Acerto de Contas
Classifico mais como Terror-cômico.
Uma chuva muito fina caía lenta sobre toda a cidade numa tarde em que o sol brigava por espaço entre as nuvens cinzas. Um funeral - mais um - acontecia no luxuoso salão do Cemitério De La Fleur, nesta tarde uma família chorava a morte de uma senhora: Laura Britto.
O sol entrava fraco pelas janelas de vidro no salão perto da capela, no centro havia um lindo caixão preto hornado com detalhes dourados, aos lados grandes castiçais com as velas ardendo e mais afastadas as cadeiras,8, todas ocupadas. O lustre de cristais acabara de ser aceso trazendo um pouco mais de luz para o lugar.
Havia uma funcionária servindo quitutes e chá. Quase ninguém comia. Duas crianças corriam do lado de fora, no gramado, pouco se importando se estavam pisando em lugares onde pessoas eram enterradas.
Os dois filhos de Laura estavam conversando, sérios, entre fungadas. A funcionária saiu por um momento e agora só estava no salão a família e alguns amigos próximos - 2 no total.
- Muito bem, muito bem, podem parar de fingir. Exceto você, Anita querida. - Disse Laura quando despertou.
Todos ficaram paralisados. Houve gritos e duas taças se estraçalharam no chão. Certamente havia gente mais pálida do que a morta que tinha acordado. Laura levantou o tronco e sacudiu os cabelos castanhos quase loiros, ela estava com uma expressão irritada em seu rosto de porcelana.
- Ora, francamente, quem foi que lotou meu rosto com esse pó branco?! - Laura se viu numa bandeja de prata - Eu estou parecendo um... Esquece.
Ela olhou em volta, viu todos calados, atônitos. Ela bufou.
- Anita querida, você poderia fazer a gentileza de me ajudar a sair daqui? Eu não vejo nenhuma disposição dos meus adoráveis filhos para isso.
Passaram segundos e nada mudou até Laura bufar novamente, impaciente e Anita - tremendo desesperadamente - se levantar para ajudar.
Anita mal conseguia chegar ao caixão. Enfim chegou.
Ajudou - tentando se acalmar - Laura a sair do caixão, ela era magra e esguia, não teve muitas dificuldades.
A chuva se intensificou fazendo barulho nas janelas.
- Mamãe... O que... O que está acontecendo? - Quis saber Ronaldo, um dos dois filhos, quando Laura desceu.
- É, mamãe, por que isso... - Alberto não conseguiu terminar, a voz muito trêmula. Ele estava apavorado.
Laura gargalhou mexendo mais uma vez nos cabelos. Anita se afastara. Laura olhou em volta com desdém.
- É muito engraçado ver a cara de vocês, vocês não têm noção do quão engraçado isso é. - Disse Laura se recuperando da risada.
O clima era estranho. Estavam todos com muito medo, quase não se mexiam enquanto Laura ria e parecia muito tranquila.
- Onde estão os outros? - Ronaldo tinha percebido que algumas pessoas haviam sumido da sala. Só restaram os parentes mais próximos e seus cônjuges. - Onde estão as crianças?
- Não se preocupe com ninguém, estão todos maravilhosamente bem. - Laura estreitou os olhos com um sorriso malicioso. - Sinto não poder dizer o mesmo de vocês.
- Você pode, por favor, dizer o que está acontecendo aqui?! - Geraldo disse com a voz elevada, ele era irmão de Laura.
- Ah, vai a merda, Geraldo. - Respondeu Laura virando a cara.
O silêncio reinou. Laura foi até a mesinha perto do caixão onde havia uma garrafa de uísque, copos e panos de prato, ela pegou um pano de prato e tirou um pouco do excesso de maquiagem, encheu um copo de uísque e virou o olhar novamente para a família.
- Bem, eu disse uma vez que ninguém ia vir ao meu funeral - desabafou Laura.
- Também, simpática como é... - sussurrou Regina, a esposa de Ronaldo, para o marido.
- Eu escutei, sua vadia! - resmungou Laura.
Regina fechou a cara, mas não disse nada. Laura deu um gole no uísque e suspirou.
- Laura, você não vai dizer o motivo de estar aqui? - perguntou Anita com a voz muito baixa.
- Claro, querida. Vim fazer um pouco de justiça.
- E onde você estava entre a sua... Morte e agora?
- Fiquei no - Laura deu outro gole e deu um leve sorriso - departamento de pendências com o mundo físico. Consegui uma autorização para voltar por um tempinho.
