Malaquias (7)

O busílis da questão, que era desse modo empandinado e pernóstico que se expressava o Doutor Candy, o advogado de defesa que desabara das sortes em cima de Malaquias, o presidiário, permanecia na dificuldade incontestável de se tentar convencer um júri dos seus pares, embora o doutor tivesse para si que não haveria par para Malaquias, obesidade alaranjada sentada do outro lado da mesa da sala de entrevistas do estabelecimento prisional do Monte, mas essa era outra história e, cingindo-se à que o trouxera até ali, vinte e três quilómetros de curvas montanha acima, a dificuldade estava em conseguir convencer um júri, uma dúzia de pessoas que caíam sempre de pára-quedas naquelas situações, mais interessadas em chegar a um consenso que os devolvesse às suas vidinhas habituais do que em ir ao fundo das especificidades da situação em julgamento, portanto, convencer esse tipo de gente enfastiada que a morte de Cats Bamber fora um trágico desastre e que quem Malaquias, ele próprio outro trágico desastre, queria mesmo decapitar a tiro de mula era um palhaço sobrenatural que, como os míticos comunistas do antigamente, comia crianças ao pequeno-almoço, embora este Palhaço repetisse o prato ao almoço e ao jantar, por nunca enjoar.

Malaquias, prisioneiro 2520 do Monte, local de má fama cuja superlotação desavergonhadamente a chegar a roupa ao pêlo dos mais básicos direitos humanos se devia em grande parte às inimitáveis artes detectivescas daquele que fora, embora nunca reconhecidamente, o melhor agente das forças da autoridade que as gentes das forças da autoridade haviam tido a sorte de ter a trabalhar do seu lado, Malaquias, o Grande, estranhava o facto da data do seu julgamento ser constantemente adiada, posposta, postergada, tudo palavras que queriam dizer a mesma coisa e de ele, Malaquias, aquele cuja paciência, outrora grande como ele, agora minguava de dia para dia, continuar ali metido, partilhando as suas refeições com criminosos do pior que todos os dias o tentavam enrabar no duche comum da manhã ou no refeitório chinar com uma chave de parafusos na fila para o pão, pão que era seu de direito, e dividindo a cela com um tipo que fazia chichi sentado e lhe lançava olhares travessos sempre que Malaquias se ia deitar em tronco nu. E enquanto Malaquias por ali se demorava, cumprindo uma pena ainda não estabelecida mas, até prova em contrário, em perpetuidade, o Palhaço, a tal figura quimérica que mais ninguém além dele acreditava que existisse, continuava à solta, à vontade para não se desviar um bolo de arroz que fosse da sua dieta à base de imberbes petizes. O Palhaço, esse astuto predador que, como as leoas da savana que rondavam os bebedouros para jogar os dentes às goelas das gazelas sedentas, sabia esperar que a sua refeição favorita periodicamente se reunisse em magotes à volta de um bolo de anos guarnecido com uma Hello Kitty modernaça ou um Mickey Mouse bem mais clássico e uma velinhas numeradas, para então fazer a sua jogada fatal. Era veloz, o Palhaço, petiscando nas desprevenidas criancinhas a meio do segundo verso dos “parabéns a você” com tal voragem que no fim da canção já não restava alguém para bater palmas ou apagar as velas ou sequer, e talvez fosse esta a parte que maior rombo abria no coração apertado de Malaquias, o sensível, comer uma fatia do bolo.

O Doutor Candy compreendia as dores de Malaquias, que ele próprio não renegava uma fatia de bolo de aniversário sempre que alguma lhe passava à ilharga, mas Malaquias teria de fazer por entender as suas, enfiar os seus enormes presuntos, se conseguisse, nos sapatinhos envernizados que o Doutor comprava nas feiras com o parco ordenado que o Ministério Público lhe pagava, não tivesse Malaquias dúvidas que era mesmo parco, e calcorrear nesses mesmos sapatos de qualidade inferior os labirínticos métodos processuais duma instituição demasiado antiquada, orgulhosamente intransigente, redundantemente palavrosa, onde a piedade, a compreensão e, enfim, todas as formas de empatia em geral eram reservadas para as coitadinhas das pobrezinhas das infelizes vítimas e se pensasse lá bem, senhor Malaquias, pense lá bem, a vítima naquela situação era um tal de Cats Bamber, bom homem cuja fila de testemunhas abonatórias ou de apenas pessoas que o tinham conhecido de vista dava a volta ao quarteirão, cada uma delas e dizer, entre choro e revolta, que o único mal que o desgraçado fizera na vida fora o de ter querido ajudar uma vizinha em apuros quanto ao destino a dar à festinha de aniversário dos seus filhos gémeos uma vez que o palhaço que pensara contratar estava afinal a esmoer uma caganeira homérica e tinha ficado com uma dúzia de miudagem nas mãos sem meio de os entreter e evitar que, no tédio mais que previsível que se seguisse, a mesma dúzia de miudagem se fizesse aos cortinados novos, à porcelana herdada da avó e àquelas peça de mobiliário mais susceptíveis às cabriolas próprias da idade.

Tudo aquilo estava muito bem, ou melhor, estava mal, mas Malaquias, o apressado do fato-macaco laranja, era da convicção que o Ministério Público devia era patentear uma maior apreensão para com as futuras vítimas do Palhaço, que uma caganeira não era exactamente uma doença crónica, estava mesmo mais para maleita aguda, e o monstro da cara pintada e dos sapatões de biqueira desproporcionada não ia demorar muito a curar a vermelhidão do esfíncter prolapsado e amansar os intestinos aos pinotes para vestir a sua farpela remendada, pintar o nariz de encarnado, pespegar à pinha a peruca cor de laranja, coser a buzina em forma de flor amarela à lapela e, assim tão bem disfarçado, começar a atender o telefone cujo número vinha sem medos na lista e a anotar moradas e a aparecer às horas combinadas às festinhas de anos e a comer os aniversariantes e os convidados de palmo e meio e a voltar a desaparecer como se nada fosse, como se tudo fosse fruto da imaginação desnorteada de Malaquias, o fantasioso.

Só que não era fantasia, como não era birra sua a certeza de que o Palhaço tivesse feito subir para o topo da lista de coisas a fazer assim que cagasse um pouco mais sólido, que era como quem dizia, destacar no seu menu sangrento como se do apetecível prato do dia se tratassem os gémeos da irmã da sua falecida, sua, de Malaquias, não do Palhaço, a quem não se conhecia família, os sobrinhos que Malaquias, na altura ainda o Grande, usara como engodo e, esse plano tendo dado para o terrivelmente torto, jurara proteger a todo o custo, nem que para isso se visse na situação de agarrar pelo colarinho o advogado que lhe calhara em sorte, encostar-lhe a naifa feita em sabão e caco aguçado de garrafa de perfume patchouli que roubara ao tipo que sentado fazia chichi e com um refém em seu poder poder escapar-se do Monte à má fila, que para grandes males, grandes remédios, não pensasse o Doutor Candy que Malaquias não era homem para tal, que era, e já que o assunto viera à baila, e não se tratando de algo pessoal, talvez aquela fosse boa altura para o advogado de defesa começar a gritar por socorro e meterem à estrada aquele circo cujo artista principal era Malaquias, Malaquias, o Grande.

Nuno Lopes
Enviado por Nuno Lopes em 22/03/2010
Código do texto: T2153286
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