Martinho Mosca

Ninguém dava a mínima para a habilidade de Martinho agarrar moscas em pleno vôo, os dedinhos superágeis. Estende a mão, vlapthvlupt, aqui está o inseto preso entre o mindinho e o seu vizinho. Modera um pouco a pressão e fica a fixá-la fazer zigzungzingzun, raivosa, ansiosa por navegar.

Ao abrir dos dedos de Martinho, o inseto sai zanzando, zigzungzingzunindo para todos os lados, para cima, para baixo...Pronto: aí está ela presa outra vez entre o indicador e o médio da mão esquerda, assanhada, em dura afronta, mas amedrontada, batendo azinhas, tentando sair fora.

Uma e outra vez, um e outro parente observa, curioso, a criança de seis aninhos incompletos, caçula da família, abrir e fechar os dedinhos, prendendo e libertando os esquizóforos. Tentam fazer a mesma coisa sem resultado. A irritação consequente pela tentativa frustrada, faz com que achem que tal habilidade é defeito de caráter, deve ser reprimida.

—Que coisa feia, onde já se viu, esse sestro, mania mais besta, menino mais mal educado. Afinal, mosca é apenas uma coisinha nojenta, suja, lixo, o santo graal das bactérias da xila.

A mãe, do cismar começou a reprimir. Tapas nas mãozinhas do menino, exclamações gritadas de reprovação e ameaças. O garoto chora inconformado. Pela quarta ou quinta vez sucessiva lá vem a mama, mão espalmada, descer o malho no garotinho.

Dia seguinte a boa senhora, mãe de Martinho, levanta da cama balançando a cabeça, dando pulinhos para os lados, como que tentando tirar água do ouvido. Dona Diná, mulher de seu Honório, o vizinho do apartamento em frente, sussurra no ouvido da amiga, quando ambas assistiam a novela mais “must” do momento: A Indomada.

—Não se avexe não, mulher, faz xixi no copo, pega um conta gotas, e pinga dentro do ouvido, logo fica boa, garanto.

Seu Morais, o marido, dia seguinte usa uma pinça de ponta comprida e fina. Com uma lente de aumento busca focalizar, no interior do ouvido da mulher, a tal coisa que causa celeuma e mal estar. De nada adiantou. Dirigiram-se ao posto médico.

No serviço de atendimento de emergência da Santa Casa, doutor Lima fez a assepsia de praxe. Limpou com água oxigenada o orelhão roxo e inchado. Aplicou uma injeção de analgésico, receitou antibiótico. Garantiu que em uma semana, se tanto, estaria tudo normal, a infecção debelada.

Uma semana depois o lado direito do rosto de dona Celina estava todo arroxeado, inchado, doído, gangrenando-se. Vertia pus. Duas semanas bastaram: saiu dessa para a melhor.

Passaram-se seis meses, ao longo dos quais a família buscou adaptar-se à nova condição. Órfãos de mãe, os três filhos do casal ficaram sob os cuidados de tia Camila. Sabe-se lá porquê, instinto de preservação talvez, ela ignorava a estranha habilidade do menino em acompanhar com os olhos o zigzungzingzunido tresloucado das moscas, como se os dedos tivessem imantados para pegá-las. Na vista dela, no café do jantar, depressa prendeu duas ou três, quase de uma vez.

No outro dia o pai cismou com a besteirada do filho. Começou a achar a coisa muito mórbida e nojenta. Sem deixar barato ameaçou: "Se não parar com isso vai levar uma surra, moleque".

O garoto agiu como se não fosse com ele. Olhou nos olhos do pai e sorriu inocente, como quem diz:

— "Pôxa, pai, você quer me tirar a única diversão que tenho, isso não é certo, você não acha? Martinho tinha em mente não provocar o patriarca ameaçador."

Tia Camila limpava o lugar, esguinchava SBP no porta-detritos, nos sacos de lixo, na área de serviço, e na grade que separa o terraço da área aberta próxima ao matagal. Mas os insetos penetram, ignorantes dos cuidados da tia.

