Malaquias (14)
Quão tarde era tarde demais, esta era a odalisca interrogação que reverberava, sininhos de polegar e tudo, no coração destroçado de Malaquias, o tardio tio, amaldiçoando com sinceridade o impulso egoísta que o levara a um ligeiro atalho, um desviozinho, no seu caminho em linha onde possível e tanto quanto possível recta para casa dos cunhados, a uma sinuosidade que não estava nos planos de foragido à justiça, arquitectados ainda no cárcere, analisados em profundidade durante o prodigioso arraial de pancadaria nos corredores apertados do presídio do Monte, improvisados a cada curva enquanto descia a montanha cinquenta quilómetros à hora acima do limite da lei, já tendo violado outras leis com a mesma desafectação, imaginando outras que teria ainda de violar em nome da última esperança para a salvação dos filhos da irmã da sua falecida, que era como quem dizia, dos sobrinhos, que também eram seus, sangue do seu sangue e iguais em quase tudo excepto que um tinha um e outro não tinha, tirando isso, gémeos que eram, mais apetecíveis se tornavam aos olhos do Palhaço, ser rancoroso, canibalesco, verdadeiro parvalhão de todo o tamanho, com um apetite insaciável por rebentos de cabecinhas volta e meia piolhosas, gostos não se discutiam, já lá dizia a falecida, embora Malaquias, dela viúvo, tomasse excepção a essa regra quando o caso era a antropofagia, isso não se fazia, que não podíamos todos saber a frango, nem todos tolerar esse tipo de gostos, não fosse ele polícia, ainda para mais com trinta anos de carreira, ainda para mais condecorado meia-dúzia de vezes, ainda para mais tio das futuras vítimas, a não ser que ele pudesse impedir a tragédia, ou não tivesse ele acabado de fugir da prisão com esse fim em vista, ele que estava preso por ter morto outro palhaço, um palhaço qualquer vestido de palhaço, que a vida quando lhe dava para azarar, azarava, a Malaquias restava reparar o mal feito, expiar o engano que cometera na melhor das boas intenções, e era esse o seu plano até que a sua atenção desfocou, perdeu a claridade, desbaratou o espírito de missão e o SUV roubado ao senhor director do Monte fez uma curva onde a auto-estrada era a direito, sempre a direito, a não ser que se quisesse ir comer tudo o que conseguisse comer, assim anunciava o buffet da casa dos bifes na berma da auto-estrada, e Malaquias, o Gordo, farto da paparoca desenxabida da penitenciária, quis.
O bife era tão bom quanto pressagiado no reclame luminoso, e em tantas quantidades quantas tinham sido apalavradas no mesmo neon desligado, que ainda se fazia dia, e pouco importava que um novo freguês pelo restaurante dentro entrasse vestido de presidiário fato-macaco cor-de-laranja, não era a indumentária que fizera brotar nos gerentes do estabelecimento aquele nervosismo receoso, mas sim o tamanho do freguês, a camada adiposa que a farpela apertada e, já agora, alagada, alvitrava, sugerindo que os limites de todo o bife que aquele homem conseguisse comer talvez estivessem uma ou duas toneladas acima do que eles tinham nas arcas frigoríficas, maldita hora em que tinham pensado em fazer a promoção para escoar a carne cujo prazo de validade esgotara três rótulos colados uns em cima dos outros atrás, sabia Deus há quanto tempo isso fora, alguma daquela chicha já nem as moscas atraía, alguma daquela carniça exibia o cinzentismo de veios que prenunciava uma podridão tal que nem que chegasse bem passada ao prato escaparia ao mais desatento dos comensais, embora aquele comensal a comesse, putrefacta ou não, bem capaz disso era ele, a ver pelo aspecto volumoso, a ver pela fome que os seus olhos patenteavam, sentou-se à mesa mais próxima da cozinha e pediu do buffet, e em barda, e ali ficou um par de horas até emitir o primeiro e sonoro arroto, e depois repetiu a dose até ser noite, e depois repetiu novamente, até que chegou a hora de fechar, e depois foi-se embora sem pagar.
