Errante e ancestral

Noite de Sexta-feira, onze horas, o bar estava quase totalmente vazio, com exceção de dois clientes e o dono. Na verdade fazia muito tempo que outras pessoas não frequentavam mais aquele lugar.

O bar era pequeno, composto apenas por um balcão de alumínio com tampo de vidro onde ficavam expostas latas de cerveja de diversas marcas. Um freezer grande escondido num canto, encostado na parede atrás do balcão, onde ficavam as garrafas de cerveja. Acima do freezer, uma série de prateleiras de vidro com fundo em espelho; em cada prateleira estavam várias marcas de bebidas quentes e destilados, e, na última prateleira uma coleção única de bebidas ardentes desenvolvidas pelo próprio dono do estabelecimento.

Do outro lado do balcão; no lado onde outrora transitavam os clientes havia apenas quatro bancos com assentos redondos e sem encosto junto à frente do tampo de vidro do balcão; uma mesa de sinuca que não era utilizada fazia meses demarcava o centro do bar; os tacos, todos, já tinham se espatifado em brigas motivadas por apostas sem sentido ou por qualquer outro tipo de bobagem que as pessoas, na ocasião, achavam de suma importância.

Uma televisão parcialmente destruída pendia de um suporte frouxo e não menos velho em uma das paredes do bar; a antena do aparelho mantinha um chumaço de palha de aço preso a uma das hastes de alumínio, a fim de tentar melhorar a péssima imagem que chegava pela transmissão; não estava adiantando nem um pouco. O volume do som era baixo, chiado e a imagem chuviscava com interferências provocadas pela falta de sintonia do canal.

O revestimento da mesa de sinuca já estava solto e manchado pelos inúmeros banhos de bebida que levou durante sua utilização, mas não era só isso, havia também manchas de sangue que já estavam desbotadas pela ação do tempo. A madeira da qual o equipamento era feito estava soltando pequenas lascas por causa do mau uso e da falta de manutenção, aliás, como tudo dentro daquele estabelecimento.

O chão era de um piso de madeira que jamais fora polido; agora eles tinham uma cor opaca, sem vida, fosca, onde a luz do teto não refletia, e sim, era absorvida pelo chão que ainda estava terrivelmente sujo; era como estar andando sobre um pedaço escuro de um lamaçal que se solidificara.

O teto possuía uma iluminação forte, mas a luz parecia ser consumida pelo lugar, talvez fossem o chão e as paredes escuras ou talvez fosse algo na atmosfera do lugar, algo ancestral, que nenhuma das pessoas ali presentes sequer tinha idéia do que fosse.

Sentados sobre dois dos quatro bancos estavam dois homens, dois antigos frequentadores que não tinham outro lugar para ir, eles não conheciam nenhum dono de bar que poderia servi-los e cobrar somente no final do mês; essa pratica era pouco usual nos tempos mais modernos. Tudo girava em torno do dinheiro vivo no mundo dos botecos mais sofisticados; além do mais, aonde eles achariam outro lugar onde pudessem provar as combinações de aguardente que Osmar, o dono daquele bar, costumava inventar.

Aqueles dois indivíduos, Argemiro e Humberto, vinham todas as noites e se sentavam ali, pediam algumas doses da cachaça especial e tomavam silenciosamente entre uma careta e outra; já não conversavam mais, embora fossem todos muito amigos e de longa data, mas eles já tinham passado por muitas coisas juntos; divórcio traumático de Humberto, falsas acusações e prisão de Argemiro por fraude no emprego e a queda brusca dos negócios de Osmar quando este foi processado várias vezes por familiares de ex-fregueses que se envolveram em brigas muito sérias em seu bar. Aqueles três homens tinham suportado mais até do que desejavam, tendo apenas a amizade de um ao outro nos momentos mais turbulentos de suas vidas. Portanto, eles conformavam-se, agora, em apenas ver uns aos outros.

Na verdade eles não costumavam mais falar nada das antigas feridas abertas por suas esposas, amigos, patrões e todas as pessoas em quem algum dia já confiaram, mas secretamente cada um deles tinha desejado um milhão de vezes que toda aquela trajetória de fracassos, afrontas e humilhações acabasse. Nunca disseram uns para os outros, mas já tinham pensado muitíssimas vezes em dar cabo de si mesmos, porém não tinham coragem para tanto. Assim resolveram se dedicar totalmente à bebida. Foi uma espécie de pacto silencioso e inconsciente entre os três.

A porta do bar se abriu e um sujeito passou por ela sem fazer barulho, depois fechou a porta atrás de si calmamente. Caminhou pelo pequeno lugar, passando pela mesa de sinuca e chegando até o balcão onde os outros estavam debruçados.

Era um homem alto, negro, careca e com o corpo levemente curvado para frente, devia sofrer de algum tipo de lordose.

O homem se aproximou calmamente e sem fazer o menor ruído, o que era incomum pelo fato de o piso ser feito de tacos de madeira, mas aquilo era um detalhe, não significava nada e, além do mais, todos os três amigos já tinham bebido o suficiente para tirar-lhes a atenção; não estavam bêbados, apenas não notaram os sinais estranhos que apareceram no momento em que o homem entrou no recinto.

