A Garota Dos Mortos
"A manifestação do temor era múltipla
despojada das faculdades mentais,
silenciosa em sua dor, jazia estupefata,
qual fugia, qual ficava."
(Ovídio, ao descrever o
terror das mulheres sabinas)
Vive-se nesta dimensão de tempo e de espaço convivendo, simultâneos, com outras dimensões do existir. Próximas, ao mesmo tempo infinitamente distantes. Existe-se numa densidade da matéria que, exceto em raras exceções, nunca consegue ultrapassar os limites intransponíveis entremundos.
São muitos os paradoxos a vencer no congestionado caminho entre os pressupostos científicos incontestáveis, os dogmas dos sistemas de pensamento estabelecidos, versus os fenômenos que não são por eles explicados dentro das fronteiras da racionalidade acadêmica. A humildade diante do desconhecido facilita sua compreensão.
O tempo presente e o tempo passado. Não me havia detido sobre como a influência pretérita age, inspira, transmite fluidos, ascendência, ressonância. Os vivos de ontem conseguem penetrar no corpo etérico dos vivos de hoje?
É possível à energia transcendente dos mortos, ou de seres de outra dimensão, transgredir as leis de distanciamento que separam as fronteiras entre este e outros estados físicos mais fluidos da matéria?
Depois de conhecer Paula, estou certo da existência de forças cruéis, aflitivas, fortes. Desejam manter as pessoas que nascem neste mundo sob a tutela de medos, dores, frustrações, desejos mórbidos e sofrimentos. Diderot afirmava que o homem nasce no mundo de uma hereditariedade predisposta a fazer-lhe mal.
Esta história talvez possa contribuir para uma melhor compreensão deste fenômeno:
Encontrei Paula na fila de cinema do shopping center Iguatemi, num fim de semana do mês de junho de 1989. Começam um namoro. Na sala de seu apartamento, a presença de cinco molduras de metal antigas: servem de encaixe para fotos de ancestrais. Cinco fotografias, embaçadas pela turvação do tempo, formam na parede uma estrela de cinco pontas: pentáculo decorativo.
Paula divide o espaço do apartamento com a tia. Como qualquer garota em busca de proteção, indefesa frente às exigências de sobrevivência do selvagem zoológico de uma realidade que determina a insegurança da humana condição.
Quem não está indefeso neste zoo? Jovem balzaquiana, vive suas contradições, recém egressa dos vinte anos. Para ter menos problemas, gostaria de ser estável como uma tia: casada, mãe de filhos, marido sob controle da libido.
Não é assim que a vida acontece. Participou do último alento do movimento hippie na década de setenta. Provisória liberdade sexual forneceu à Paula a ilusão de que abriu uma porta a separá-la da estreita mundividência metalfísica da geração de sua tia.
Paula está dividida entre assumir os preconceitos de uma concepção excessivamente mesquinha dos sentimentos e emoções, ou viver num contexto em que valores tais são, real e simplesmente, pó. Teme talvez ficar sem a contribuição dela nas despesas do apartamento.
A tia parece aceitar minha presença sem restrições. Exceto a de vir congestionar o espaço habitacional dela, da sobrinha e da filha desta. Paula denuncia seu autoritarismo. Eu acho a tia uma mulher enérgica. Apesar da idade, não renuncia à defesa anacrônica de muitas opiniões anacrônicas.
Gosta da empatia tvvisiva com as personagens do horário nobre da novela das oito, dos musicais de música caipira e da programação dominical do tio Silvio.
Apesar de balzaquiana, Paula não passa de uma adolescente vivendo os conflitos de uma família medianamente estruturada. Personagem de uma geração que apenas ensaiou criar um “l esprit d équipe”.
O espírito de equipe de uma geração que se dispersou. Representa o papel familiar de uma garota que sabe das coisas da vida ... mas sua idéia atual do conflito de gerações é apenas um fenômeno de superfície.
Talvez deseje, ela também, vir a ser uma tia normal, sem mais conflitos. Convivendo pacificamente com todos, apesar das entrelinhas desfavoráveis, da existência de arestas que não podem ser aparadas.
Normal que a velhinha não goste que seus programas tvvisivos sejam interrompidos pela exibição em vídeo de filmes que, por vezes, fazem cessar a sensação dominical de estar participando coletivamente das emoções do topa tudo por dinheiro.
