ESCRAVA DA LUA

Sua plenitude era tão intensa que a esfera pálida roubaria para si todas as atenções, ainda que houvesse algum tipo de concorrência no céu escuro e desprovido de estrelas daquela noite. Meu peito insiste em guardar a lembrança de uma tristeza crua e mórbida, talvez mais impetuosa que o próprio plenilúnio. Mas, esse não era o sentimento mais veemente a me dominar. As lágrimas transparentes e límpidas, que lavavam meu rosto com a autenticidade da dor, se faziam presentes por algo ainda mais primitivo: a raiva, o desejo de vingança!

A dor física já havia sido superada, apenas os lamentos da alma ainda me torturavam. O mesmo eu não podia dizer de minha mãe, que sofria atrelada aos grilhões daquele tronco, tendo a carne dilacerada por açoites desumanos. Suas costas nuas estavam manchadas pelo líquido vivo, o qual remetia aos contornos encarnados do círculo celeste. Ambas se desmanchavam em sangue. Ambas clamavam por clemência.

A chibata do feitor estalava no ar e descrevia novos riscos rubros no corpo daquela que eu amava, a única que me restava. Há muito meu pai e irmãos de sangue haviam sido levados, mortos, pelas águas do rio. Era certo que em breve ela os encontraria. Meus irmãos de pele entoavam um cântico de pesar ao redor das chamas de uma fogueira, eles pediam paz para aquela que em breve nos deixaria.

Eu só tinha treze anos, mas queria estar com eles, com a minha família, onde quer que estivessem. Mas não sem antes acabar com todos os malditos, com todos aqueles que trouxeram tanta dor ao meu povo. Eu clamei por ajuda aos céus e ao inferno, minha vida não teria descanso até que conseguisse realizar esse desejo que me consumia.

O ritmo em meu peito aumentava, ao passo que o de minha mãe cessava por completo. Ela estava morta. Seu corpo permanecia preso aos ferros enquanto eu derramava minhas últimas lágrimas aos seus pés. Prometi a mim mesma que nunca mais choraria.

O capataz me agarrou pelos cabelos, desferiu um tapa em meu rosto e me arrastou pelas pedras salientes do solo irregular. Maldizia minha existência, praguejava contra minha raça, mais do que isso, dizia que a noite já havia traçado o meu destino. Um rastro de sangue ficava pelo caminho.

Ele não fazia o trajeto em direção à senzala, eu já sabia de suas intenções e torcia para que meu corpo resistisse e encontrasse forças para a desejada vingança. Fechei os olhos, trinquei os dentes numa mescla de nervosismo e concentração. De repente, ouvi um baque e parei de ser arrastada. Abri os olhos e percebi que meu agressor havia sido atingido por uma pancada e estava desnorteado. Um dos escravos gesticulava e gritava. Pedia, atropelando as palavras, para que eu fugisse, corresse o mais rápido que pudesse.

Assim eu fiz. Irrompi pela plantação de café, exigindo toda a velocidade que a juventude era capaz de proporcionar. Venci o labirinto verdejante e ganhei as matas. Já distante, olhei para trás e ainda pude visualizar o meu salvador sendo arrastado a base de chicotadas. Continuei a correr. Percorri uma boa distância até ser vencida pelo cansaço, pela falta de fôlego e por um súbito mal estar.

Meus ossos doíam, os músculos queimavam. Parecia que minha alma ardia em chamas. Eu sabia que estava mudando, ainda não entendia como ou porquê, mas aquela dor não era natural, algo semelhante ao que experimentava sob o castigo dos açoites. Era pior, insuportável. Espasmos involuntários me dominavam enquanto eu me arrastava pelo chão. Meus gritos não alcançavam ajuda. Pensei que fosse morrer, e realmente morri. Não de uma forma usual, mas deixei para sempre aquela existência simples. Tive o espírito roubado para receber em troca um sopro demoníaco. Lágrimas sangrentas foram despejadas sobre meu corpo. Vinham diretamente dos céus, vertidas pela minha nova mãe. No fim das contas o maldito estava certo, meu destino já estava de fato traçado naquela noite.

Minhas mãos e pés tocavam o chão com leveza e desenvoltura, uma comunhão perfeita. O vento gelado alisava meus renovados cabelos. Fui apresentada a novos e inúmeros aromas, tons e cores, algo que jamais imaginei ser capaz de existir. Tudo estava tão nítido quanto as águas de uma nascente. A raiva não havia me abandonado, mas dessa vez não era a protagonista em meu existir. A força que me impelia era outra, ainda mais forte e urgente, e se eu não atendesse ao seu chamado, talvez ela mesma me consumisse.

