Eterno retorno
Uma grande mansão que estava dando adeus a mais um móvel estimado e bastante valioso, aqueles dois carregadores o estavam agora colocando no caminhão. Aquela pobre viúva enxugava as lágrimas, sua casa estava sendo desmanchada pouco a pouco. Antes abarrotada, hoje quase vazia. Só o neto tinha a resposta para onde o marido tinha guardado o dinheiro. Morte, falta de sangue, e aquela empregada tinha levado não somente a vida do marido, como também o glamour que a cercava. Era uma velha bastante azeda, não tinha amigos e ninguém que a pudesse ajudar enquanto o neto não voltava da Austrália, terminava o ano letivo, não tinha como voltar antes.
A velha governanta tinha ficado bastante doente, o médico havia recomendado repouso absoluto, foram décadas dedicadas aquela família, mas agora teria que aposentar. Sugeriu sua sobrinha para ocupar o lugar, nepotismo. Era uma moça que falava muito bem, tinha bons modos e um corpo lindo, cheio de curvas, daquelas que qualquer mulher inveja, o corpo em conjunto com um rosto angelical. Ele ficou fascinado, a esposa foi contra, mas naquele lar patriarcal a decisão do homem prevaleceu, a moça fora contratada. A velha foi incumbida de explicar o trabalho, explicação esta muito mal feita, parece que foi proposital, com o único intuito de chamar a atenção da jovem quando ela fizesse algo errado.
Os meses foram passando com uma tranqüilidade quase monótona, a única coisa que se percebia eram os assédios mais declarados do velho com a jovem, com o tempo os gracejos foram se tornando mais freqüentes, com eles vieram muitos presentes: Anel de ouro, colar de diamantes, um vestido exuberante para a noite e etc. A velha percebia tudo com ar de asco, sabia que aquilo mais cedo ou mais tarde iria acabar acontecendo. Era rico e velho decadente, ela pobre mas linda, na flor da idade, ele oferece o dinheiro, ela oferece o corpo, nessa situação uma troca justa. A velha não tem o que fazer além de fechar os olhos para as situações, até aquelas mais contrangedoras, como naquele dia em que ele na mesa a agarrou, colocando as mãos por baixa da saia, diante de tal cena a velha queria sair correndo, deixando o palco para eles, mas preferiu tratar com indiferença. Ela não iriam se separar ela pensava, embora fosse considerada uma megera por todos, tinha que manter o ar distinto da união familiar, o casamento mantinha o status.
Com o tempo o velho começou a confiar demais na jovem, traçava inclusive planos para ficar com a jovem quando a megera morresse, iriam morar em outro país até, longe das fofocas da alta sociedade. Mas ele cometeu o grave pecado de confiar demais, a jovem moça era muito ambiciosa, e o fato de ter contado para ela sobre sua maleta de diamantes, fez com que o fogo da riqueza queimasse nos olhos da jovem, ela não perguntava diretamente aonde ele escondia, não queria dar pistas sobre o seu interesse, esperava que o velho lhe contasse aonde guardava. Ele falava muito do neto e incitou ciúmes na jovem amante contando que o neto era a única pessoa além dele que sabia aonde os diamantes estavam escondidos. A desgraça aconteceu sem nenhuma previsão. O velho tinha sofrido um ataque cardíaco, a jovem estava ao seu lado, ao invés de ajudar chamando a ambulância, para o desespero do enfermo, ela o sacudia pra lá e pra cá, perguntando:
- Aonde estão os diamantes? Me conta que eu o salvo, porra.
O velho moribundo via chocado a transformação do doce em amargo, sua mulher agora entrava em cena, derrama a água do copo no chão e grita por socorro, o marido estava sendo morto por aquela biscate. A jovem ao perceber que poderia cair em desgraça, abandona o corpo praticamente morto do amante e foge correndo, a velha a seguiu por alguns metros a xingando de tudo quanto era nome, seu marido morria. A polícia não acreditou na versão da velha, o laudo confirmava que ele tinha tido uma parada cardíaca, morto por causas naturais, ela devia estar cega de ciúmes, quando o marido morreu a primeira coisa que pensou em fazer era expulsar a empregada. Essa foi a versão que a jovem tinha dado, os vizinhos e amigos ciente da fama da rabugenta, apoiaram os argumentos da jovem. Ela ainda não tinha cumprido seus objetivos.
