A RECEITA
Todo dia seu Onofre acordava cedo, colocava rapidamente o avental e descia as escadas para abrir sua confeitaria. Há anos os bolos feitos por ele têm atraído pessoas de todas as partes do globo. O segredo de sua receita, entretanto, era guardado como a coisa mais valiosa do mundo. Seu Onofre tinha 45 anos, mas por causa de sua barba e cabelos grisalhos, aparentava 60. Ele não se importava, no fundo até gostava.
Onofre nunca havia tido problemas com a concorrência. Pelo menos até o dia em que um restaurante resolveu ser inaugurado do outro lado da rua. Apesar de não ser grandioso, em pouco tempo a sua torta de maçã atraiu uma grande clientela. Entre essas pessoas também estavam freqüentadores da confeitaria de seu Onofre, e por sinal, muitos deles.
Dona Ana era uma loira de meia-idade com um sorriso que contagiava a todos. Além de dona, ela ainda era a cozinheira e garçonete do restaurante. Ninguém sabia muito sobre o seu passado, e também nem precisava, a única coisa que importava era experimentar um pedaço daquela saborosa torta de maçã. Seu Onofre com seus bolos e dona Ana munida das tortas travavam uma épica batalha culinária. Os dois estavam indo bem com seus negócios, mas o orgulho de ser o melhor era o que importava.
Após alguns meses, seu Onofre notou algo inusitado no restaurante do outro lado da rua. Os clientes que entravam após as 22 horas não saiam mais. Ana fechava as portas 22 horas e meia. Esses clientes, alguns dias depois, estavam com a fotografia na entrada da delegacia marcada como desaparecido. Curioso, Onofre esperou um dia que isso tornasse a ocorrer para poder espiar.
Eram 22 horas e 15 minutos, e Seu Onofre estava prestes a fechar sua confeitaria quando percebeu que um casal estava entrando no restaurante. Tratou de fechar rapidinho e foi espiar. Pela janela do lado de fora, pouco se dava para ver por causa da cortina. Mas isso não era um grande empecilho. Ele a puxou lentamente e ficou observando o casal degustar uma das deliciosas tortas. Por um minuto resolver voltar, mas mudou de idéia quando viu Ana os convidar para visitar a cozinha. Eles foram, passaram por uma porta atrás do balcão. Onofre esperou por 15 minutos. Angustiado, pulou a janela. Já dentro do restaurante, foi espiar pelo buraco da fechadura. Quando colocou seu olho direito no buraco a porta se abriu. Era Ana. É difícil saber quem estava mais assustado. A dona do restaurante disfarçou, deu dois passos a frente e fechou a porta. Onofre, que caíra de sobressalto no chão, conseguiu avistar vagamente o casal ao fundo. Estavam amarrados em uma mesa sem os braços e com lenços amarrado a boca.
- O que você quer aqui? - Perguntou Ana impaciente.
- Desculpe, pensei que estivesse acontecendo algo, é que escutei uns gritos... Mas vejo que está tudo bem, preciso mesmo ir.
- Espere aí! - Gritou Ana. - Nesse momento Onofre estremeceu. - Leve antes um pedaço de torta, e da próxima vez use a porta. - Disse indo buscar o doce que estava no balcão.
- Obrigado, han... Até logo vizinha.
Onofre saiu de lá confuso. Tinha certeza que havia visto algo. Entretanto, não sabia se a denunciava ou colhia mais provas. Enquanto pensava, olhou para a torta com nojo e cuspiu o pedaço que estava em sua boca. - Isso é feito de gente!
Ana era esperta, e nos dias que seguiram, passou a espiar Onofre. Ela sabia que o velho havia visto aquelas pessoas na cozinha. Precisava pensar em algo. Era óbvio que o plano perfeito envolvia transformá-lo em torta. Para isso, ela usaria sua sedução. Seus 25 anos, rosto fino e pele bronzeada tinham que servir para alguma coisa. Ana passou a freqüentar a confeitaria de Onofre pelo menos três vezes por semana, se insinuado para ele em todas as idas com decotes enormes e saias muito curtas.
Após algum tempo fazendo isso, decidiu dar o golpe final. Às 22 horas de uma terça-feira, Onofre estava fechando o estabelecimento precocemente. Mas não havia nada de incomum nisso, terça-feira não era um dia bom para os negócios. Ana, aproveitando também a falta de clientela, trancou seu restaurante. Trajada com o notório decote e mini-saia, agarrou uma torta e foi atrás do velho.
- Calma aí! Será que não há tempo pra mais um docinho? - Perguntou Ana com um olhar lascivo incomum.
- Bom, acho que sim. - respondeu sem jeito.
Os dois entraram, e pela primeira vez em uma mesa estavam a sós: Onofre e Ana, e a torta com o bolo.
- Que delícia, você não pode me contar o segredo? - Indagou Ana.
- Desculpe, essa receita vem sendo seguida há anos pela minha família. Mas me diga, e o seu segredinho? Perguntou isso com um olhar acusador.
- Se quiser eu te conto lá em cima, no seu quarto. - Disse segurando a mão de Onofre, que se preparava para cortar mais um pedaço da torta.
Os dois se lançaram um para o outro e trocaram beijos apaixonados. Agarrados de forma libidinosa trombaram na mesa. Derrubaram ambos os doces no chão. Não ligaram, foram arrastados, se agarrando até o andar e cima. No quarto, Ana empurrou Onofre na cama.
- Calma, não tenha presa, me dê um minutinho só. - Disse sussurrando sensualmente.
Ana entrou no banheiro e começou a procurar algo com que pudesse matar Onofre. Mas como todo banheiro de homem, nada estava no lugar. Somente as roupas sujas, que por sinal, estavam em todos os lugares. Ana abriu o espelho acima da pia. Estranhamente havia um buraco profundo onde deveria ter escovas de dente ou coisas assim. Esticou seu braço na fenda e puxou um livro decrépito. Na capa estava escrito: Livro de receitas de bolos.
- É isso! Vou fazer esse velho tarado virar torta e ainda roubarei sua receita! - Pensou de forma sádica abrindo o livro para dar uma espiada.
BOLO ESPECIAL DE AMORAS
Ingredientes:
3 olhos de mulher
1 fígado humano
200 gramas de açúcar
500 gramas de farinha de trigo
2 metros de tripa humana moída
1 quilo de amoras
1 colher se sopa de fermento
Modo de fazer:
Bater tudo no liquidificador e colocar para assar em temperatura média por 40 minutos.
- O que? O que é isso! Seus bolos também usam pesso... - não conseguiu terminar a frase, pois enquanto falava, pelo reflexo do espelho viu Onofre bem atrás.
- Você dará um lindo bolo! - Flop! - Decepou a cabeça de Ana com um cutelo afiado.
Muitos anos depois, após a morte de Onofre, seu filho, e posteriormente seu neto passaram a tomar conta do negócio. Mesmo com o passar dos anos, em algum estado, numa pequena cidade, em um bairro esquecido por todos, pessoas ainda saboreiam bolos deliciosos com receitas peculiares.