PONTO CEGO

Segunda-feira, 23 de Março de 2009, 16h23min. Um Hércules C-130 da Força Aérea Brasileira sobrevoa o tapete verde e espesso da região norte dos domínios brasileiros. Horas antes, falhas inexplicáveis nos radares do Cindacta IV abriram um grande ponto cego naquela área, impossibilitando que os vôos comerciais cumprissem a rota usual rumo a América do Norte, fato que proporcionou um verdadeiro caos nos aeroportos e céus do país. Um desvio alternativo, com escalas através do litoral, começou a ser utilizado, amenizando, ainda que superficialmente, o terrível transtorno.

Entretanto, a presença dos militares na Amazônia não correspondia, unicamente, a uma falha instrumental a ser averiguada, longe disso. Antes do colapso total no sistema, os controladores de vôo haviam detectado um estranho fenômeno nas telas: uma mancha simétrica e crescente, em forma de funil e que piscava de maneira intermitente até desaparecer completamente, levando consigo todas as informações dos computadores.

Obviamente o Sistema de Defesa Aeroespacial Brasileiro articulou a situação para que tais dados não se tornassem públicos. Dois caças Rafale, recém adquiridos da França, partiram da Base Aérea de Natal, no intuito de colher os primeiros dados da onda intermitente. A operação aérea acabara por mostrar-se um total fiasco. Nada encontraram no perímetro delimitado, os instrumentos das aeronaves nada indicavam, tampouco a análise visual, apenas o mar verdejante e sem fim. Era como se a manifestação desconhecida nunca tivesse acontecido.

Por conta disso, a última cartada seria mandar uma equipe de solo para a região. Mas, como não havia a menor possibilidade de pouso naquelas condições tão adversas, acharam por bem enviar o Grupamento de Infantaria de Selva, numa ação conjunta com o Exército. O gigantesco pássaro de aço sobrevoaria o local exato indicado pelas coordenadas, e os pára-quedistas saltariam em busca do desconhecido.

Nenhuma informação, além dos mapas de satélite, existia acerca daquela localidade. O ponto desejado era um dos inúmeros redutos de mata virgem no chamado pulmão do mundo. O C-130 se aproximava do Ponto Cego, nome da operação e também da área de exploração, os soldados já estavam preparados para a evasão, foi quando os primeiros sinais de anormalidade no painel do Hércules começaram a alarmar os pilotos.

- Fox-Alfa-Bravo-2451 para Comando Central. Fox-Alfa-Bravo-2451 para Comando Central. Responda, Base. Instrumentos em pane. Falha completa nos motores da asa esquerda, mau funcionamento no Três e também no Quatro. Iminência de pane total!

Não havia respostas no rádio. Nem mesmo a estática se fazia presente. O comandante insistia no contato, embora as horas de vôo que carregava nas costas lhe dissessem que de pouco adiantaria uma quebra na mudez absoluta. O co-piloto foi o primeiro a notar, ao olhar o espaço aberto, que o ar parecia se movimentar, não como numa lufada de vento, era como se camadas invisíveis se sobrepusessem umas às outras, formando vários círculos, semelhantes aos que surgem num espelho d’água ao contato de uma pedra atirada.

Instantaneamente a estrutura que formava a aeronave entrou em colapso. Placas metálicas eram arrancadas, rompendo o ar com violência. Pontos dispersos no espaço indicavam que o grupo de selva havia se lançado mesmo não estando sobre o local previamente combinado. Não havia mais qualquer possibilidade de controlar o Hércules, razão pela qual as mochilas de salvamento já estavam atreladas às costas dos pilotos, e estes, numa mescla de desespero e pressa, já haviam cruzado o largo charuto metálico em busca da rampa de salto.

Enquanto desciam em queda livre, puderam observar, atônitos, o gigante se desintegrar e seus pedaços formarem uma chuva sólida e ameaçadora. Logo abaixo, os pára-quedas abertos dos soldados estranhamente se uniam como flores em um buquê. Dentro do vórtice, os pilotos sentiam fortes pontadas na pele, era como se milhares de agulhas eletrificadas lhes infligissem dor através de açoites e choques.

Exatos cinco minutos depois da escapada, eles tentavam se desvencilhar da folhagem espessa das enormes copas. Uma tarefa árdua, mas que eles executavam com satisfação. O solo, e com ele a salvação, estava a alguns metros do alcance dos seus pés.

O sol ainda brilhava forte no final de tarde, mas, no interior da selva, os raios luminosos oriundos dos céus não conseguiam vencer o poder da barreira verde, o que proporcionava a mais absoluta escuridão. O dispositivo sinalizador que cada membro da missão trazia no equipamento favoreceu a rápida reunião da equipe.

- Parece que apesar do imprevisto, a sorte não nos abandonou. A ação das ondas magnéticas nos lançou para mais próximo do nosso alvo. De acordo com o GPS, que por obra de algum milagre não apresenta distúrbios, estamos a cerca de trinta quilômetros do Ponto Cego.