Patrick, o neto, chegava da viagem, sabia que seu avô tinha morrido e se lamentava do fato de não ter podido vir ao seu enterro, ter dado o último adeus. Sua avó já tinha deixado ele a par da situação, o neto constatou com alarme a decadente situação, o luxo de outrora dava lugar a teias de aranha. O testamento só poderia ser lido quando ele chegasse, com o testamento certamente viria a chave da maleta, resgatando com isso a elegância perdida. O que separava eram pequenos problemas jurídicos, em poucos dias estaria de posse dos diamantes, precisava aguardar. A velha insistia que aquela jovem tinha matado o marido, exigia que o neto tomasse uma providência e se vingasse. Ele não deu a mínima bola para a velha, adorava o avô mas não gostava da avó, de noite algo o fez mudar de idéia.
Muito cansado, ainda sentia os efeitos da viagem. Seu quarto ainda não havia sido atacado pela decadência, conservava todos os móveis: uma cama, um guarda-roupas, uma escrinavinha, uma cômoda, os aparelhos eletrônicos de praxe e o baú vazio. Era um grande baú onde na infância guardava as revistinhas e os brinquedos. Apagou a luz e se deitou para dormir, poucos minutos depois ouviu uma voz imponente:
- Não pense que irá dormir antes de falar comigo? Acorda!
Deu um pulo da cama, por breves instantes achava que estava ficando maluco. Tornou acender a luz, abriu a janela e nada. Quando pensava em desistir de procurar e já tinha voltado para a cama, a voz novamente, dessa vez mais esclarecedora. Ele teve a impressão que a conhecia.
- Abra o baú e irá me encontrar.
Patrick levantou da cama, com muito tato e medo abriu o baú. Deu um pulo para traz, esfregou as vistas, não podia acreditar naquilo, lá estava o seu avô, na verdade o espírito do avô sorrindo para ele. Pensou em sair correndo, suas pernas tremiam, mas aos poucos foi se tranqüilizando, era apenas o avô, mesmo que apenas o espírito dele, mas não era um espírito maligno. O fantasma que estava sentado se levantou.
- Uma pena nos encontrarmos nessa situação, mas quero fazer um pedido, o que sua avó falou daquela biscate é verdade, quero que você vingue a minha morte, só assim poderei descansar em paz e largar esse baú, não me decepcione.
O velhou acabou de falar e sentou novamente no baú, com a tampa se fechando em seguida. O neto queria poder fazer mais perguntas, extender um pouco mais a conversa, tentar entender o que deveria fazer, em vão, o velho já tinha ido.
Garçonete, era essa a nova profissão da empregada, garçonete de uma badalada cafeteria. Ele gastou uma grana para alugar um carro importado, tudo para impressionar. Sentou em uma mesa ao ar livre, em frente ao carro, esperou ser atendido por ela. Simpático, ele pediu o trivial e a todo momento fazia um gracejo, deixando a moça corada, ensaiou por diversas vezes começar uma conversa, mas esquiva ela queria se fazer de difícil, valorizar a conquista. No final conseguiram conversar um pouco, ele prometeu voltar no dia seguinte para conversarem melhor. Voltava para a casa, era um começo para a sua vingança, ainda não tinha elaborado uma, nem fazia idéia de como finalizar, não podia simplesmente dar um tiro na cabeça dela, não poderia abandonar assim sua liberdade, teria que pensar em alguma coisa simples, algo que deveria ser feito embaixo dos panos. Em casa foi questionado pelo avô.
- Já me vingou? Falou o velho sentado no baú.
- Ha ha, como se fosse fácil assim.
- Bem, tome cuidado, ela é muito boa nas artimanhas, não custa a te fisgare acabar com a sua vida, assim como fez com a minha.
Patrick dormiu pensativo, no dia seguinte iria vê-lo novamente, era importante que ela não soubesse sua real identidade, só assim seu plano ainda não desenvolvido poderia funcionar. Na hora marcada ele estava lá, ela chegou um pouco atrasada.
- Desculpe, fiquei um pouco atarefada em casa, custei a conseguir sair. Sempre que eu chego do trabalho tenho que ajudar minha tia, ela está adoentada. - Falou esboçando um genuíno sorriso.
