Malaquias (12)

À ordem, muito mais do que apenas levemente irónica, de “fogo!” do director fuinha do estabelecimento prisional do Monte os seus homens dispararam o canhão de água assim que Malaquias, o obstinado, de lá veio carregando com galhardia todos os cento e muitos quilos do seu corpanzil rotundo, vagaréus de gordura espapaçada em assombrosos movimentos ondulatórios sob o tecido urdido talvez um nadinha justo do seu fato-macaco cor de laranja, de escudo anti-motim, troféu do combate travado para chegar ali, em riste, o dístico “obedece” a apanhar em cheio com o esguicho possante de água e o preso de repente a perder o chão dos pés, a apanhar com o irresistível impacto da torrente de água fria sem lhe conseguir opor resistência, a reencontrar o chão mas desta feita com as suas costas, como se uma cascata o tivesse engolido, como se um rio tumultuoso o tivesse levado na sua enxurrada, despenteando-lhe a barba ruiva, desguedelhando-lhe as melenas também elas ruivas mas com faixas grisalhas, alagando as suas roupas, afogando a sua pessoa, submergindo as esperanças que tinha em relação a sair dali, liquidando as hipóteses dos sobrinhos virem a festejar mais um aniversário, que o Palhaço muito antes apareceria sem ser convidado, para os comer, e isso não podia ser, isso não podia simplesmente ser, Malaquias não o permitiria, canhão de água ou não, era altura de se levantar do chão subitamente tornado no mais agitados dos rios, era tempo de remar contra aquela maré impetuosa e, e, e, e, e, que se lixasse tudo o resto, era levantar-se e pronto.

Malaquias, o Grande, levantou-se três vezes e três foram também as vezes que o jacto de água lhe devolveu a cara zangada e frustrada ao chão resvaladiço, apesar disso chapinhou insistentemente para se reerguer uma quarta, conseguiu, mercê da sua imprevista agilidade, e os homens que manejavam o canhão corrigiram a pontaria para atingirem de novo aquele alvo que não parava de vir, como se esperasse que à quarta fosse de vez, pobre iludido, aquela fuga da prisão acabava ali, estava à vista de todos, só Malaquias, o obeso, é que não via, talvez por ter o cabelo nos olhos e a água ser tanta que se arriscava a afogá-lo em terra firme, não via, não desistia e, pior que isso, estava de novo a pé, mais espantoso que o estar em pé, aguentava-se em pé, fazia inclusive finca-pé, fê-lo durante alguns instantes e, quando voltou a mover-se, foi contra o jorro do canhão de água que respingava de encontro ao escudo roubado a algum guarda prisional a quem também levara a dignidade, que era coisa que a Malaquias ninguém tirava, ele não deixava, não se ficava, avançava, sobre a canhoneira aquosa, um passo firme de cada vez, de cada vez que dava um passo aproximava-se mais um pouco, fazia pouco da muita distância entre si e o senhor director, encurtava-a, por muito que o senhor director pedisse mais potência aos manobradores já em medroso alvoroço da peça montada em cima do autotanque, não havia muito a fazer, agora sim, dava para ver, Malaquias, o húmido, aí vinha e não havia à face da Terra quem o impedisse de vir.

Vinte metros de corredor transpostos pelo preso 2520 numa dúzia interminável de minutos, nove mil litros de água a contribuírem decisivamente para a demora, mas para pouco mais, talvez um resfriado, um par de espirros estrepitosos e a sensação eminentemente desconfortável, pelo menos na convicção muito pessoal de Malaquias, de ter as cuecas coladas ao desfiladeiro lanzudo do seu desproporcionado rabo, coisa de fraca monta quando o objectivo era o de represar a primeira tentativa de fuga do Monte com pernas para andar, e que pernas, que contumazes toucinhos aqueles, que sustinham a jactância da melhor artilharia aquática que a engenharia social de emergência podia oferecer, gloriosa no seu historial de subjugar manifestantes de mochila e cocktails molotov mas incapaz de fazer parar um homem honrado ou de lhe negar a liberdade, o director a gritar mais potência, os gritos dele ensopados no barulho que o canhão fazia, Malaquias a apanhar com o jacto mesmo em cima, à queima-roupa molhada, estava tão perto e a potência a curta distância ameaçava finalmente voltar a derrubá-lo, os passos já não eram tão firmes, o bamboleio da postura denunciava que fraquejava, a esperança renascia nos guardas, as coisas pareciam novamente mal paradas para Malaquias.

Então o canhão de água ejaculou a sua última esguichadela e foi como se a fonte instantaneamente secasse, cascata transformada em penhasco escorrido uma vez esgotado o caudal previamente armazenado, obviamente insuficiente, e agora a única coisa entre Malaquias e o lado de fora da penitenciária inviolável eram aqueles homens que, mais que assustados, que estavam, estavam espantados com o feito impossível duma pessoa não menos impossível, tudo aquilo era, enfim, simplesmente, impossível, mas ali estava ele, um pinto do tamanho dum cachalote encalhado, pingando uma monção asiática de grossas gotas geladas, a tiritar, tirando uma pausa para respirar, para os deixar ponderar sobre se valia a pena tentar detê-lo, até o senhor director tinha as suas dúvidas, e com razão, se devia arriscar os últimos homens que restavam para controlar uma cadeia em polvorosa, a bola estava agora do seu lado do court, restava saber se ele tinha ou não raquete para aquele nível de jogo, os homens à espera duma ordem sua, à espera que a ordem nunca viesse, e demorava a vir, os ombros da montanha Malaquias subiam e desciam cansados, mas prontos para novo round, para quantos rounds fossem necessários, e por fim o senhor director fez-lhe um gesto cheio de delicadeza com a mão, como quem dizia, resignado, “passe”, como quem, rendido às evidências dizia “vá lá” ou como quem no final das contas, aceitava a derrota e dizia “está bem, ganhou”, e perante os olhares de admiração, de temor, de tudo um pouco, dos parcos guardas prisionais cuja dentição nada sofreu naquele dia inolvidável, marchou com passo determinado aquele homem inenarrável, que já todos conheciam ao canto da boca como Malaquias, o anafado, para não lhe chamar coisa pior, mas que a lenda naquele dia nascida outro epíteto acrescentaria, abram alas para Malaquias, o Imparável.

Nuno Lopes
Enviado por Nuno Lopes em 23/03/2010
Código do texto: T2155161
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