E os espelhos racharam

Ouviu-se um grito pavoroso que assustou as pessoas.

Entrou pelo corredor lateral, na direita das fileiras de cadeiras, no escuro e gritando como um louco:

_Socorro! _ele dizia e chorava como uma criança_ Socorro!

As pessoas se levantaram, o filme foi interrompido; as luzes foram acesas e ele caiu no chão com o rosto ensangüentado, a camisa rasgada; faltava-lhe vários dentes na boca e um dos olhos estava muito avermelhado ao redor.

Uma voz se ergueu no meio das pessoas que se perguntavam o que era aquilo, era uma voz feminina.

_Caio!_ gritou a mulher.

A funcionária que ainda estava na sala esperando a sessão terminar correu em direção do rapaz caído e acionou a segurança através do rádio; em poucos minutos toda a sala estava cheia de pessoas uniformizadas; funcionários e seguranças do shopping e do cinema.

O jovem no chão chorava e reclamava das dores por todo o corpo enquanto uma mulher se aproximou das pessoas que o estavam atendendo.

_ É meu noivo! Meu noivo! _ dizia ela.

As outras pessoas estavam apavoradas, não sabiam o que estava ocorrendo, mas a julgar pela forma como o rapaz estava, podiam deduzir que ele foi agredido, talvez tivesse sido ferido gravemente com uma arma qualquer. Mas ninguém imaginava o que realmente aconteceu.

O jovem estava muito ferido e começou a falar coisas sem o menor sentido; a cabeça dele estava cortada rusticamente, tinha sido cortada por algo não tão afiado, havia um grande rasgo vertendo sangue e um pó branco misturado aos cabelos molhados.

A noiva se aproximou abrindo caminho pelos curiosos que estavam de pé na sua fileira, e quando finalmente conseguiu se ajoelhar ao lado dele, viu que o jovem olhava fixamente para ela; os olhos apavorados.

_É ela! _ele balbuciou_ É ela.

Estendeu o braço para tentar tocar o rosto da noiva, mas ela recuou quando viu que os dedos dele estavam quebrados e desconjuntados; ela encostou na parede e teve de ser contida por outros funcionários, ficou histérica e em seguida entrou em estado de choque.

Um princípio de pânico se instalou entre os presentes; as pessoas começaram a murmurar e especular o que teria acontecido.

Ambos, o rapaz e a moça, foram removidos horas depois em uma ambulância, para o hospital mais próximo onde receberiam os cuidados adequados.

***

Caio entrou apressado no banheiro do cinema, nem percebeu que havia uma placa que dizia: “POR FAVOR NÃO ENTRE, BANHEIRO MASCULINO INTERDITADO, DIRIJA-SE AOS SANITÁRIOS DO SHOPPING”. Sua noiva, Mônica, estava na sala vendo o filme que ela tinha escolhido para o programa a dois daquela noite. Porém o filme era péssimo; um drama arrastado, onde nada de interessante acontecia; ao menos era assim que ele interpretou a película, além do mais, ele detestava filmes legendados, ao passo que sua noiva os adorava e para terminar ele não tinha o menor jeito para filmes com conteúdo um pouco mais reflexivo.

Ele gostava mesmo era dos velhos filmes de destruição em massa, com carros em alta velocidade, garotas em trajes menores, helicópteros em manobras arriscadas e muitos efeitos especiais, seus filmes preferidos sempre foram os da trilogia Matrix, mas ele tinha uma leve queda pelos filmes de terror também, obviamente com muita carnificina.

Do lado de fora do banheiro havia um grande saguão onde as pessoas compravam os ingressos e se dirigiam para suas respectivas salas; três portas dispostas em posições distintas faziam com que a multidão se dividisse. A sala número 1 ficava no lado esquerdo de quem entrava no cinema, mesmo lado dos guichês de compra de ingressos, que eram dois; a sala número dois ficava ao fundo um pouco mais próxima dos banheiros masculino e feminino; e a sala três que era a menor de todas e geralmente exibia filmes com pouco apelo popular ou em final de temporada, ficava no lado direito dos que entravam no saguão do cinema, no mesmo lado do balcão de guloseimas.