- Desculpe Tenente, mas sem uma trilha, envoltos pelas trevas, levaremos horas para vencermos essa distância.

- Eu sei, sargento. Mas ninguém aqui está ferido, e esse grupo não é referência nesse campo à toa. Vamos cumprir nossa missão. Chegar até o local determinado e descobrir o que está acontecendo. Tentaremos contato com o Comando Central através do rádio via satélite. Não temos tempo a perder, vamos.

De fato, as previsões acerca dos obstáculos mostraram-se mais do que corretas. A lâmina dos facões abria caminho, com dificuldades, através da vegetação cerrada. O solo irregular extenuava-os ao extremo. O calor era insuportável. Mas, o desafio da selva não era a maior preocupação do experiente grupo. Na verdade, o que mais causava incômodo era a sensação de que olhos curiosos se espalhavam ao redor da equipe ao longo de todo o percurso. Não havia registro de nenhuma aldeia ou qualquer atividade humana naquela área, o que tornava a situação uma incógnita tão grande quanto a que buscavam esclarecer no local tido como alvo.

O tenente, líder da operação, tentava se manter frio mediante a situação que se apresentava. As instruções do QG, fornecidas por telefone, haviam sido claras: chegar ao objetivo a qualquer custo, o resgate seria enviado tão logo a missão estivesse concluída.

Fazendo uso de códigos pré-estabelecidos, os soldados abraçavam as armas e se mantinham alertas, a espera da ordem definitiva. Reflexos eram percebidos na escuridão da mata, os feixes de luz das lanternas dançavam de um lado para o outro. A tensão já alcançava o limite máximo quando um pequeno ponto brilhante ganhou um espaço aberto entre o grupo militar, quase imediatamente o objeto lançado eclodiu numa explosão surda, um flash cegante iluminou as entranhas da floresta, os soldados foram ao chão, desfalecidos.

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O piloto foi o primeiro a recobrar os sentidos, mas, por alguns instantes, julgou ainda estar mergulhado no delírio de um sonho. Assim como ele, seus companheiros estavam atrelados a macas metálicas, totalmente entregues a vontade dos indivíduos que os cercavam. Estes eram muitos, inúmeros. Eram homens e mulheres, jovens e velhos, até mesmo crianças. Embora alguns ostentassem uma espécie de máscara no rosto, a maioria mostrava sua face de traços tão familiares, eram índios, não havia como negar, apesar das vestes incomuns.

Um a um os militares acordavam, todos partilhavam do mesmo estarrecimento experimentado pelo comandante do C-130 despedaçado. Não tinha como ignorar a presença imponente daquelas pessoas, que apesar do rosto tão ingênuo, exibiam um porte ameaçador mediante o uso de trajes inimagináveis. As roupas eram reluzentes, brilhantes, fascinantes. Resplandeciam em dourado cintilante, pareciam feitas de ouro, mas com uma leveza e aderência impressionantes.

Os soldados estavam tão chocados com a presença dos indígenas de ouro, que não atentaram para o que estava no fundo da clareira: uma construção de uns quinze metros, em formato de pirâmide, incrustada da terra. A superfície do artefato cintilava numa tonalidade semelhante a das vestes dos nativos. Quatro pilares, também compostos pela mesma liga dourada, ladeavam o monumento. Era dali que se originava a onda magnética vista anteriormente pelos militares. O fenômeno movimentava o ar, faíscas eram vistas nas extremidades dos postes. Não havia uma palavra capaz de traduzir o impacto que o cenário proporcionava. Se a lenda do El Dorado tivesse fundamento, sem dúvidas não haveria melhor lugar para comprová-la.

Um dos indígenas se aproximou. Suas vestes douradas diferenciavam-se das outras. Ele ostentava um longo chapéu cônico. Parado diante da plataforma que prendia os militares, ele começou a falar numa língua estranha, mas que, inexplicavelmente, fazia sentido na mente dos prisioneiros. Ele desejava saber qual dos homens brancos era o líder, o tenente se manifestou, e o indígena foi até ele.

Cercado por uma escolta, o comandante da operação foi obrigado a segui-lo. Eles caminharam até a formidável construção, os olhos do militar brilhavam. O suposto cacique mostrou-lhe que cada um dos pilares escondia uma câmara preenchida por um tipo de reservatório, o qual era ligado ao lado externo por uma canaleta que terminava numa plataforma metálica, semelhante a que prendia os outros.

O índio explicava que aquilo era apenas uma pequena parcela do que existia. Pois havia muito mais, uma civilização inteira construída com as dádivas da floresta, erigida com os ensinamentos dos Deuses. Estes haviam chegado há muito tempo, por obra do acaso, e tentavam estabelecer uma linha de contato com um mundo além da compreensão, pois estavam irremediavelmente presos ali. Imediatamente o tenente ligou esse detalhe aos constantes pontos cegos naquela região. Porém, o que o líder da missão não sabia, e nem poderia imaginar, era que ele e todo o seu grupo, faziam parte de algo maior.

