O Balanço
Por Ramon Bacelar
"Para cima, para baixo, para cima, para baixo."
Com imponente majestade e um orgulho digno do seu criador, o mesmo círculo de fogo que alimentava campos, jardins e florestas com sua luminosidade radiante, e intimidava as sombras com seus raios dourados e fulgurantes, também lançava seu olhar fraterno e inquisidor para as casas, cisternas, celeiros, currais e tudo mais que merecia sua atenção. O primeiro dia de verão não anunciava apenas promessas de felicidades renovadas e realizações de desejos impossíveis, mas acima de tudo, a certeza de que, sob a vigilância quase tirânica do pai-sol, as cores cinzentas e melancólicas do outono permaneceriam cativas em seus cárceres privados cor-de-tristeza, enquanto durasse o amor do pai-sol para com seus filhos.
"Para cima, para baixo..."
Em um quintal, no fundo de uma dessas casas que pareciam terem sido erigidas antes da criação, uma garota de pele marmórea, cabelos dourados, membros finos e voz de vento era empurrada em um balanço por um garoto da sua idade. Comparada com sua beleza etérea e angelical, os traços bruscos e angulares do garoto pareciam terem sido talhados por mãos dóceis porém inabilidosas.
"Para cima, para baixo..."
-Mais forte-Pediu a garota.
O balanço, com seus parafusos enferrujados e madeira fungosa, flutuava no ar com tamanha graça e delicadeza que se fazia deduzir de um secreto acordo de harmonia e beleza etérea entre ele, a garota e a mãe natureza.
-Forte.-Repetiu, dessa vez com uma ansiedade que se desenhava nos contornos de sua boca carnuda e na alvura rugosa de sua testa.-Quero ir pro céu.
-Quê?- Rugiu a voz áspera e curiosa do garoto.
-Mamãe diz que quanto mais próximo do céu...
"Para cima, para baixo..."
-Mais próximo de D...
-AAAAAAAA...HAHAHAHHAHAHAHAHAHAHA...
Com a potência impiedosa de uma catástrofe natural, a risada débil e doentia do garoto lacerou seus tímpanos com uma violência que fez borbulhar seu sangue e congelar seus sentidos lhe privando de qualquer capacidade de reação; reverberou externamente como um lobo faminto a procura de alimento e ecoou irracionalmente nos espaços vazios como uma entidade carente à procura de companhia: era como se o tempo tivesse petrificado.
"Para cima, para baixo..."
Silêncio.
-Desculpe, aconteceu de novo.
-Não faz mal.-Respondeu a garota da voz de vento .
Mal jorrou em seus ouvidos a tolerância sedosa da sua amiga, e foi tomado por uma vaga de profunda melancolia que o arremessou às profundezas do seu ser e o jogou num desconhecido e penumbroso labirinto de arrependimentos e auto-questionamentos: "aconteceu de novo."
"Para cima, para baixo..."
Com a cabeça baixa, absorto em si mesmo, sentia a vaga atenuar-se gradualmente; continuava empurrando o balanço com progressiva força: queria agradá-la. Olhou para o lado e foi tomado pela imagem de um dos muitos milagres da mãe natureza. No alto de uma jaqueira situada ao sul do Riacho das Cobras, um pássaro de plumagem dourada (capricho da natureza?) alimentava seus filhotes com pequeninas minhocuçus; com olhos ansiosos e bicos trêmulos os filhotes as engoliam com desmesurado abandono.
"Para cima, para baixo..."
-Mais forte, estou chegando...-Vuuuuuummmm, em atrito com o vento, o balanço emitia as mais estranhas sonoridades; dava-se a impressão que iria fazer um giro de 360, enquanto que a alvura dos seus pés se tornava invísivel perante a imaculada brancura da areia. Suas unhas, metamorfoseadas em lápis e pincéis, desenhavam na areia enigmáticos símbolos e caracteres em cujo hermético simbolismo pareciam prenunciar a ominosidade de acontecimentos futuros, para em seguida desaparecer e dar lugar a novos enigmas e mistérios num ciclo ilusoriamente infindável.
-Chegando...
"Cima, baixo..."
Ainda com os olhos vitrificados no "milagre dos pássaros", não notou o quão alto sua amiga voava, nem quão forte ele a empurrava.
-ÚÚÚÚÚÚ... estou chegando!!!- Ardia de felicidade e satisfação.
"Cima, baixo..."
- Chegue... AAAHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
"Cima, baixo..."
"Cima, baixo.."
"Baixo..."
"Baixo..."
"Baixo.."
Foi arrancado do seu estupor passerídeo pela "ausência de peso" no balanço. Com a respiração rápida, ofegante e gotículas de suor infestando sua face como uma epidemia de fungos nocivos, olhou para os lados e foi sugado pela decepcionante mesmice.O sol, delicadamente delineado na imensidão azul do firmamento, continuava sua incessante vigília paterna e, abaixo do agora solitário balanço, onde antes se desenhavam símbolos e caracteres de mau agouro pelo delicado pincel de unha, pele e carne humana da sua amiga, uma área negra e borbulhante, semelhante a um abismo de piche, era manipulada por um invisível e inspirado pincel que desenhava no espaço negro as frágeis e delicadas feições da garota uma vez conhecida como voz de vento.
FIM
Ramon Bacelar é contista, crítico e ensaísta. Mantém um blog sobre cinema, quadrinhos, literatura e cultura underground (Maquinário da Noite: www.maquinariodanoite.blogspot.com) e publica contos no Recanto das Letras: http://www.recantodasletras.com.br/autores/ramonbacelar e em seu site pessoal Miragens Ofuscantes: http://www.miragensofuscantes.blogspot.com