No domingo, que programa pode ser mais importante para ela, do que as maravilhas de sua convivência cultural com as gracinhas do tio Gugu do PCC, seu Domingo Legal? Comigo e Paula, a intimidade tolerada. Simpatizo com ela, faço as concessões de praxe. Os vídeos ficam para depois de sua fruição cultural da lavoura arcaica dominical.
Sobrevivente da contracultura do período hippie, aprendi a aprender a ser tolerante. Respeito as pessoas sem perder de vista um certo distanciamento. Sem fazer concessões além das necessárias. A tia não espera que Paula e eu tenhamos maturidade suficiente para manter um relacionamento afetivo, emocionalmente estável, a longo prazo.
Apostam, as tias, que vêm visitá-la ou telefonam com frequência, na desvitalização a médio prazo do namoro. Não falam às claras. São como que partícipes de uma associação oculta de mulheres, das quais se intui o sentimento inquieto, magoado e oculto. Porém, sei decifrar as entrelinhas das conversas ouvidas ao acaso. Eis Paula para elas: apenas uma pessoa sob controle. Absolutamente previsível.
E se assim não for, saberão como providenciar no sentido de que a influência delas prossiga preponderante. Nossos fins de semana terminam na segunda de manhã, quando a rotina do trabalho exige os horários lançados nos cartões de ponto.
Estou estrangeiro neste universo ordenado das tias. A compatibilidade libidinal nos segura. Não ignoro o que representa o circo das aparências mantidas. Ela costuma sublimar as agressões subreptícias, veladas. Age como se todos os dias do ano fossem primeiro de abril.
Paula aceita os jogos de palavras e as brincadeiras carregadas de auto-afirmação de terceiros. Acontecem, como se fosse num universo paralelo de cinismo mal disfarçado: a passiva aceitação de sua condição de prima pobre da família.
Os componentes sádicos do caráter de alguns familiares, exerce-se de maneira a mais natural possível. Usam Paula como se fosse uma médium masoquista de suas projeções mentais. Ávidas por prosseguirem exercendo domínio anímico a partir da prevalência econômica. É como se lhe apunhalassem o coração e depois pusessem um band-aid.
A prima pobre deve, segundo seus pensares, submeter-se à riqueza de suas boas intenções, por mais pérfidas que sejam. Na real, somente desejam que faça parte da realidade familiar como uma pessoa que conhece seu lugar.
Nesses seis últimos meses de convivência, estranhos sonhos insistem em povoar meu sono. A memória onírica tornou-se nebulosa e sombria. A cabeça pesa como se estivesse sob a pressão maquiavélica de uma força estranha e sutil, agindo na mente com sinistra subrepticidade.
Sábado de madrugada, há dois meses, aconteceu surpreender-me imerso num estado de torpor. A luta entre sono e vigília se firmou. Uma sensação de crescente paralisia imobiliza os membros que não obedecem à vontade de querer movimentá-los. Abrir os olhos é o mais que consigo de meus movimentos.
Estão mesmo abertos? Ou estas sensações não passam de pesadelo? Há a presença coercitiva desta névoa transparente, opressiva, cristalizada em torno de corpo: imobiliza membros, ameaça de extinção os sentidos. Impede a visão em profundidade.
No quarto na penumbra, sinto-me preso igual estivesse no interior de uma redoma de cristal numa cerimônia de holocausto. Observado, censurado por dezenas de olhares repreensivos, admoestadores. Deles emana castigo, malefícios, intimidação e ameaças.
Como sair fora desse horror? Quero despertar, não consigo. Não é sonho nem pesadelo. Desejo emergir desta sensação paralisante, tumular. Deste magnetismo entorpecente, nefasta emanação proveniente de seres a serviço de indizível morbidez: do mais puro mal.
Esses seres ameaçadores não são de carne e osso. Se o fossem, me teriam trucidado. Penso que são entidades incorpóreas. Estão presentes por todo o espaço capsular do quarto: íncubos e súcubos, talvez. Os olhos entreabertos fecham-se. Estou cercado de maldade, medo e horror por todos os lados. Que fazer para vencê-los? Provocam uma empatia abjeta, abominável.