A televisão perdeu a péssima imagem e a tela ficou escura apenas com uma fina listra clara no centro. Algumas garrafas nas prateleiras mais altas borbulharam poucas vezes e pararam em seguida; nos espelhos surgiram pequenas rachaduras e a lâmpada piscou no momento em que o homem passou abaixo dela, como se a luz se recusasse a banhar aquela pessoa. Eram sinais.

__ Boa noite cavalheiros. _ disse o recém chegado com a voz mais grave que eles já tinham ouvido.

Os dois que estavam ali em frente ao balcão limitaram-se a erguer seus copos e balbuciar alguma coisa numa espécie de saudação característica.

Osmar respondeu:

__ Boa noite; o que vai querer?

__Quero uma bebida e um pouco de conversa.

__ Que bebida?

__ O que você tem?

Osmar sabia exatamente o que cada garrafa em seu bar continha, mas se virou um instante fingiu olhar alguma coisa e voltou-se novamente para o cliente.

__ Tenho cerveja em lata e garrafa, vodca, vinho, algumas batidas, uísque, e a especialidade da casa; cachaça, boa e pura ou misturada. Você é quem escolhe.

__ O que for mais forte possível.

Osmar abaixou, tirou um dos copos de vidro do suporte, virou-se, apanhou uma garrafa sem rótulo com um líquido límpido e colocou uma dose até a metade do copo.

__ Essa é da boa! _ Osmar disse com certo orgulho._ A primeira é por conta da casa.

O homem segurou o copo com a mão trêmula e bebeu o conteúdo com uma única golada e sem fazer careta.

__ Mais um pouco._ Pediu.

Osmar colocou cuidadosamente mais uma dose enquanto os outros dois acompanhavam a cena, com muita curiosidade.

Antes que o dono do estabelecimento terminasse de colocar a bebida no copo o homem disse:

__ Encha o copo.

Os outros dois se entreolharam.

Osmar completou o copo com mais uma dose e um pouco mais, até transbordar.

O homem retirou do bolso um monte de notas de dinheiro, amassadas e algumas moedas que caíram sobre o balcão fazendo um pouco de barulho quando em contato com o vidro. Ele largou todo aquele monte de dinheiro e segurou o copo novamente.

__Isso paga minhas bebida.

Osmar e os outros olharam o dinheiro, mas não eram notas de real, tampouco as moedas.

__Hei! Amigo que brincadeira é essa? Este dinheiro não vale mais há décadas.

Argemiro recolheu uma nota e algumas moedas e averiguou.

A nota era maior do que as atuais notas de Real, tinha a figura de um homem com barba cerrada e branca, vestindo fardamento militar com várias condecorações; além disso, a inscrição no alto da nota dizia: Republica dos Estados Unidos do Brasil. E abaixo da efígie estava escrito: Vinte mil Réis.

__ Cara! Essa nota é muito antiga; tem um daqueles generais na frente._ disse logo que averiguou a cédula.

O dono do dinheiro bebeu o conteúdo do copo todo de uma vez novamente, como se fosse água pura e disse:

__Não é esse o dinheiro da época?

Osmar respondeu que não e pediu que ele pagasse com dinheiro usual; moedas ou notas de Real.

Humberto pediu para ver a nota de vinte mil réis enquanto o primeiro a vê-la tomou as moedas para olhar.

__Nossa! _exclamou.

O dono do dinheiro olhava fixamente para o copo agora vazio em sua frente.

__ Quatrocentos réis cada uma. _ ele disse quando o outro pegou as moedas. E pediu. _ Dê-me mais um pouco de sua bebida.

Osmar olhou para os amigos.

Humberto disse:

__ Será que isso aqui não vale algum dinheiro por ai?

Argemiro respondeu:

__ Não faço idéia, mas que é antigo, isso é.

Osmar insistiu:

__ Você não tem dinheiro então não posso mais lhe vender coisa alguma. _ se ele conhecesse o homem como conhecia os outros dois não teria problema algum em vender para receber depois, mas durante os anos que esteve à frente do bar, aprendeu a lição de que algumas pessoas se fingem de esquecidas. Além do mais, não podia se dar ao luxo de perder mais dinheiro algum.

O Homem perguntou olhando ao redor:

__ Em que época estamos?

A pergunta não teve resposta, os outros três não entenderam.

__Você é maluco ou está tentando me passar a perna? _disse o dono do bar.

__ Só quero mais uma bebida e vou embora.

__ Não vai ter bebida alguma até você mostrar o dinheiro.

Argemiro, que estava segurando a moeda, falou com um tom jocoso.

__ Cara; o dinheiro é o Real.

O homem olhou para ele, mas não como uma pessoa comum, o olhar foi penetrante, congelante e violador. Por um momento o amigo de Osmar foi invadido por um sentimento de agonia, como se algo estivesse penetrando por seus olhos e se ramificando dentro da cabeça dele. Os olhos do homem estranho, na visão de Argemiro, haviam desaparecido, como se não houvesse absolutamente nada nas cavidades oculares. Era medonho.