Aquela era a última sessão do dia, tinha começado às 21:45 e deveria terminar por volta de 23:10, o shopping fechava às 22:00, parte das lojas no interior também, mas algumas funcionavam até mais tarde e o cinema continuava até o horário do último filme, depois as pessoas deviam sair e não poderiam ficar mais andando nos corredores do lugar, deviam se encaminhar para a saída do shopping. Por isso muitos funcionários eram liberados e só ficavam aqueles que eram realmente necessários.

No saguão de entrada do cinema as luzes estavam parcialmente acesas, os funcionários do balcão de pipocas e doces já não estavam mais lá, a porta de entrada estava fechada, mas era possível ver o corredor iluminado lá fora porque as portas eram de vidro.

O banheiro também estava às escuras, Caio tateou a parede e encontrou o interruptor, acendeu as luzes e ficou assustado com o que viu.

Parte dos espelhos do banheiro estavam quebrados, havia seis ao todo, e três estavam totalmente destruídos; provavelmente fruto de algum vandalismo ou quem sabe um acidente, não havia cacos do espelho no chão, o que fez com que ele presumisse que devia ter acontecido na sessão anterior a que eles estavam, provavelmente algum funcionário da limpeza comunicou ao responsável e limpou o lugar. Caio ainda não tinha fechado a porta, ele a segurava com uma das mãos e voltou-se para ela, finalmente viu o aviso, mas já era tarde para ele tentar sair até o banheiro de fora, afinal as portas estavam fechadas e a saída se daria pelas portas dentro das salas de exibição do filme. Ora, ele estava ali mesmo, e apertado, que mal poderia acontecer; ele se aliviaria e voltaria para a sala de filme a tempo de ver qualquer bobagem que estivesse ocorrendo lá.

Ele soltou a porta e esta bateu sozinha, mas sem violência, era dotada de um mecanismo de molas que a fazia fechar suavemente; Caio foi até a primeira pia onde o espelho estava intacto, abriu a água da torneira e lavou parcialmente as mãos, queria tirar um pouco da manteiga e do sal que estava nelas. Mônica tinha se recusado a comer um conjunto de Guaraná gigante e pipoca brutamontes, mas como ele sabia que não ia gostar do filme, passou a primeira hora devorando o lanche, porém o guaraná se encarregou de levá-lo até o banheiro.

Depois de lavar as mãos, ele foi até o sanitário, urinou, mas foi interrompido antes de terminar.

De repente, um impacto forte sobre as costas e o corpo de Caio se projetou para frente tão rápido que ele não conseguiu reagir; o rosto do jovem se chocou contra a parede com tanta violência que alguns dentes se partiram instantaneamente. Antes que pudesse gritar ou esboçar reação alguma, ele sentiu a mão segurá-lo pela parte traseira da gola da camisa; mais um puxão e depois um novo empurrão contra a parede; agora foram os ossos do nariz que se partiram com um pequeno estalo, Caio soube na hora, mas ainda estava tentando discernir o que estava acontecendo.

A dor do nariz quebrado e o sangue que surgiu pelas narinas e na boca eram indícios de que sua vida corria perigo, mais até do que ele julgava; o mundo ainda estava rodando por causa dos dois impactos consecutivos; obviamente a pessoa que o estava agredindo não deixaria espaço para que ele pudesse se recuperar e tentar uma reação.

Outra mão o segurou também pela camisa, quase na altura da cintura, ele tentou fugir, correu mais estava sendo muito bem seguro, a camisa fez que ia se rasgar, mas um novo puxão cuidou de fazer com que acontecesse. A camisa rasgou parcialmente quando Caiu foi lançado contra a parede próxima ao sanitário que acabara de usar.

O agressor estava sempre as suas costas, não falava nada, não ofegava, parecia nem respirar. Caio tentou olhar para trás afim de identificá-lo, mas recebeu um murro potente na face; o impacto fez a órbita ao redor de um dos olhos inchar. Caio gritou.