Malaquias, o empanzinado, assim como estava nem as dimensões do interior do SUV lhe davam grande folga, voltou a fazer ligação directa e a meter-se à estrada, as luzes da cidade bela da Baía a surgirem à sua frente ao mesmo tempo que a urgência que tinha em chegar a casa dos cunhados actuava no seu organismo como o mais potente de todos os anti-ácidos, cozendo a carne embuchada e evitando os riscos duma indigestão fatal, que eram grandes, grande como ele, Malaquias, era Grande, uma pança do tamanho duma lua em órbita precária com o planeta Terra, perguntando-se se tinha comido demais, se tinha abusado daquela vez, se ainda ia a tempo de chegar a tempo de salvar os sobrinhos de serem comidos por alguém que também demonstrava igual desinteresse pelo regramento de um regime alimentar saudável, crianças eram bombas diabéticas, só podiam ser, e não seria por se ralar com o que o Palhaço comia que Malaquias pisava no acelerador, não era por ser armar em nutricionista do pior assassino em série da história da gastronomia alternativa que Malaquias derrapava todas as curvas que fazia a alta velocidade, o que ele queria era salvar os sobrinhos, gémeos que o tinham como o tio que quando chegava a casa a casa tornava-se mais acanhada, e pouco mais, embora Malaquias gostasse de pensar diferente, pensar que era para eles uma referência, um motivo de orgulho, como fora para a sua falecida tia, sua falecida esposa, sua, de Malaquias, falecida esposa, um raio de luar brilhando embevecido agora que finalmente Malaquias ia a caminho.
Finalmente, seja, mas tarde demais, também, e a dúvida agora era quão tarde chegara, porque quando arribou ao apartamento dos cunhados a porta cujo tapete pressagiava boas-vindas apresentava-se aberta a Malaquias, que no átrio tropeçou no cadáver da cunhada, garganta aberta, mergulhada na poça do seu próprio sangue, e no corredor que dava para a sala estava o cunhado, tripas de fora, o intestino grosso à volta do seu pescoço, um olhar vítreo estrangulado, e os gémeos, desses restava muito pouco, uma tíbia, perna esquerda ou perna direita, chupada, abandonada na sala por baixo do móvel do aparelho de televisão que prosseguia na sua programação habitual, insensível à desgraça de Malaquias, sangue ainda húmido borrifado nos cortinados quando o Palhaço abocanhara a jugular de um dos gémeos, enxertias de couro cabeludo indistinto por tudo quanto era canto, o osso da bacia de um dos miúdos dependurado no lustre do quarto dos pais, o banquete fora volante e, por fim, um detalhe que dificilmente escaparia a Malaquias, maior dos detectives vivos, e não só em tamanho bruto, mas em qualidade, uma nota presa no frigorífico por um íman do Garfield, escrita a sangue fresco em que o Palhaço dizia não ter comido ambos os sobrinhos de Malaquias, apenas um, que os médicos o haviam aconselhado a ir com calma depois da aguerrida caganeira que o afligira, que levara o outro, não referia se era o que tinha pilinha ou não, o outro gémeo, dito assim era impossível saber, ao qual o Palhaço se referia como o seu “segundo prato”, esse tinha-o levado consigo para a sua casa, e a direcção que deixava ao tio eternamente atrasado constava de apenas duas palavras, aziagas quando agrupadas como nenhumas outras, pouco importando destas a sua eventual associação, sangue escorrendo de cada letra retorta e rabiscada, e foi assim que a Cidade Baixa se preparou para receber a visita de Malaquias, o Desavergonhado Comilão, talvez, Malaquias, o Tio Tristemente Extemporâneo, com certeza, mas sempre, Malaquias, o Grande.