De noite os borrachudos tomam conta do lugar. De dia, o zigzungzingzunido das besneiras inferniza a vida do conjunto popular recém inaugurado, parte do "Projeto Pingapura" do ex-prefeito de São Paulo.

Martinho, chateado com a falta de fazer coisa melhor, aproximou de leve a mão direita do ouvido, esticou o indicador e logo prendeu, na ponta do dedo, uma e outra danadas que estavam zigzungzingzunindo incômodas. Prensou-a devagar entre a ponta do dedo e a superfície da pele, sem machucá-la. A seguir, soltou e pegou rapidamente o inseto, depois outro e outro mais, prendendo e soltando-os, na sequência, entre o médio e o indicador.

Seu Morais, de tocaia, flagrou a criança no passatempo, no vai-e-vem, no sobe-desce, no abrir e fechar entrededos. Cumpriu as ameaças, desceu a raquetada no rosto do menino, começou a bater os nós dos dedos das mãos, várias vezes e com força, na cabeça da criança. Apertou os dedinhos indefesos entre as manoplas. Agitou fortemente, e repetidas vezes, o pulso do guri numa das bordas da mesa, quebrando-lhe dois dedos da mão destra.

A mão e o pulso incharam, a cabeça doía. Seu Morais terminou a seção de sadismo ameaçando: houvesse outra vez, o garoto haveria de se arrepender de ter nascido.

Dia seguinte, domingo solar, depois do almoço, o chefe de família está a espairecer sobre a cama de casal, enquanto não chega a hora de ver o vídeo-teipe do jogo de futebol pela copa João Havelange: Corintians versus Palmeiras.

Martinho levanta-se do colchão inferior do beliche, dirige-se até a sala de onde fica olhando, pela porta entreaberta, a cara do pai meio adentrada no travesseiro, de bruços.

Passam-se alguns minutos, uns poucos insetos começam a festejar-lhe a nuca, obrigando-o a deitar-se de barriga para cima, tangendo-os, quando em vez, com as manoplas. A modorra fez com que dormisse.

Os hexápodes foram chegando, chegando. Começaram a fazer evoluções circulares uns cinquenta centímetros acima do rosto de seu Morais, zigzungzingzunindo. A dança dos insetos surtiu certo efeito hipnótico. Adormecido sob o olhar de Martinho, meia hora depois, quinze, dezesseis, vinte, vinte e sete, quarenta e quatro, setenta e nove, noventa e três, cento e oitenta e nove, trezentos e trinta e seis moscas-domésticas foram gradativamente se destacando da nuvem para dentro dos orifícios cranianos de seu Morais.

Vêm agora juntar-se às dúzias de varejeiras que forçam a entrada garganta abaixo, pela boca entreaberta, pelas fossas nasais ouvido e olhos do pai, sob o olhar condescendente do guri.

A agonia durou pouco. Ele bem que tentou reagir. Mas o rosto, as artérias do pescoço, mais pareciam um balão avermelhado, inchando sob a pressão de uma desesperada ansiedade por respirar. Mas o ar não entra, não vem, não vai, não sai. A ele escapa o que está acontecendo e por quê.

A próxima cena na qual se vê protagonista, repete-se agora no zigzungzingzunido de moscas a sair-lhe da boca, ouvidos e nariz. Os orifícios inflacionados pela concentração inusitada dos insetos, estão agora apenas escancarados, horrorizados, apatéticos.

Ele enxerga tudo de fora do corpo. A situação estranha e inusitada, a careta desesperada dos condenados aos nichos infernais das faíscas quânticas, lugar onde o corpo humano não pode ser visível. Impossibilitado de intervir, de fazer alguma coisa, descobre ter transposto o muro das lamentações, entre diferentes dimensões do existir.

DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 03/04/2010
Reeditado em 15/04/2011
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