Malaquias (10)
Aqueles putos não conheciam Malaquias, o preso número 2520, uma avalanche laranja de homem, imparável e surpreendentemente lesto, animado pelo desespero e pela falta de alternativas à loucura, apesar de tudo muito bem ponderada, que estava a cometer, que era o desancar impiedoso de todos os guardas prisionais encasulados nos seus apetrechamentos anti-motim, cacetete e cães, quase sempre pastores alemães, que lhe surgissem pela frente naquele corredor acanhado, e era muitos, eram mais que as mães, que alguns seriam irmãos, muito mais jovens que ele, muito mais bem preparados para situações como a que se vivia de momento na ala de segurança mínima do Monte, gritos tumultuosos e gás indevidamente lançado em espaço fechado que lhes enevoava a visão e os faziam todos chorar lágrimas tóxicas em meio aos tiros de shotgun, alguns disparados para o ar, outros para lugar nenhum, e a sirene de alarme anti-aéreo a eternizar o seu grito de alarme muito bem enquadrado nos particulares curiosos da cena, que Malaquias, o Grande, nos seus tempos de pugilista na Academia de Polícia era conhecido como Malaquias, o Bombardeiro, punhos de aço, queixada de titânio, podia receber os piores castigos a si infligidos pelo adversário durante doze assaltos e terminar um combate ao décimo terceiro com um só murro, e com um só murro já deixara por terra muito guarda prisional, um punho do tamanho do mundo atravessando a viseira de plástico inquebrável, ups, afinal quebrável, quase tão quebradiço quanto os narizes, os dentes, os maxilares, as arcadas supraciliares e os ego daqueles latagões espadaúdos que teriam todos a mesma história para contar quando acordassem na enfermaria do estabelecimento carcerário com o rosto remodelado, não para melhor, e a conta do dentista a atingir a estratosfera, como o ego de Malaquias, já de si grande, sentindo-se de volta aos bons velhos tempos, ao tempos em que era respeitado, mais, era temido, mais, era querido, que até aos Jogo Olímpicos o quiseram mandar, cotovelo direito na vista esquerda do coitado que perdera o capacete na confusão, a mão direita aberta no decorrer do mesmo movimento atingindo como um tsunami o guarda que estava ao seu lado, o punho esquerdo fazendo a folha ao tipo que disparara o gás lacrimogénio e a quem Malaquias devia um agradecimento por ter despoletado a confusão a coberto da qual ele agora se movia como um rinoceronte, não um hipopótamo, um rinocerante por entre dezenas de homens almofadados, almofadinhas diria ele, ele, Malaquias, o Bombardeiro, de regresso ao activo por imperativos de consciência, mas quem sabia nunca esquecia e, se esquecesse, facilmente se lembrava e, lembrando, sem problemas executava e, executando, era saírem-lhe da frente, se houvesse inteligência para tanto, se o instinto de preservação trunfasse sobre o subjectivismo individualista, o que nem sempre acontecia, aqui vinha Malaquias a afastar com um pontapé o pastor alemão que lhe vinha a morder os calcanhares há uma boa dezena de metros desde que o seu tratador ficara por terra com doze dentes a menos, aqui vinha Malaquias a lançar um guarda mais franzino para cima de três ou quatro colegas, só com uma mão, a direita, porque a esquerda, aqui vinha Malaquias, distribuía pancada pelas pessoas dos tipos com os escudos, um deles já sem o escudo, outro já todo urinado, a fazer lembrar o doutor Candy, de quem Malaquias já se esquecera, mas não esquecera, afinal, de como se ensinava uma lição ou duas a uns putos ranhosos armados em bons, com que então Malaquias era gordo, com que então era um badocha, com que então não havia tecido para fazerem o fato-macaco laranja que pouco mais passava dum borrão em passo acelerado no ambiente constrangido e inquinado pelo tóxico lacrimejante que fora lançado ao engano, com que então as coisas que Malaquias tinha tolerado ouvir sobre a sua pessoa roliça, todas essas coisas ele agora fazia aqueles meninos de coro engolir, não eram só os dentes, eram também os insultos que lhe tinham dirigido e que ele, Malaquias, agora lhes dava a paga merecida, ultrajes e impropérios a servirem-lhe de combustível mental, de cortina de fumo, de desculpa por estar a maltratar colegas de profissão, a humilhar agentes das forças da ordem, como ele era, excepto menos bons numa cena de porrada, muito menos, como Malaquias não havia outro, para Malaquias não havia pai, não havia opositor à altura, o Palhaço ia ver como elas lhe mordiam assim que lhe pusesse as mãos em cima, mas para já era a vez dos setenta ou oitenta guardas prisionais aos gritos no corredor da ala de segurança mínima do Monte, dos cães que ladravam e abocanhavam os tornozelos a Malaquias, que os afastava com pontapés e ouvia os ganidos deles a afastarem-se como se fossem atirados para muito longe, abafados pelos gritos dos guardas, uns a sugerir estratégias que logo eram aniquiladas pelos punhos do preso número 2520, outros a chamar pela mãezinha, e mais outros que lamentavam sobretudo a perda do ângulo perfeito das canas dos seus narizes ou os dentes da frente cujo realinhamento ainda andavam a pagar a prestações ou ainda, e Malaquias não era homem que naquela situação estivesse acima de bater abaixo do cinto, carpindo pelas hipóteses de algum dia virem a experimentar a paternidade depois de umas biqueiradas do preso em cheio nas jóias da família, Malaquias até achava que lhes estava a fazer um favor, ele que nunca ambicionara ser pai, que tudo fizera para frustrar esse destino, sonho para a sua mulher, pesadelo para si, de gerar novos seres humanos, miniaturas impossíveis de governar, de domesticar, gritadores mal-formados e egoístas, embora fosse por um par desses gritadores mal-formados e egoístas que Malaquias fazia o que estava a fazer, por amor que lhes tinha, e mesmo que não lhes tivesse, por ter fazer o que tinha de fazer, de estar à altura das suas responsabilidades de tio, e de polícia, e de acelerar a convalescença do ego ferido pelo engano cometido, de expiar o pecado do homicídio involuntário na pessoa do prestável Cats Bamber, má hora resolveu vestir-se de palhaço, era assim que essa história se repetia na cabeça de Malaquias, o Bombardeiro, uma série de peças de dominó que caíam sem se tocar, umas atrás das outras, todas a levarem aquela cena de pancadaria homérica, e histérica, a lenda de Malaquias renascida como uma fénix cor-de-laranja, cabeçada testa-com-nariz neste tipo aqui, roubar a shotgun enquanto esmurrava este e dar com a coronha da arma ali na expressão de pânico daqueloutro, Malaquias não se detia no seu avanço, era imparável, era, ainda e sempre, o Grande.