O simples gesto de abrir e fechar os olhos outra vez, causa uma reação de hesitação na força coletiva a me ilhar. O fanatismo dominador da mórbida energia paralisante arrefece. Por momentos, a força magnética, não se faz tão forte. Os agressores são covardes. São legião, por que estão aqui, em meio a seres mais compactos de outra dimensão? Por que não estão no apartamento ao lado, nos do andar superior ou no inferior?
Senti intensificar, como se fosse possível, o ódio insano desses malfeitores do astral. A incontrolável e maligna ira não pode ser maior. Encontra-se numa intensidade limite de manifestação ritual. Persisto lutando para poder emergir dessa bruma. Consciente de estar partícipe dessa liturgia macabra.
Resistindo à tirania, abro pela terceira vez os olhos, a única forma que encontro de reagir à covarde drenagem da energia vital. A turba, sentindo a reação pertinente de minha consciência, ainda que tênue, esvazia o aposento como se sugada por um funil com grande poder de sucção.
Paula, você está bem? Quero pronunciar a frase. Outra vez não saem os sons.
A luta pela autonomia da consciência prossegue. A nefasta e impertinente opressão dessa espécie de demência astral coletiva, pusilânime, é uma experiência da qual se precisa emergir vitorioso. Esses seres de influência sepulcral não pertencem a este mundo. Desejam exercer sobre os vivos seu enfermo e morbíparo poder de vampirizar.
Consigo, finalmente, estender o braço, em câmara lenta, rumo ao corpo de Paula. Busco sentir seu contato, ela não está na cama. Estranho. A estas horas da madrugada não costuma sair do quarto. Consigo mover o dedão do pé esquerdo. Após o súbito afastamento dos seres tumulares, os músculos aos poucos adquirem outra vez a contumaz elasticidade.
Afunilaram-se, com força sutil, mas avassaladora, as sanguessugas da vitalidade humana. Poderiam ter seqüestrado Paula para a dimensão donde, de alguma forma, vieram? Qualquer que fossem, suas pretensões não foram de todo satisfeitas.
A sinistra força, ao se transferir para o mundo mais sutil, continha a intenção de carregar consigo o espelho, o guarda-roupa, a cama, a estante, as caixas de som, o micro, os móveis do quarto por ela provisoriamente impregnados.
Passados alguns minutos, caminhei até a sala em busca de Paula. Nela chegando, vejo por breves momentos (ilusão de óptica?), o espaço interno do pentáculo formado pelas fotos de seus ancestrais, se afunilar, contrair, numa espiral de partículas cinzentas girando em sentido horário. O fenômeno sumiu rapidamente, sugado pela força de aceleração centrípeta de seu epicentro.
Apalpo perplexo a superfície da parede em busca de algum indício real da fantástica visualização. Emana da área central do pentáculo intensa algidez, remanescente da sucção dos corpúsculos cinzentos, persiste a presença de intenso magnetismo, a incitar para si minhas mãos em direção ao ponto na parede no centro do pentáculo.
Paula está prostrada, subjugada. O corpo tencionado ao longo do sofá. O branco dos olhos abertos aparecendo, como se estivesse sob efeito de forte transe hipnótico. Bato de leve em suas faces, chamando-a de volta ao estado desperto, à consciência.
Paula, você está bem? Desperte. Sai dessa, reaja.
A sombria presença de mais alguém se faz sentir na sala. O medo do desconhecido volta a acontecer. Seja o que for, entidade elementar aliada à larvas ou micróbios errantes do astral, não vão conseguir entorpecer-me. Manterei perene a vigília.
Os olhos da namorada são duas tochas brancas, apesar da ausência das pupilas, passam a impressão de estar vendo tudo. Como se a participar ativamente do mórbido evento. O olhar de alguém mais na sala está pousado em mim, carregado de advertências, deseja ver-me acossado: uma adversidade próxima a lançar seu malefício.
Preciso vencer o medo agora. Uso o fato de estar com sede, como se de ressaca, apesar de não ter ingerido qualquer bebida alcoólica há dias, para sair da vizinhança do sofá e encarar o envilecido desafio do olhar adversário. Olhar que logo se transforma numa malta de seres indefinidos, estranhamente familiares, que me encaram a partir dos globos oculares de uma mesma face.
