas que os dois e com escrituras de uma língua há muito tempo não usada. No chão a sua frente parecia haver uma ponte de pedras chatas e amareladas onde debaixo parecia bradar um forte rio, porém eram somente seus devaneios causados por tal beleza zelada com a segurança necessária.

Ele suavemente a puxa pelo braço que por sua vez se deixa levar sem nem olhar para frente, tamanha foi a vontade de viver ali naquele lugar que se apossou de seu ser. De frente para a porta ele solta a moça e abre o enorme portal branco de madeira grossa com inscrições semelhante aos das duas pedras na entrada do jardim, dentro do aposento estão várias peças de uma mobília antiga e que valeira em seu pensamento, muito mais do que qualquer quadro que ela poderia pintar, ele aponta uma mesa a esquerda dela para que possa deixar seus pertences, poltronas acolchoadas com bordados a mão estão a volta da mesa. Ele pergunta se ela desejaria algo e delicadamente ela responde:

– Eu agradeceria por momento se antes de um copo de água se pudesse apreciar suas telas, confesso que não estou me contendo tamanha é minha curiosidade. - responde ela maravilhada pelo lugar em que se encontra.

– Com toda a certeza que poderia haver, me acompanhe então. – respondeu Charles.

Os dois caminharam para o corredor que ligava a sala aos outros cômodos da casa, a segunda porta a esquerda estava entreaberta, ele a empurra e acende a luz das escadas que descem vertiginosamente até outra porta lá embaixo. Seguindo o rapaz ela sente um certo arrepio até que no meio da escada ele para e se vira olhando para cima penetrando os olhos da moça.

– Eu já ia me esquecendo, perdão, prefere água gelada ou amena? – indagou Charles.

– Prefiro gelada, por favor. – respondeu a tentando desviar o olhar.

– A chave para porta é esta aqui, pode descer e abrir, não pedirei que me espere, pois sei que está ansiosa por isso. – disse o homem entregando um pequeno molho de chaves a ela.

Ele abaixa a cabeça e passa por ela subindo a escada e desaparecendo pelo corredor, com certo receio a descer ela pondera porém logo a curiosidade pesa mais em suas medidas, descendo com um pouco mais de pressa agora ela encontra a porta e coloca a chave, duas voltas se fazem e o trinco que já estava sendo virado pela outra mão se destrava e abre a porta escura. Um breu indescritível assombra o local e parecendo já conhecer aquele lugar ela tateia a parede a sua esquerda a procura de um interruptor, um estalo baixo e logo a luz invade o recinto parecendo cegá-la pois já havia se acostumado com o clima iluminado, porém escuro daquela casa. A primeira parede que ela consegue ver é a que está a sua frente, uma com telas grandes e sem molduras, ela se identifica um pouco com as artes que vê, porém se surpreende com a maneira que são as telas, parecem ser feitas de um material diferente, de um material que ela nunca tinha visto, particularmente ela gostou de um enorme grifo, e nem deu tanta atenção para o espaço vazio no meio da parede. A sua esquerda, chamam a atenção pequenas telas com inscrições orientais, estas telas estão todas em molduras grossas e grosseiramente feitas com ossos cortados e moldados de uma maneira assombrosa, sem dar muita atenção a estas ela se vira de costas e encontra uma arte que dá menos atenção ainda, vários desenhos animados, personagens de quadrinhos, todos muito bem desenhados, mas nenhum de tão agrado quanto aos da primeira parede, mas algo ainda lhe deixa em pensamentos deslocados, pois realmente está impressionada com o material das telas, e não saberia responder de que realmente são feitas e muito menos quais tintas ou pincéis teriam feito traços tão finos e belos.

Virando-se mais uma vez agora de frente com a parede onde está a porta por onde veio, uma alta e larga estante de livros chama sua atenção devido a imensa variedade de títulos que podem ser considerados raros de ser encontrados. Um grande livro grosso, com uma capa de um couro estranho atiça sua curiosidade por ser o único a não possuir nome, por estar isolado dos outros e por sua capa ter a cor de um tom semelhante ao das telas nas paredes, ela caminha em direção a estante estica o braço e puxa o enorme livro grosso e pesado, um barbante negro parece costurar os pedaços da capa causando um asco por não saber a procedência de tal material, abrindo uma das páginas do meio ela descobre que é um álbum de fotos, na página que ela está tem a foto de um homem moreno, ao lado de letras garrafais que dizem: O grifo. Logo abaixo do título está uma breve descrição:

“Naquele domingo bebemos e festejamos mais uma de nossas vitórias, porém eu consegui perceber o olhar da cobiça em Charles, eu não poderia deixar que espalhasse por aí sobre minhas telas, enquanto ele foi ao banheiro aproveitei para pegar um ferro que eu usava para mover as brasas na lareira e o golpeei assim que apareceu no corredor, ele caiu ainda se debatendo e depois quando tudo se acalmou eu tirei o grifo dele com a lâmina que momentos antes ele me presenteou.

