Malaquias (9)

Malaquias, o Encurralado, vendo-se numa posição em que tinha necessariamente que o fazer, ponderou, mas ponderou bem ponderado, o próximo passo a dar, porque algum teria de ser dado, uma vez que a alternativa era envelhecer ali onde estava, segurando nos braços um homem crescido com a malcheirosa, e porque não dizer, húmida, tendência nervosa para se mijar todo feito bebé de colo, sem fralda ainda para mais, portanto, passar a eternidade naquele impasse, que é hábito dizer-se mexicano, até que cada gota de suor nos rostos de todos os intervenientes, no dele inclusive, cristalizasse, calcificasse como que por magia logo à saída do seu respectivo poro, minúsculas estalactites e estalagmites, dérmicas testemunhas duma situação que nunca alcançaria resolução, pelo menos nunca uma que satisfizesse os anseios de todos os envolvidos, em especial os de Malaquias, o Grande, que só pensava nos sobrinhos, um com e outro sem, e em benefício deles teria de dar o tal passo, o tal muito bem ponderado, que havia a dar.

Era um homem da autoridade, da salvaguarda, ele, Malaquias, trinta anos numa carreira imaculada, se bem que parca em reconhecimento e menos ainda em agradecimento, ao serviço das forças da ordem, da palavra de lei, dos estatutos e da Constituição, do processo devido, enfim, das regras em toda a sua amplitude burocrática, pragmática e fleumática, a tal balança na mão da senhora cega de peito desnudado, duas belas mamocas a exemplificarem o equilíbrio que não se poderia perder, nada nem ninguém poderia questionar, em nome da Justiça que Malaquias, o Obeso, como lhe chamavam os colegas, os invejosos, tinha jurado defender em cerimónia oficial, e uma jura era uma jura, era para manter, mas um homem tem os seus limites e os seus imperativos e os seus a quem defender, sobrinhos, gémeos, um com e outro sem, das mandíbulas do Palhaço, comedor de gente de palmo e meio, e algures lá fora, à solta, esganado após uma valente caganeira suscitada pela última festa de anos que fora contratado para animar, ansioso por voltar ao activo, pintar a cara, abastecer-se de antiácidos e balões e fazer a visita que prometera a Malaquias fazer a casa dos pirralhos, e o tio ali metido na cadeia, no Monte, longe de os poder salvar, daí ponderar, demoradamente, se fazia o que estava a pensar fazer ou não.

Malaquias, outrora pugilista afamado dos seus bons tempos, mas curtos, de Academia Militar, agora por demais gordo e lento e perro e destreinado, um homem que por muito que tivesse o tamanho de três homens era apenas um, para todos os efeitos, homem, contra quantos seriam os guardas prisionais trajados a rigor, preparados para o que vinham, treinados para aquela situação, ou situações parecidas, mas treinados, e bem, e com vinte e cinco quilos pelo menos de alcochoado entre eles e os sarilhos que a baleia vestida de laranja poderia causar-lhes, confiantes e até impacientes, era só o preso 2520 afastar o gume da naifa improvisada do pescocinho do advogado para lhe caírem logo em cima, ele que lhes fizesse a vontade, ele que se atrevesse, aquele pançudo com as manias de grandeza não tinha hipótese, que aqueles eram homens jovens, na flor da idade, músculos e adrenalina sobejando, ganas de lhe chegarem a roupa ao pêlo, e ele a ponderar, a ponderar, Malaquias, o Ponderado, continuava a ponderar sabendo que teria de tomar uma decisão o quanto antes, sabendo que a decisão já estava tomada.

Acima de tudo, Malaquias tinha há muito presente na sua mente uma relação de coisas com as quais antevia conseguir viver, nenhuma delas passava por matar mais um inocente, como imprevistamente fizera a Cats Bamber, palhaço nas horas vagas, mas o palhaço errado, e isso tirava a cabeça do doutor Candy do cepo, embora o próprio não o soubesse ainda, o que justificava que continuasse ainda a fazer chichi nas calças, embora não explicasse o volume aparentemente interminável reservado na sua bexiga alucinada, mas isso era entre o advogado de defesa público e o seu urologista, para aquele problema havia fraldas de adulto, que o resolviam, o mesmo não se podia dizer do outro problema que afligia Malaquias, que fazer assim que soltasse o desgraçado, e as opções apresentavam-se num par desagradável de desfecho imprevisível, potencialmente insatisfatório e tudo, daí Malaquias ter ponderado demoradamente, por tanto tempo que a poça amarelada se expandia no lajedo de ninguém entre o local onde Malaquias estava com o refém seguro pelo cachaço e a primeira fila de guardas prisionais esperavam com o dedo no gatilho, a mão na cavilha da granada de gás lacrimogénio, o punho cerrado à volta do cacetete, tudo para lhe malhar.

Aquela malta nova que não pensasse que Malaquias deixara de ser o Grande só porque era gordo, embora esse fosse um termo de que não gostasse por aí além, preferindo mil vezes, e era um gosto muito pessoal, “roliço”, como a sua saudosa falecida lhe tratava com romântico carinho nos ternurentos momentos passados em vale de lençóis, ou “rechonchudo”, se tivesse mesmo de ser e não houvesse volta a dar-lhe, que eram qualificativos mais fáceis e até nostálgicos de abotoar e não evocavam as piadas maldosas, as ferroadas sarcásticas que teve de ouvir e tolerar na sua chegada ao Monte, da boca dos mesmo putos ranhosos que agora lhe queriam chegar, a respeito das dificuldades e incredulidades dos alfaiates prisionais em satisfazer as medidas descomunais de Malaquias que por ser, digamos assim, gordo, os obrigou a trabalho extra, aquela malta toda que não pensasse que impedi-lo de fazer o que tinha de fazer seria pêra doce, canja, e outras analogias culinárias usadas quando se queria dizer fácil, porque fácil não seria, muito menos canja, menos ainda que isso pêra doce, Malaquias não esquecera aqueles momentos de glória no ringue, a quantidade de K.O.’s dispensados a adversários na categoria de peso pesado, eram uns atrás dos outros, triunfalismo imparável em currículo invencível, muita nódoa negra, muito lábio arrebentado, muito sobrolho castigado, almofadados ou não, estariam para nascer do confronto inevitável entre setenta ou oitenta guardas prisionais, eles que viessem, quantos mais melhor, e Malaquias, o Único, o Grande.

Nuno Lopes
Enviado por Nuno Lopes em 22/03/2010
Código do texto: T2153296
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.