Por uma sincronicidade junguiniana, havia terminado de ler, no dia anterior, o livro de Alexandre Herculano, Lendas e Narrativas. Aflui agora à consciência, trazida à tona pela força da memorização à rápido prazo, somada à imagem que se delineia a poucos passos, a frase: “As feições enrugadas, a palidez do rosto, o encovado dos olhos, que lhe davam aos gestos todos os sintomas de cadáver.”
Cada olhar que se sucede busca acessar minhas emoções, intensificar possível manifestação emocional de medo. O espectro é a representação da força de uma profusão de pessoas nele sepultadas. Através de sua aparição busca sugar minha energia vital ao máximo, através do temor. Representa a configuração doentia de energias há séculos, talvez milênios, determinadas em permanecer juntas, em reforçar uma espécie de transcendência cadavérica, de poder maléfico, sobre os vivos.
Olhos espreitam, esperam atingir uma faceta de meu ser emotivo, fazer prevalescer alguma magnética tentativa de sedução. Decepcionam-se. Nada cedo de meu espaço anímico, ainda assim a investida maquiavélica mantém-se.
Seu propósito não logra êxito, mas insistem, os olhares absintados, e as sombras que deslizam sorrateiramente ao derredor, em fixar-me com mórbida e impertinente intencionalidade, como se objetivando horrorizar-me ao extremo de provocar uma síncope, devido a estímulos mórbidos, de uma intensidade macabra, que terminariam por afetar meu sistema nervoso central, através da perda de suprimento sanguíneo no cérebro.
Mantive-me numa atitude de combate, a partir da convicção de que aqueles seres espectrais não poderiam causar-me dano físico, se eu não cedesses à sua morbidez subjetiva. Tais seres vivem de sugar as emanações emocionais de pessoas carregadas de raiva, ódio, medo, ressentimentos. No mundo atual sentem-se à vontade, proliferam em abundância. Garantem seu alimento sutil sugando-o da falta de equilíbrio nervoso da maioria silenciosa, de suas emoções planetárias desvairadas.
Os ressentimentos intensificam-se de tal modo, que não vejo o momento de afirmar-se uma agressão física. Nesse instante salta sobre mim como se quisesse esganar-me, a estrutura óssea crispada: mãos longas e longos braços tentam fechar os dedos desencarnados em meu pescoço. Estou partícipe de uma zona de eventos incomuns, manifesta, talvez, entre duas dimensões da matéria.
Súbito, num gesto defensivo, meus braços se postam cruzados frente ao rosto, enquanto o tronco verga para trás, ao modo de um boxer que se defende de um soco cruzado do rival, num ângulo de 90 graus.
Não consigo fácil livrar-me das mãos descarnadas que pressionam as falanges em torno de meu pescoço. A coisa parecer estar recolhendo-se ao corpo larvar, mas não...está de volta agora, outra vez, em minha direção, pressionando mais, como se numa última tentativa de fazer-me esmorecer, desmaiar. Minha força vinha do fato de que estava a proteger não apenas a mim, mas à minha companheira e à sua filhinha, pelas quais mantinha dedicação e simpatia.
Levanto o pé à altura do queixo da visagem impressionante, numa resposta condicionada à agressividade da entidade trajada de hostilidade e horror. Enrijeço os músculos na tentativa de minorar os efeitos do impacto.
Surpresa: a coisa larvar talvez tenha perpassado a densidade física de meu corpo, e rapidamente se esvai, dissipando-se, sem que pudesse notar para onde se deslocou. Talvez para um jazigo coletivo num cemitério. Quem sabe tenham voltado para algum satélite, planeta ou meteorito que tenha se aproximado demasiado da órbita terrestre. Como vou saber?
O corpo plenus larvarum continua na sala, só que, enfim, parece estar domesticado. Para vencer sua investida usei o princípio do espelho universal: "Dirijo a você, em dobro, a intenção reflexa de sua imagem. Imune sou a qualquer negação de minha dignidade".
A visão da malta de olhares ameaçadores, aos poucos foi sendo substituída por um único e patético olhar. O olhar familiar da indefesa tia, vestida num roupão, de pé, no corredor de acesso à cozinha.
Ahh, é você tia.