Anita estava pasma.
- Quem foi que organizou esta PORCARIA de funeral? Sim, por que eu tenho dinheiro suficiente pra comprar esse cemitério e vocês fazem isso?
- Você faleceu hoje de madrugada, mamãe, nós não tivemos tempo... - Pigarreou Alberto.
- Quis dizer "nós a matamos de madrugada"?
Alberto franziu o cenho na hora em que um trovão caiu.
- É, não pense que eu não sei de tudo, afinal, voltei por causa disso.
- Como é? - Anita não acreditava, não entendia.
- É isso mesmo querida, meus dois queridos filhos me mataram.
- Mas os médicos...
- Não culpe os médicos, todos sabem que eu tive aquele ataque antes de ontem e que passei a tomar os remédios intravenáis. O que meu filho fez? Combinou com o irmão e desde então vem me dando doses erradas do remédio.
- Mas mamãe... - Ronaldo tentou falar.
Laura fez um gesto obsceno para ele e tomou o que restava do uísque no copo.
- Eu não posso acreditar. - murmurou Geraldo.
Laura empunhou a garrafa e foi andando lentamente até o irmão.
- É, mas na herança você acreditou facilmente, não é?
Geraldo ficou sem ação, sem palavras.
- E falando em herança, minha queridinha irmã, Cláudia, teve a audácia de queimar o testamento que eu tinha refeito - Onde quase nada ficava para ela.
- Você fez o quê?! – Geraldo virou-se para Cláudia com um olhar fuzilante.
Laura se afastou dos irmãos rindo alto. Ela deu outro gole, desta vez, diretamente na garrafa.
Cláudia limpou rapidamente os olhos com um lenço preto e protestou:
- Não era justo, Laura, você só deixava aquele apartamento claustrofóbico para mim.
- E olha que eu usei toda a generosidade que eu tinha para deixar alguma coisa para uma pessoa como você.
- Eu? Porquê diz isso?
- Ah, Cláudia, depois que a gente sobe lá fica sabendo de tanta coisa... Minhas suspeitas se confirmaram, foi você quem armou tudo naquela festa, foi você que destruiu meu casamento.
Cláudia não disse nada em sua defesa, talvez essa defesa nem existisse. Laura encarou a irmã, se aproximou e deu um empurrão certeiro fazendo-a sentar na cadeira. Cláudia baixou a cabeça, em silêncio.
Laura olhou em volta outra vez, bebeu outro gole do uísque e olhou a chuva cair de soslaio.
Geraldo estava imóvel, com um misto de raiva e medo da irmã, ele quase tremia.
Laura estava ficando entediada com a família, ela baixou as luzes completamente e deixou apenas as luzes das velas trepidando.
- Assim fica melhor não acham? - Silêncio - A penuuuumbria.
Regina agarrou o braço de Ronalde com muita força tremendo de medo, a testa suada e com uma vontade desesperada de fugir correndo. Ela bem tentou. Num surto estranho ela correu até a porta lateral. Em vão.
- Tolinha... - resmungou Laura mexendo os dedos de leve e trancando a porta.
Regina se deparou com a porta trancada, ela era a personificação do pânico. Lentamente Regina virou o rosto para trás e se deparou com o sorriso amarelo de Laura direto para ela. Regina gritou.
- Por que fugir, Regininha? Eu sei que você nunca gostou de mim, por quê? - Laura estava quase terminando a garrafa com outro gole.
- Você que nunca gostou de mim! - Retrucou Regina que começou a andar para perto do caixão fazendo barulho com os sapatos - Desde que comecei a namorar o Ronaldo.
- Opa, opa, opa, eu comecei a ter um desconforto com você a partir do dia em que você VOLTOU a namorar meu filho depois de receber aquele anel de brilhantes CARÍSSIMO!
- Que mulher não faria o mesmo?
- Não sei, mas as da sua laia com certeza adoram isso.
- Da minha laia? - Regina ergueu uma sobrancelha ficando curiosamente muito bonita.
- Ainda é burra? - Laura bufou - Da sua laia: putas...
- Ah, sua...
Laura não deixou Regina terminar, fez outro movimento com os dedos e Regina voou três metros para trás se esborrachando no chão ao lado do caixão.
- Mãe?! - gritou Ronaldo correndo para perto da esposa.
- Não se preocupe, filinho, ela não vai morrer, ainda.
Laura bebeu tudo que restava na garrafa.