Treze de Outubro de 1983”

Tomada de um desespero ofegante ela solta o livro e se vira caminhando até o grifo, passando a mão com nojo no quadro ela percebe que aquela eram as costas de Charles, aquilo era couro humano, o homem que se apresentara momentos antes fizera aquilo, ela sente as pernas se amolecerem ao mesmo tempo em que sente um desconforto em seu ventre, um frio na barriga, o prólogo da morte, agora ela sabe como irá servir de inspiração para a tela de um falso pintor.

– Pintor? Em momento algum ele me disse que pintava, era isso que não tinha percebido, foi essa a traição, eu me deixei vir aqui. Como pude? – pergunta si mesma inconformada com a descoberta.

De costas para a porta ela nem percebe que o homem agora dividia o pequeno espaço daquela galeria macabra com ela, ele traz em suas mãos uma picareta e uma pequena armação de madeira, antes que ela pudesse pensar em falar alguma coisa o primeiro golpe a atinge, com o cabo da ferramenta ele desfere uma forte pancada fazendo um som grave ao encontrar a fronte da moça, ele deixa cair a armação de madeira, ela não agüenta e cai no chão, estirada aos pés dele ainda consciente porém, meio zonza, pondo as suaves mãos sobre o sapato dele ela se esforça para erguer seu pescoço ao tentar olhar pra cima a única coisa que ela consegue enxergar é o objeto metálico enferrujado e pontiagudo se aproximar numa velocidade assombrosa. A pancada foi tão forte que a picareta cravou no chão de madeira do local e devido a tensão nas mãos do feitor ela permanecera ali, sem sair do lugar, porém antes de encontrar o chão havia o crânio da moça. A picareta entrou cerca de dois dedos acima do olho direito e saiu no lado esquerdo abaixo do queixo encontrando a firme base onde ficaria presa, ela se debate numa tosse engasgada enquanto uma poça de massa cefálica misturada com um tom rubro se forma no chão. Ele vira a mulher costas para cima de maneira que ela ainda fica presa ao chão, tendo a mulher estirada no chão entre suas pernas ele se agacha de cócoras na altura das nádegas da jovem, retira uma faca de lâmina negra que estava presa a sua cintura e rasga o vestido da moça, deixando à mostra aquilo que realmente lhe interessava, pedindo pra sair daquele corpo e querendo voar além dos mares que o prendem a criatura parece entrar num êxtase de felicidade por tal libertação, é este o sentimento que ele enxerga nos olhos da besta, após essa breve comunhão com sua arte ele começa a agir, abrindo um corte na lateral direita da figura ele decide ir de cima para baixo até contornar todo o desenho se esforçando no máximo para que o sangue ainda quente não suje o monstro, após o contorno estar completo ele vagarosamente afunda a faca nas costas do cadáver pra separar o couro do resto daquela peça caída no tabuleiro de um jogo que só ele gosta de jogar.

Enquanto ele com as mãos ainda trêmulas corta o tecido da jovem, ele tenta se lembrar onde foi que ele guardou sua câmera, pensa também em com quais palavras ele descreveria o seu contato com a pintora no seu “livro de visitas”. Após cortar o máximo de couro aproveitável do animal em seu domínio, ele pensa consigo mesmo enquanto compara pondo a armação de madeira sobre as costas da dócil e carismática donzela:

“Fazia tempo que eu não sentia tamanha honra por ser agraciado pelos deuses com magnífico presente, eles a trouxeram no momento em que pedi e eu não pude decepcioná-los. Não tive muito trabalho, ela poderia ter gostado da minha história se eu tivesse apresentado de maneira literária, já que sabia apreciar uma boa leitura, mesmo assim eu sinto que cometi um engano cujo eu realmente não poderia ter feito, terei de fazer uma armação menor, devo estar perdendo o jeito!

Dezessete de Agosto de 1994”