Ela gruniu uma resposta, afastando-se em direção ao quarto, passos flutuantes, como se estivesse pisando em ovos.
Chego à cozinha, ainda atônito, ingiro um copo de água. Volto à sala onde Paula parmanece imersa em algum nicho mental do mundo dos pesadelos.
— Paula, que está havendo? Desperta logo desse torpor medonho. Está tudo bem agora.
Sussurrou algo numa dicção obscura, sentou-se no sofá. A pele está excessivamente fria. Gélida mesmo. Aos poucos consegue levantar-se e caminhar até o quarto. Chegando à cama, desmaia de sono.
Não consigo dormir. Meu ego indaga ao inconsciente excitado muitas coisas. Perguntas sem respostas. O domingo amanhece nublado. Neste e nos dias seguintes, falta clima para serem comentados os acontecimentos.
Cinco dias depois e ela ainda esquiva, arredia. Sexta-feira, ao entardecer, compramos alguns livros na Livraria da Vila, na Vila Madalena. A seguir entramos num dos bares próximos. Paula pediu um suco de laranja e um chope. Eu, água mineral e um cointreau.
Aquela coisa aconteceu outras vezes, por que você não disse nada?
A conversa por si mesma carregada de certa tensão. Responde a pergunta temerosa de entrar no mérito da questão. Estou ansioso para ouvir sua versão dos fatos.
Vamos falar disso depois?
Este não é um argumento coerente. Ficar pra depois?
Qual é a sua? Como pode sublimar esse horror? Agir como se nada houvesse acontecido? Estou saindo fora desse ambiente cataplasmado, não vou ser conivente com isso.
Não sei ao certo o que aconteceu. Estava dormindo.
No sofá? Você nunca dorme lá. Por que estava nele exatamente quando a coisa ruim aconteceu? Acha natural seu transe?, que houve realmente?
Paula replicou agressiva:
Coisa ruim? Todos vivem em meio à coisas ruins. Pode haver algo pior do que a justiça, os políticos? Você não anda pelas ruas? Nem lê jornal ou assiste tvvisão?
Faltou perguntar em que país estou vivendo. Está francamente na defensiva:
O horror, você fala em horror. Não sabe? É onipotente, onipresente, onisciente. Está em todos os lugares, o horror é Deus, cara. A realidade nas ruas das cidades. A violência, a fome, o sadismo da sociedade...
A argumentação procede. Mas não justifica abrir mais espaços para que ele mais completamente se manifeste.
Paula está francamente exaltada. Confusa. Como se estivesse querendo pressioná-la sem motivo considerável. Está a esconder coisas.
Querendo que eu encare a coisa com naturalidade, é isso? O medo e o horror são fenômenos sociais generalizados ... Ora, Paula, nem por isso vou garantir lugar na galera do pavor, da criminalidade e do medo. Não, obrigado, tem muita gente inscrita nesses partidos, jogando nesses times. Fazendo parte dessas máfias.
Ora, digo eu, afrontou. Todos parecem estar entregues, sem motivação para reagir...
Ser troglodita é o normal, mais cômodo.
Ficou falando. Eu ouvindo seu discurso buscando não polemizar. A excitação visível, indica uma atitude coerente com a situação, a exaltação do ânimo. Estava tergiversando. Fugindo do envolvimento no mórbido evento. Temerosa de admitir participação...
Você ouviu na TV, o refrão comemorativo da seleção brasileira tri-campeã mundial de futebol júnior? O país inteiro comemorou com muita propriedade: “Ô-Ô-Ô, o Brasil é um terror”. Você ainda não sacou? nesse país, quem, de alguma forma, não estiver envolvido em crimes, narcotráfico, assassinato, roubo, assalto, clonagem de cartões de crédito, corrupção do colarinho branco, tal pessoa corre o risco de ser assassinada.
A excitação chegou a um clímax vexaminoso. Afirmei:
Take it easy-se baby, o crime, o horror e o medo nunca vão parecer normais para ninguém. Nem mesmo para as forças que fazem deles uma estatística aterrorizante.
— Não importa, querido, a coletividade das máfias é mais forte do que a força pessoal de cada indivíduo. Elas exercem com sádico maquiavelismo, todos os tipos de pressão possíveis.
Uma crueldade fanática e determinista na tonalidade de voz.