O silêncio voltou a imperar. Algumas pessoas se entreolhavam confusas e muito assustadas, mas a maioria permanecia parada, com medo demais para falar qualquer coisa. Laura se dirigiu até um armário no canto da sala e pegou outra garrafa, desta vez era licor de limão.
A chuva caía fazendo muito barulho e agora os trovões eram frequentes.
- Você não pode beber assim, mamãe. - Ronaldo soltou as palavras mas foi quase inaudível.
Num vulto Laura estava a centímetros dele.
- NÃO POSSO?! - Ela gargalhou - Está com medo de quê? De eu morrer? - Ela riu novamente - Na hora de combinar a minha morte você pensou um pouco diferente, não é?
Alberto corou de vergonha com os olhares que recebeu.
- Mas você sabe que não conseguiria viver por muito tempo - disse ele por fim.
- E você, muito eficiente, apressou tudo... ótimo - Laura deu o primeiro gole no licor - Isso é bom, hein...
Fazia frio agora, muito frio e aos poucos uma fraca névoa começava a se formar na sala.
- Laura, há algum fundamento para essa sua visita absurda? - perguntou Geraldo num tom ríspido.
Laura olhou para ele com uma expressão séria.
- Claro.
Geraldo ficou esperando que ela disse mais alguma coisa, mas não. Regina - que já estava de pé bufando de raiva - e Geraldo sentaram em suas cadeiras, impacientes.
- Droga! - reclamou Laura de repente.
- O que foi? - perguntou Anita.
- Meu aqui está acabando e eu não fiz metade do que queria fazer.
Anita se encolheu, aflita.
- Muito bem, vamos acabar com isso - Laura bebeu dois goles do licor. Todos os olhares voltados para ela. Ela estalou os dedos e um barulho altíssimo de trovoada ecoou - ela agorava poder fazer essas coisas.
Ronaldo revirou os olhos.
- Bem Geraldo, pegue isto, sua parte na herança - Ela entregou uma nota de 10 reais a ele - Seja feliz, nos encontraremos em breve.
Geraldo pegou a nota encarando a irmã.
- Vá! - Gritou Laura apontando para a porta.
Laura ficou mais próxima dele, empurrou-o contra a parede e o segurou pela gravata.
Geraldo já tinha mais de 40 anos, seu corpo não estava em condição de receber baques tão bruscos no corpo, principalmente na cabeça. Amedrontado, ele foi embora.
- Ok, menos um. Hmm, Cláudia? - chamou Laura.
Cláudia levantou a cabeça apressando-se a dizer:
- Tudo bem, eu fico com o apartamento.
- No way - disse Laura mexendo nos cabelos - Seja boazinha e vá embora, só isso.
Cláudia estava atônita.
- Bu! - berrou Laura aparecendo bem na frente da irmã.
Cláudia tirou as luvas pretas e deu um tapa na cara de Laura, esta não sentiu dor, não fisicamente. Laura pôs uma mãe na testa de Cláudia fazendo-a soltar um grito colérico e se contorcer.
- Ainda quer ficar? - Laura ria, sarcástica.
Cláudia caiu no chão reclamando e soltando xingamentos, ela rastejou até a porta com lágrimas nos olhos, abriu e saiu.
- Aos meus adoráveis filhos eu deixo as contas deste funeral medíocre, boa sorte para pagar.
Regina correu desesperadamente para a porta mais próxima, as costas doloridas. Os dois filhos se entreolharam furiosos.
- Você vai mesmo fazer isso com seus netos? - Perguntou Ronaldo, atroz.
- Quem aqui falou em netos? Vão embora.
Laura mexeu a cabeça de leve e uma labareda apareceu entre os dois, eles correram do fogo e foram diretamente para a porta. Alberto quebrou a fechadura com a batida monstruosa que deu para fechar a porta.
- E por último... Anita. - murmurou Laura.
Ela bebeu novamente.
- Merda! Não vai dar tempo, querida. Pegue no meu bolso. - disse Laura.
Um forte clarão iluminou tudo, um segundo mais tarde a tarde tranquila estava de volta. Anita se viu sozinha, ofegante, no salão do funeral, ela olhou em volta e depois pelas janelas e não viu ninguém.
Anita era uma mulher muito medrosa, lutando contra seus instintos de sair correndo pela primeira porta ela foi até o caixão e lá estava Laura, em seu sono eterno. A mão trêmula de Anita entrou no bolso da frente da roupa de Laura. Havia um papel. Anita se esforçou para conseguir ler. Metade da fortuna de Laura era dela, a outra metade para os netos, quando crescessem.
@olavocesar