Cruzei a lavoura e as cercanias da fazenda com a sutileza de uma sombra amaldiçoada. Inspirei forte o ar noturno. Percebi a presença daquele que eu buscava, seu mau cheiro atiçava meus instintos. Ele estava sentado nas escadas da casa grande. Montava guarda com uma espingarda no colo. Sorri, e tive plena convicção de que meu sorriso desmancharia a coragem do mais valente. Fui ao seu encontro com a mesma determinação que já possuía, mas desta vez revestida com a capacidade de impor a minha vontade.

Ele não se deu conta da minha presença, e quando percebeu já era tarde demais. Ainda deixei que reagisse, que tivesse um leve sopro de esperança. O chumbo de sua inútil investida nada fez além de me causar um ínfimo desconforto. Coloquei-me de pé e pela primeira vez o olhei de cima para baixo. Deslizei meus dedos pela maciez de seu tronco, produzindo sulcos profundo e doloridos. Deliciei-me com sua dor e medo. Quis tornar eterno aquele momento, mas a consciência que me domina é incapaz de controlar a bestialidade da minha nova existência. A ardência no estômago era por demais cruel e precisava ser aplacada.

Como um motor de força ininterrupta, minha mandíbula se movimentava com voracidade e rapidez. Nunca pensei que o corpo odioso e repugnante de tão vil criatura pudesse oferecer um sabor tão apreciável. Ingeri sua carne. Sorvi seu sangue. Mastiguei seus ossos. Mas não estava satisfeita. Então, derrubei sem cerimônias a folha de jacarandá da casa grande e entrei pelas dependências proibidas. Segui meu olfato e encontrei cada ser vivente ali presente. E eles também me encontraram. Depararam-se com um horror inimaginável. Fartei-me com a carne do todos os homens, mulheres e crianças que cruzaram meu caminho.

Ganhei os domínios da noite mais uma vez. Ouvi os lamentos do meu povo. Eles sabiam que o demônio estava ali. Segui o som das vozes e cheguei à senzala fechada. Com um leve movimento venci o jugo das correntes deixando o ar noturno penetrar naquele lugar sofrido. Meus irmãos de pele me olhavam com um temor justificado, pois eu já não era capaz de controlar meus próprios atos. Com ferocidade avancei sobre eles e continuei a carnificina, já não havia vingança nas minhas atitudes, apenas a necessidade de aplacar a fome que me consumia. Meu povo foi vítima de uma violência infinitamente superior a que até então lhes era submetida, e, para minha vergonha, fora eu a responsável por tal atrocidade.

Meu rosto mais uma vez estava lavado, mas desta vez não por minhas lágrimas ou próprio sangue. A essência ali estampada provinha das vidas ceifadas, umas por merecimento, a maioria não, entretanto todas vítimas da mesma brutalidade insana que viria a me acompanhar eternamente a cada mês. Antes de desaparecer pela mata ainda encontrei o meu salvador com o corpo retalhado e preso ao tronco de castigos. Gostaria de dizer que fui capaz de poupar-lhe da minha ira, mas não fui. Caminhei até o nascer do sol, sentindo o gosto do seu sangue na garganta.

Terminei a primeira noite da minha nova vida desfalecendo na relva, mas não sem antes sofrer com a dor da reversão, algo tão intenso quanto o experimentado horas antes. Acordei irreconhecível, renovada em forças, mas dominada pelo mais absoluto remorso. Tive consciência de que, embora lúcida durante todo o evento, o demônio em mim dominava todas as ações. Busquei a resignação, não a encontrei completamente.

Desde aquele distante ano de 1878 oscilo momentos distintos no meu modo de agir. Mantenho os mesmos contornos infantes que exibia na noite em que o inferno ouviu meus apelos, não ganhei uma só ruga. Às vezes sinto a necessidade de controlar o ímpeto da fera e durante o ciclo maldito me prendo em amarras de prata, me sinto incomodada pelas lembranças das torturas a que eu era submetida, mas me conformo. Entretanto, em algumas ocasiões sou invadida pelo cheiro do medo, pelo gosto do sangue, por uma vontade tão grande de provar mais uma vez a carne humana que a saliva chega a escorrer pelo meu queixo. Nessas noites, não consigo segurar a fera em mim e liberto o demônio insaciável.

Hoje estou aqui, numa cidade grande. Um mundo tão diferente daquele que nasci. Pessoas vem e vão tão descrentes e indiferentes, totalmente alheias ao perigo que as cerca. Minha mãe brilha no céu. Tenho fome. Hoje não ficarei presa como uma escrava novamente.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 08/04/2010
Reeditado em 18/02/2011
Código do texto: T2184589
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