Você está apenas defendendo a morbidez. A mediunidade doentia de sua tia, estou certo? Desista, essa coisa não tem defesa. A força do desprezo mostrou minha intensa indignação.
Passaram-se momentos sobre os quais pairou, como um Anjo do Senhor, o silêncio. A esotérica beatitude do silêncio. Paula começou a soluçar. Daí a pouco, a chorar um choro compulsivo. As lágrimas abonam certa contrição.
Soluçando, falou, como se cochichasse um segredo confinado sob sete chaves. A ponta do "iceberg" do enígma emergiu como uma catarse de dentro de seu psiquismo. Emergiu. Claro como um dia solar. Negro como as trevas saturnais:
Acontece por vezes. Quando a menstruação é farta e o fluxo do sangue permanece por mais tempo.
A voz, uma revelação sentida, profunda, sincera, dos acontecimentos passados:
Não sei bem como acontece. A lua deve estar em quarto crescente. Sucede comigo desde os treze. Sinto-me tiranizada por esses miseráveis agentes do terror. Alma e corpo se revoltam. A sensação de estar sendo usada por essa maldição...
. . . Não agüento mais. A tia diz que quem entra não pode sair. Há a “omertá”, conspiração do silêncio. Ninguém fala pelo medo disseminado da ameaça pelo terror. Não quero mais, que venham através de mim.
Após longa pausa pronunciou um convicto e sonoro Não. Nunca mais. Mesmo. Ajude-me a sair disso, por favor.
Sim, aconteça o que acontecer, não vou permitir que enfrente este distanciamento sozinha. É certo que não teria forças para manter-se distante do ritual, sob a pressão do matriarcado das tias. Não teria forças, sozinha, para vencer argumentos em contrário.
Compreendo exatamente a extensão de seu apelo? Está querendo dizer que as emanações de seu sangue menstrual estavam sendo usadas para atrair entidades astrais que abusam de pessoas menos conscientes, e as transformam em médiuns de um culto muito antigo, supostamente desaparecido?
A Bíblia menciona muitas vezes os sacrifícios de sangue de animais e pessoas: quando Abraão é compelido pelo Anjo do Senhor a sacrificar seu filho Isaac na rocha Moriá. Ainda que esse sacrifício não se consume.
Nas principais culturas pré-colombianas, o sangue celebrava as entidades astrais. Vampiros reclamavam sangue, torturas e sofrimentos, animais e humanos, dos sacerdotes que os invocavam. O sangue, poderoso coagulador psíquico, exalta emoções, instintos e paixões destrutivas.
Na Odisséia homérica, Ulisses, após chegar à terra dos Cimérios, na entrada do mundo subterrâneo, degola as vítimas e derrama o sangue delas numa cova: “Vindas do fundo do Érebo, juntaram-se as almas dos mortos, anciãos experimentados na vida, delicadas donzelas de corações afligidos por penas recentes, e guerreiros feridos por lanças de bronze, vítimas de Ares... Acudiam em chusmas de todos os lados da cova, com grande clamor. Fiquei pálido de terror.”
Após haver falado com a alma do oráculo tebano Tirésias, Ulisses ficou imóvel, Ulisses viu sua mãe chegar e beber do sangue negro. Após tê-lo ingerido, ela o reconheceu e falou: “Meu filho, como vieste em vida a esta bruma tenebrosa? ... Esta é a lei dos mortais, logo que morrem: os nervos não mais seguram as carnes e os ossos... logo que a vida abandona a branca ossatura, a alma se dispersa-se como um sonho. Apressa-te a regressar quanto antes à luz. Guarda na memória todas essas coisas...”
As outras almas dos defuntos pareciam sequiosas para beber do sangue e ir contando suas exasperações.
As facções místicas que govenavam a Atlântida, prestavam culto à entidades mefistolfélicas da Noite Antiga. Um desses partidos ofertavam vítimas a Xotli, o Senhor do Terror. Os atlantes sacrificavam milhares de escravos, capturados nas regiões mais periféricas, em honra à sua perversa e sequiosa divindade.