A dor estava desnorteando ainda mais seus sentidos, por um momento sua visão ficou branca. Desesperadamente ele tentou livrar-se do agressor, levou as mãos às costas e tentou sem sucesso retirar as mãos que o prendiam; lutou como nunca antes, mas foi jogado de encontra a parede novamente, quase desmaiou.

O homem que o agredia era muito mais forte do que ele; Caio estava fazendo o máximo de força que podia, e todo aquele esforço parecia ser totalmente ineficaz.

Tentou gritar mais uma vez:

_Socorr...

O agressor o segurou firmemente pela cabeça e deu com força a cabeça de caio contra a louça do sanitário. O impacto foi tão violento que o sanitário se partiu, Caio sofreu um rasgo profundo na testa quando a louça quebrada e pontiaguda funcionou como um instrumento mal afiado, porém cortante.

_Aí meu Deus!_ Exclamou .

O desespero se tornou em pânico. Caio estava de joelhos, sempre seguro agora pelo ombro e um de seus braços que estava sendo terrivelmente torcido para trás a ponto de ser quebrado.

A água que vertia o sanitário agora escorria pelo chão, a parede fora salpicada com pequenos pontos vermelhos, o sangue de Caio, em meio aos movimentos frenéticos para tentar se desvencilhar do agressor ele estava espalhando sangue por todos os lados.

Quem quer que o estivesse dominando ali, arremessou Caio para o outro lado, na direção dos espelhos; ele se apoiou na pia onde tinha lavado as mãos, mas o fez de mal jeito, uma das mãos ele chocou com violência demasiada; aquilo partiu algumas falanges de seus dedos. A dor foi lancinante.

Mais um grito desesperado e abafado, ele estava fazendo tanto esforço para se libertar do ataque que já quase não tinha mais forças para gritar, estava concentrado em tentar sobreviver.

“Mônica”._ pensou.

A noiva devia estar lá na sala de projeções vendo o filme sem saber que ele estava sendo terrivelmente surrado por algum covarde, provavelmente um homicida.

A visão de Caio estava sendo prejudicada pelo sangue e o suor que escorriam para os olhos, os mesmos estavam ardendo bastante. Mas quando ele finalmente se viu livre, sem que o agressor o estivesse prendendo o braço ou o ombro tentou virar para confrontá-lo de frente mesmo com o corpo já bem ferido e a falta de forças que o assolava.

Algo medonho aconteceu; foi bem rápido, mas antes que ele se voltasse, viu pelo espelho o reflexo da pessoa que o agredia tão desumanamente; não era um homem, e sim uma mulher. Cabelos louros e longos, pele e rosto pálido e olhos vermelhos como se fossem totalmente constituídos de sangue; Ela usava uma roupa branca que na verdade era um vestido longo.

Caiu desistiu de virar para encará-la de frente, teve tanto medo que sentiu o líquido quente descer por suas pernas, obviamente, ele ainda não havia esvaziado a bexiga antes de ser atingido pela primeira vez.

As torneiras se abriram sozinhas chamando a atenção do rapaz que chorava vendo o reflexo daquela mulher, em seguida ela olhou para ele através do espelho, as pernas dele perderam o pouco de força que ainda tinham e uma dor fina o açoitou o peito, além disso, uma sensação de calor intenso tomou seu corpo, era o terror mais escondido que todo ser humano carrega dentro de si, em compartimentos sombrios que teimamos em ignorar durante toda a vida.

Os espelhos racharam quando a mulher olhou para Caio através de um deles; a água que vertia das torneiras inundava todo o chão e tão abruptamente quanto aquela assombração apareceu, também sumiu.

Caio correu ignorando as dores diversas no corpo, saiu do banheiro abrindo aporta com a mão cujos dedos estavam quebrados; ele fez uma careta deformada e aquilo contribuiu para tirar os ossos dos dedos de seus devidos lugares. Caio correu como se estivesse prestes a morrer, entrou na sala onde Mônica e os outros estavam assistindo o filme, com um grito aterrador, em parte pelas dores e em parte pelo pânico.

Luiz Cézar da Silva
Enviado por Luiz Cézar da Silva em 10/04/2010
Código do texto: T2189429
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