O homem se voltou para o copo vazio mais uma vez; Argemiro sentiu todo o mal estar cessar repentinamente, mas já sabia que aquela pessoa não era sequer uma pessoa. Havia uma voz falando sem parar dentro de sua mente.

Ele soltou as moedas, algumas caíram no balcão e outras no chão de madeira, em seguida levou as mãos até a cabeça e apoiando os cotovelos sobre tampo do balcão ficou parado, sem reação. Algo muito sério tinha acontecido.

Humberto trocou olhares com Osmar e ambos encararam o homem ainda olhando para o copo vazio.

__ Da última vez que estive aqui, a moeda era essa._ disse.

__ Você nunca esteve aqui antes; eu me lembraria._ Protestou Osmar.

__ Não aqui neste lugar; estou falando da última vez que subi até a terra.

Um silêncio mortal se instalou naquele momento entre eles.

__ Dê-me mais um pouco de bebida.

Humberto olhou para Argemiro que balbuciava coisas desconexas e disse:

__ O Miro não está bem, acho que bebeu muito.

Osmar sabia que não era isso; todos eles, embora já fossem escravos do álcool, agüentavam muito mais do que aquilo que tinham consumido naquela noite. Não tinha sido a bebida.

__ Não há luz lá.

__ O quê? _ Osmar quis saber.

__ De onde eu venho; não há luz alguma lá. Mas às vezes posso sair e venho ao mundo; respirar.

__ Saia do meu bar!_ Osmar já estava irritado, não estava disposto a perder tempo com loucos.

O homem finalmente olhou para ele e disse:

__ Seu amigo vai morrer.

Humberto estremeceu por dentro tanto quanto Osmar, mas este não demonstrou. O outro continuou:

__ Não finja que não sabe do que estou falando; não finja que esse não é seu desejo mais oculto.

__ Saia já disse!

A essa altura Humberto já havia se levantado e encostado na parede um pouco mais afastado daquela coisa que parecia uma pessoa.

O olhos do homem haviam desaparecido, eram apenas cavidades obscuras e sem vida alguma.

__ Sirva-me. _ disse o homem negro_ Mais uma dose.

Algo estava acontecendo, mas nem Osmar nem Humberto sabiam do que se tratava.

__ Dê-me mais uma dose e vou embora.

Por um momento eles pensaram ter ouvido murmúrios baixos no bar, mas só havia eles e mais ninguém. Argemiro tinha parado de se mexer e jazia imóvel olhando o nada, como se estivesse catatônico; os amigos tomados pelo medo só queriam que aquele ser fosse embora e os deixasse em paz.

Relutantemente Osmar colocou mais uma dose no copo; o outro esboçou um sorriso com dentes amarelados, irregulares e se moveu tão rápido que Humberto soltou um grito abafado.

O Homem segurou a mão de Osmar.

__ Dê-me a garrafa.

Osmar o olhou nos olhos; não havia olhos lá, somente um lugar vago e escuro, mas aquilo jamais poderia ser verdade, lembrou do que o outro tinha falado, “Não há luz lá”, os olhos só servem se houver luz no ambiente. Que tipo de criatura era aquela? Estaria mesmo faltando os olhos na face daquele homem ou Osmar estava tendo uma alucinação.

__Vá embora, por favor. _ pediu Osmar.

__Ouça _ recomeçou o visitante _ Eu posso acabar com o tormento de todos vocês, e sei que é isso o que vocês querem, só precisam pedir.

A mão dele era áspera e gelada, e soltou a mão de Osmar que recolheu o braço que ficou dormente, não sabia se pela tensão colocada no membro ou se por outra causa; e se afastou do balcão.

__ Leve a garrafa; vá embora, nos deixe em paz.

O outro lançou mão da garrafa e olhou para Humberto que fazia o sinal da cruz várias vezes tocando com a ponta dos dedos, a testa, o peito e os ombros.

__ Não querem saber quem sou eu?

__ Não. Por favor, Vá embora.

A face dele estava normal outra vez, os olhos estavam em seu devido lugar e Osmar não imaginava que tipo de ilusão poderia causar aquela impressão; era como se o outro ora mostrasse sua face e ora uma máscara quase humana, porém, de uma coisa eles tinham certeza, algo incomensuravelmente maldoso cruzou suas vidas.

__ Que assim seja então. _ disse o homem saindo e se dirigindo à porta.

Novamente a luz se apagou quando ele passou sob ela, voltando a acender em seguida. O homem cruzou o lugar novamente sem fazer barulho algum de seus passos contra o piso de madeira, andando com passos lentos e aquele jeito curvado, abriu a porta olhou para os dois homens amedrontados que o observavam e disse entes de sair:

__Obrigado pela bebida; voltarei para terminarmos nossa conversa.

Assim que ele fechou a porta atrás de si, Argemiro retornou de seu estado atordoado, confuso com os últimos acontecimentos.

Só quem já se aproximou do mal sabe a sensação que é, e aqueles três amigos jamais se esqueceriam do que sentiram naquela noite.

Luiz Cézar da Silva
Enviado por Luiz Cézar da Silva em 16/04/2010
Código do texto: T2201411
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