Paula mencionou outras coisas, entre elas, um livro de circulação restrita no ambiente esotérico das tias. O acesso apenas ao nome:
"O Livro da Criança das Trevas
Do Jovem das Trevas
Do Adulto das Trevas
Do Idoso das Trevas"
Ficou gravado na mente devido ao inusitado de sua designação. Desabafou por longo tempo: lembranças traumatizantes, até então reprimidas, foram como que vomitadas. A situação dramática: tanto tempo vítima de extrema e violenta coação anímica, sentimentos de horror vieram à tona.
A verbalização da tragédia pessoal, o alívio pertinente à purgação de culpas ...comeu o fruto amargo por muito tempo. Verteu o ferimento de sangue. Expeliu as obscenidades que a haviam exaurido por toda uma vida. Mostrou as luas crescentes, que eu conhecia, tatuadas no pulso direito, nos seios e na parte interna da coxa esquerda.
O fanatismo gratuito do discurso anterior desapareceu. Parece ter sido anistiada das suas culpas pelo Anjo do Silêncio. Em nenhum momento foi dominada pela emoção.
Disse que a tia estava se mudando do apartamento. Que jamais admitirá ser novamente usada pela mediunidade destrutiva dos familiares. Falou que, entre os homens, há um ritual masculino. Afirmou que sua ginecologista vai dar um jeito no excesso do fluxo de seu plasma menstrual receitando certa vitamina.
Fique comigo, amor, prometa que não vai me deixar sozinha. Nunca. Por favor. Aconteça o que acontecer não serei médium dessas forças outra vez. Jamais.
O namoro não terminou, está suspenso. Estamos de acordo em manter um certo distanciamento. Pediu a tia para levar as fotos dos parentes quando, em breve, se mudar do apartamento. O pentáculo formado pelas fotografias de seus ancestrais, foi substituído por fotografias de sua filha na parede da sala.
Quem sabe, com ou sem minha presença, ela possa conduzir a vida da forma que o poeta William Blake vaticinou: Conduz teu carro e teu arado sobre a ossada dos mortos. A Máfia, organização criminosa globalizada, foi fundada na Itália no século XII, para garantir a segurança pública. Lembro das denúncias do jornalista da Folha, Lucas Figueiredo, autor do livro Morcegos Negros.
Segundo esse livro, as atuais autoridades de Pindorama seriam responsáveis pelo escancaramento do país a todos os tipos de infiltração criminosa. As do baixo-astral defenderiam, até do além túmulo, os interesses espúrios dos herdeiros atuantes, ascendentes de clãs e “famílias”, com tradição em todo tipo de crimes. Algumas delas com mil anos de “know-how” fúnebre.
Estou a afirmar possibilidades. Paula descende de sicilianos. É possível, talvez, deduzir a presença de membros de uma quadrilha ancestral, por trás dessa manifestação astral, a representar ameaça e morte?
Os filmes da Babilônia atual transformaram a mente de seus moradores em habitação de demônios. Tortura, chutes, pontapés, tiros, golpes baixos, corrupção, enriquecimento ilícito, tráfico, violência, ultraviolência, insegurança, penetram facilmente no subconsciente dos tvespectadores da sala de jantar, através dos olhos e ouvidos.
Também dos outros sentidos, principalmente dos olhos e ouvidos. Babilônia exulta, orgulha-se de seus horrores. As unhas sujas de toda espécie poluente de sadismo social, penetra a vida sedentária das pessoas da sala de jantar. A educação fundamental e média foi substituída pela educação tvvisiva.
As autoridades lavam as mãos, entregam a maioria licenciosa à natureza da tirania feroz do mercado. Os pendores sádicos adormecidos são despertados por personagens que roubam a alma e a fé dos homens. Quem consegue resistir ao tempo e às personagens da telinha? Do telão? As crianças afogam-se aos poucos. Os adultos mergulham fundo e a política das tias se estabelece.
As tias de Paula, presumo, permanecem em estreito conluio com o passado. Ela está a se libertar da rédea curta com que era manipulada pelos parentes. Vê o futuro a partir de uma esperança presente de renovação. Não quer presenciar a filha crescer respirando essa gênese anímica de animosidade repugnante.
Acredito em seu despertar. Admite a verdade de que o horror jamais deve ser aceito como um fenômeno social normal. E sim, como uma mórbida doença provisória, de uma sociedade que ainda não encontrou seu melhor caminho.