Malaquias (8)
A sirene a fazer lembrar os alarmes de bombardeamento aéreo dos filmes a preto e branco ecoou por todo o estabelecimento prisional do Monte como só acontecia quando os presos se amotinavam, o que não era assim tão frequente, se fossemos a ver, mesmo nada, realmente, na verdade nunca tinha acontecido antes mas, pelo menos, dessa maneira se descobria finalmente se a maldita buzina funcionava como garantira o empreiteiro, e funcionava, assobiava até de forma impressionante, de certeza que o alarido chegava à Baía e fazia assustar os cidadãos pacatos e honestos e sensíveis e até um bocado maricóides que viviam nas torres de vidro com vista para o mar azul, o mesmo que se via do Monte, mas aos quadradinhos, por trás dos quais o motim que a buzina anunciava estar a acontecer estava agora efectivamente em movimento, presos numerados a colidir arrastadeiras contra as grades das celas trancadas, a deitarem fogo aos rolos de papel higiénico, a gritarem obscenidades aos guardas que passavam a correr em direcção ao pânico mal treinado, tudo isto por causa dum colosso laranja, um preso preventivo cuja tampa saltara e já não era sem tempo, com um fragmento aguçado de patchouli encostado à faringe que engolia em seco do defensor público, por esta altura já completamente urinado, precipitado para fora da sala de entrevistas à frente do seu cliente como se fosse um boneco de trapos nas mãos de Malaquias, o Grande.
A jogada era desesperada, era arriscada, era impensada, Malaquias admitia-o, sabia-o, como sabia que alternativa nenhuma lhe restava se queria salvar os seus sobrinhos de irem averiguar de perto, demasiado perto, o processo digestivo dum ser arrancado aos piores pesadelos infantis, um palhaço com dentes, um canibal de cara pintada e peruca de algodão com caracolinhos frisados, o único suspeito que o tio menos favorito dos petizes favorecia como mais do que certo culpado duma onda cheia swell que atingira a cidade solarenga em vagas sucessivas de crimes hediondos, tanto humana como gastronomicamente falando. E Malaquias, o tio menos favorito dos petizes para aqui chamados, que por ter morto um outro palhaço não-relacionado, azar dos azares, fora parar à cadeia, e por dessa circunscrita circunstância geográfica não poder proteger as crianças da irmã da sua falecida, eternamente amada a quem ele, Malaquias, negara, jogando mão de inúmeras artimanhas inventivas, prole, não por maldade ou naquela de acelerar o atropelamento fatal que, aliado ao desgosto que a esposa amantíssima tinha por não ter sido mãe, o veio a tornar precocemente viúvo, mas mais por não se achar grande coisa como hipotético pai, por não ter a perseverança necessária para a miudagem aguerrida, sangue do seu sangue não desfazendo, todos os miúdos eram catalisadores de enxaquecas demolidoras nos adultos e era essa a sua opinião abraçado à qual o deitariam um dia à terra.
Dito isto, estava ou não estava ele a fazer o que estava a fazer, e estando, fazia-o por sentimento de culpa ou por instinto de preservação da sua genealogia, ou por ambos, pouco importava, a ele, Malaquias, e também ao advogado de defesa, o desafortunado doutor Candy, nome apatetado para um homem tão solto de bexiga e histriónicos gritinhos, nem tido nem achado, simplesmente arrastado para a tragédia em que havia resvalado a vida do maior, em volume e façanha, detective criminal ainda vivo, pelo menos era assim que Malaquias pensava acerca da sua pessoa, não sem alguma razão, a César o que era de César, e agora se precipitava de forma desvairada para o mais que provável rocambolesco terceiro acto que se adivinhava no som matraqueado das botas da tropa dos guardas prisionais que se aproximavam com bastões, escudos anti-motim, capacetes de motard apeado, canhões de água, cães, quase sempre pastores alemães, e espingardas shotgun de chumbo grosso e ampla dispersão.
Malaquias ouviu-os chegar, viu quando chegaram e lhe apontaram todo aquele arsenal e lhe pediram, com uma certa e deslocada deferência, para por favor soltar o senhor doutor do Ministério Público, já irremediavelmente urinado, e desistir do que fosse que pensasse que estava a fazer, que pensasse no que estava a fazer para então fazer outra coisa qualquer, e ofereceram-lhe sugestões caso fosse por aí, como largar a navalha artesanal, encostar a cara ao chão com as mãos na nuca e os pés cruzados e render-se, poupar a uma data de gente uma data de sarilhos, podia ser que o juiz se apiedasse de si, podia ser que a boa-vontade que ainda existia para consigo, com ele, Malaquias, lhe encurtasse a pena mais que garantida, podia ser que uma série de outras coisas acontecessem, como, só um exemplo, o Palhaço não fosse a casa dos cunhados comer os gémeos e palitar depois os dentes com os seus dedinhos, as suas falangetas e mais tarde ligar-lhe como da outra vez, a rir-se de Malaquias, a agradecer-lhe por o alertar voluntariamente para a localização exacta de tão delicioso e monozigótico pitéu, coisas como essas, que Malaquias não podia deixar que acontecessem, e não ia deixar que acontecessem, mesmo se os guardas lhe garantiam que nunca iria conseguir fugir do Monte, proeza nunca antes alcançada por quem quer que fosse, que ninguém era estúpido sequer ao ponto de o tentar.
Malaquias, o, afinal ia-se a ver, Estúpido, tinha para si a noção de que só porque uma coisa nunca fora tentada não queria forçosamente dizer que não se pudesse fazer, evadir-se do monte, queria ele dizer, e mais ainda fazer, e encostou de jeito ostensivamente sinuoso a lasca do caco de patchouli um pouco mais à cútis suada do indefeso Candy, que gritou um pouco mais à menina um pedido de ajuda que só serviu para enervar um pouco mais a multidão em traje anti-motim que preenchia o corredor como uma inundação de testosterona envolta em couro e kevlar e ligas de plástico e Malaquias, na singeleza alaranjada do seu uniforme prisional, a teimar não ceder e a teimar não se render, com a população encarcerada aos berros nos corredores e varandins acima e abaixo, rolos de papel higiénico que caíam como inflamados cometas folha dupla, dupla suavidade, a buzina anti-aérea a desgoelar-se nos limites das capacidades do equipamento que tinha sempre razão, a cacofonia descendendo Monte abaixo e indo alvoroçar os ordeiros cidadãos da cidade grande, gente boa que não sabia que o Palhaço aí vinha, guloso, para petiscar nos seus rebentos, mas Malaquias sabia, Malaquias planeava ser a mosca nesse prato, Malaquias, o Grande.