Essa compreensão não fora transmitida pelo chefe indígena, este se limitara apenas a sorrir enquanto os outros militares eram arrastados até as plataformas ao redor da pirâmide. O tenente tentou se desvencilhar e ajudar seus companheiros, mas suas intenções foram sobrepujadas pela escolta a sua volta.

Um a um os soldados foram posicionados nos pontos determinados, locais estes cuja finalidade estava mais do que clara naquele momento. O cacique, falando ao tenente, explicou que ao longo dos anos faziam uso de oferendas próprias para o sacrifício, mas os resultados obtidos não atendiam às expectativas dos Deuses. Entretanto, seria bem possível que os homens que ali estavam, portadores dos nutrientes da modernidade, pudessem, enfim, satisfazer o desejo dos Mestres Celestiais.

Os soldados eram colocados nas chapas reluzentes. Inúmeros filamentos brotavam do metal e perfuravam a carne dos prisioneiros. Os fluídos vitais dos homens eram transferidos para dentro da câmara, acumulando-se nos reservatórios. Os corpos exangues eram substituídos rapidamente. O tenente assistia, impotente, ao extermínio de sua equipe. Alguma reação química parecia acontecer nos compartimentos, eles funcionavam como pilhas, os pilares acendiam enquanto fagulhas percorriam a superfície metálica da construção. O dourado dava lugar a uma transparência cristalina. O material humano havia se convertido numa espécie de combustível orgânico. O líder dos militares admirava, assombrado, o interior da pirâmide, onde vários corpos mumificados jaziam cuidadosamente arrumados no piso.

Eles aguardam o renascimento! A voz do índio ecoava diretamente em sua mente. As ondas magnéticas pulsavam com mais força, causando pânico até mesmo nos nativos.

O líquido orgânico borbulhava nos reservatórios. O faiscar era intenso. Raios originaram-se dos quatro pilares e se mesclaram em um só, o qual se lançou com violência no céu noturno e desapareceu. Logo, tudo ficou em silêncio. As ondas magnéticas cessaram por completo. Falando com os membros de sua tribo, o cacique ordenou que levassem o último prisioneiro para o altar do sacrifício. O tenente parecia resignado, fracassara por completo na missão.

Foi quando a atenção de todos se virou para as estrelas. Uma súbita e magnífica esfera dourada planava sobre o descampado. Por um momento o militar ficou livre, porém, como os demais, estava fascinado com o espetáculo luminoso proporcionado pelo objeto no céu.

- Eles voltaram! Eles voltaram! – Gritava o cacique em sua própria língua, sem se fazer entender pelo prisioneiro, desta vez.

A esfera brilhava de maneira mais intensa, não seria exagero dizer que ardia como o fogo. O tenente pressentiu algo de ruim e correu sem ser impedido pelos membros da tribo. A bola de fogo parecia estar prestes a explodir, mas ao invés disso, lançou um raio luminoso que correu livre de encontro à extremidade da pirâmide. O monumento metálico voltou a se acender. Um estrondo surgiu acompanhado por um tremor de terra. Todos, com exceção do tenente, que exigia das pernas mais do que elas poderiam fazer, foram ao chão.

Como mágica, a construção se erguia, mas, ao contrário do que aparentava, não se tratava de uma pirâmide, era um fabuloso losango de cores e brilho! Lentamente ele deixou a terra, lançando pedras e vegetação em todas as direções. Quando estava a uma altura de uns vinte metros do solo, lançou um jato incandescente para baixo, rompendo os céus numa velocidade indescritível. A esfera dourada seguiu alinhada ao seu lado. O raio despejado pelo losango incinerou tudo num raio de cinqüenta metros, levando pânico e morte aos indígenas, acabando com seus sonhos e esperanças.

O tenente corria às cegas pela mata. Ele sabia que somente um milagre poderia livrá-lo da morte certa na selva fechada. Talvez, ele estivesse fadado a nunca poder compartilhar o que seus olhos haviam testemunhado. Seria muito difícil uma tentativa de resgate mediante o caos instalado naquela clareira, sua experiência dizia isso.

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Terça-feira, 24 de Março de 2009. 04h55min. Três caças Mirage III saíram em perseguição de objetos não identificados captados pelos radares da Base Aérea de Anápolis. Foram oito minutos de caçada pelos céus do Planalto Central, até que os objetos simplesmente desapareceram por completo dos computadores e do campo visual. Esta informação nunca viria a público.

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Terça-feira, 24 de Março de 2009. 07h01min. Um boletim matinal de notícias informava que um incêndio de proporções descomunais tomava conta, naquele momento, de uma grande extensão da Floresta Amazônica e se alastrava rapidamente. Uma verdadeira catástrofe, de perdas incalculáveis para a natureza. As causas ainda eram desconhecidas, mas tudo indicava a ação de madeireiros, guerrilheiros de países vizinhos ou qualquer outra atividade clandestina. Os registros da FUNAI não apontavam nenhum povoado indígena na região, felizmente, segundo o apresentador.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 25/03/2010
Reeditado em 25/03/2010
Código do texto: T2159320
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