Malaquias (11)

O cenário desolador que Malaquias deixava atrás de si não fazia justiça ao homem que ele sempre fora, não prestava homenagem à força do seu querer imperturbável, não ilustrava de forma fidedigna o vendaval que estava a ser a passagem espalha-brasas do Bombardeiro pelos corredores da ala de segurança mínima do estabelecimento prisional do Monte, pejados de guardas em estado de nocaute técnico, pessoal diverso num absoluto caleidoscópio de pânico, pastores alemães com o rabo ganindo entre as pernas, fracturas várias que fariam as delícias dos estagiários de ortopedia que nas urgências dos hospitais da cidade da Baía já salivavam sem saberem porquê, poucos agora eram o que se tentavam opor à mal-humorada e sem tempo a perder cordilheira montanhosa com o fato cor de laranja com o número 2520 impresso por cima do bolso no peito e nas costas que abria caminho ao sopapo e à cabeçada, à joelhada e à biqueirada, aos empurrões e às cotoveladas, com um capacete de guarda prisional balançando no cocuruto da sua enorme cachola, um escudo rachado onde se podia ler a palavra “obedece” seguro pelas alças no braço esquerdo e os restos retorcidos duma caçadeira anti-motim a servir de moca para rectificar a ambígua boniteza de fuças imberbes a mais um desgraçado que ainda pensava que disputava o resultado final daquela peleja logo à partida desnivelada, a sirene de alarme já rouca, os gritos dos outros detidos já triunfais, a verem passar Malaquias, o Grande, lá em baixo, coberto de sangue, algum seu mas não todo, de todo, quase todo de todos os outros que já não o seguiam, que tinham ficado para trás a gemer, de gatas a recolher do chão e às apalpadelas os dentes e os testículos castigados, gratos por ainda estarem vivos, esperançosos em ainda poderem vir a ser pais ou, se não fosse pedir muito aos deuses que estendiam a mão aos derrotados, ainda poderem vir a urinar de pé, a pô-lo de pé, e ainda de pé e já longe ia Malaquias, o Grande, como lhe chamavam os presos, fascinados ao ver passar tamanha força da natureza, pedindo-lhe que lhes abrisse as portas das celas para que se pudessem juntar ao apoteótico rebuliço, que também tinham em si o que era preciso para devolverem com juros os vitupérios sofridos nas mãos dos guardas prisionais, sabiam que eram capazes de ajudar Malaquias a terminar aquela tarefa mais que justa e há muito adiada, mas Malaquias não os ouvia, que eles não eram como ele, eram criminosos, o tipo de gente que o melhor polícia ainda vivo passara trinta anos, três décadas, a levar dentro, assassinos, gatunos, violadores, políticos, economistas, farinha do fundo do mesmo saco de facínoras que Malaquias dedicara a sua vida a enclausurar em locais como aquele, a forrar o interior de estabelecimentos prisionais no género daquele, não iria agora desfazer o bem que fizera, manchar ainda mais uma reputação que mesmo que não valesse um chavo para o mundo do lado de fora da sua cabeça dorida, para si era tudo o que lhe restava, além dos sobrinhos, que além-muros necessitavam da sua protecção, ligeira pausa para respirar e segue.

Malaquias, arremessando o seu peso considerável contra uma porta dupla trancada que não ofereceu maior resistência do que a quase centena de guardas prisionais que a antecedera, encontrou-se num corredor mais amplo, fora da área de contenção, onde o director da cadeia, um tipo magrinho e cobardolas mais habituado a jogar Tetris no computador do gabinete do que a ver-se a braços com situações assim, tivera tempo para delinear uma derradeira estratégia de deter o preso amotinado, reunindo os últimos vinte ou trinta homens que lhe restavam atrás dum canhão de água usado da última vez durante uma cimeira da globalização contra milhares de manifestantes charrados e com complexos de inferioridade em relação à decoração das montras das lojas, o que não se podia dizer que fosse o caso de Malaquias, porque não se percebia qual era realmente o seu problema, contra o quê se rebelava, o porquê da súbita ânsia pela liberdade, coberta de ilegalidade, visto ainda esperar julgamento por ter morto alguém, algures, o director não queria saber, ninguém lhe estragava a pacatez da sua tarde a jogar Tetris, ninguém o fazia pôr o jogo em pausa logo quando ele estava tão perto de bater o seu próprio recorde, sacana, Malaquias, o Sacana, epíteto a juntar aos demais e, além do mais, ninguém fugia da sua prisão, que o director se gabava nas festas de ser completamente estanque, o que até vinha a calhar porquanto aquele canhão de água estava ligado a um autotanque de dez mil litros, setecentos e cinquenta galões de água por minuto, que seriam disparados até à última gota sobre o preso com expectativas deslocadas de alforria, o motim acabava por ali, encharcado até aos ossos, fim da história.

Só que a história era assim manienta de não deixar muito que fossem os derrotados a escrevê-la, a história gostava de ser relatada no estilo literário mais triunfalista cheio de floreados bem conseguidos da parte daqueles que venciam, e Malaquias não dava ainda a coisa por perdida, era da opinião que quem despacha setenta ou oitenta despachava mais vinte ou trinta, mesmo não sendo tão bom com a pena como era com um fragmento de caçadeira, dava de barato, mesmo estando já a roçar sensualmente a exaustão, mesmo sangrando dos nós dos dedos e dos lábios e dos sobrolhos, que quem dá também se expõe a apanhar, mesmo tendo a impressão que a sua proeminente pança havia detido por sua conta e risco uma ou duas chumbadas da grossa mais atiladas, mesmo estando a suar tanto que cheirava a refogado, haveria de ser ele a escrever o final daquela história, que não passava de um enredo paralelo à história mais importante, e essa ficava lá fora à espera que a fosse escrever, com um vilão muito bem definido, o temível Palhaço, adversário quiçá à altura deste Malaquias, ao contrário do senhor director, daquele campeão de Tetris, daquele capitão de secretária, burocrata reles do qual não rezaria a história quando Malaquias carregasse sobre o canhão de água e os poucos guardas prisionais que se resguardavam atrás dele, saísse porta fora e derramasse Monte abaixo a sua lenda, a lenda de Malaquias, o Evadido, Malaquias, o Foragido, a lenda de Malaquias, o Grande.

Nuno Lopes
Enviado por Nuno Lopes em 23/03/2010
Código do texto: T2155160
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