- Tudo bem, poderia ficar esperando horas por você.
Horas se passaram e eles conversaram sobre praticamente tudo, Patrick inventou que era filho de médicos e tinha vindo descansar um pouco na casa dos avós, esperando o próximo ano letivo começar. Embora ela fosse uma jovem de origem humilde e poucos estudos, se expressava muito bem, tinha um vocabulário vasto, de dar inveja, fora que tinha o dom da comunicação, fascinava qualquer um com a sua simpatia e histórias simples. Patrick começava a perder a convicção da vingança, uma moça doce como essa não poderia ter feito algo de ruim, deve ser um mal entendido.
- Uma faca no coração resolveria fácil fácil a situação. - Falou o velho.
- Claro, e quem vai preso ou eu e não você.
A terceira noite de conversas acabou abruptamente, o velho estava bastante irritado com o neto, estava demorando muito a resolver a situação. Ele estava dando chance ao azar, se envolvendo sem nem ao menos perceber. Ela sabia que ele tinha dinheiro, ele até já tinha comentado com ela que iria receber uma fortuna, pendências jurídicas impediam isso. Mas ela sentia que tinha alguma coisa errada. Certa vez queria conhecer a família dele, ser apresentada, ela desconversou e acabou a levando em um motel, foi a primeira noite deles. Fora a contradição sobre a sua moradia anterior, confundia falando horas de um lugar totalmente diferente da capital, qualquer coisa no estrangeiro, estava sempre tentando se redimir, o que aumentava as suspeitas. Resolveu investigar.
Certa vez quandoe ele se despediu, ela foi atrás, pegou um táxi e pediu que o seguisse, para a sua surpresa ele estacionou em frente a casa onde tinha trabalhado anteriormente. "Então ele é o neto que o velho sempre falava, deve ter vindo se vingar", pensou, e foi embora.
Abriu a porta e lá estava a velha, Patrick foi confrontá-la, não acreditava na versão da megera, aquela doce mulher não poderia ser uma assassina, não tinha a mínima chance.
- Mas ele morreu de ataque cardíaco, não pode a acusar!
- Ela que o matou, eu vi tudo, não estou inventando.
Patrick enfurecido subia para o seu quarto quando a velha o chamou para lhe contar dessa vez uma boa nova.
- Amanhã o advogado vai estar aqui para ler o testamento.
No quarto ele conseguiu dormir tranqüilamente, o velho se prestou apenas a um comentário seco: "Já avisei", e não falou mais durante toda a noite. Patricl pensava que em breve a sua esquizofrênia iria passar, lógico que só poderia ser isso, imagina um espírito que mora no baú conversando comigo, uma histeria, essas coisas não existem, não existe lugar para o sobrenatural. Estava convicto de que iria contar para ela toda a verdade, iria deixar algum dinheiro para que a avó não passasse fome e iria fugir com a jovem para bem longe dali.
Acordou cedo, tomou o café da manhã. Enquanto tomava banho notou a chegada do advogado, vestiu sua roupa e desceu. Como já era esperado, ele herdou a chave e com ela o número da caixa postal. A avó teria herdado a casa, os móveis( a maioria já tinha sido vendido) e algumas economias que ele mantinha no banco, era pouca coisa. Sua avó o confrontou assim que o advogado foi embora.
- Você vai dividir isso comigo! - Falou agressiva.
Não querendo entrar no mote da discussão, ele concordou sobre a divisão, falou só por falar, ia dar apenas uma pequena parte e olhe lá.
Correu ao trabalho da moça, disse que queria contar algumas coisas e que ela não iria mais precisar trabalhar naquela cafeteria. Ela jogou o avental do trabalho no chão e saiu correndo com ele. No motel fizeram amor e quando terminaram, ele começou a contar tudo:
- Então, é claro que não acredito na velha, morria de ciúmes, aproveitou a oportunidade e quis jogar a culpa em você, mas iremos embora desse lugar, somos ricos agora.
- Você já sabe qual é o esconderijo?
- Sim, é na caixa postal do correio no centro da cidade, depois daqui, vamos lá juntos buscar os diamantes, está disposta a ir embora comigo?
- Claro, meu amor.
A janela do quarto estava aberta, ele se levantou da cama e vestiu a roupa, no banheiro ajeitava o cabelo quando sentiu uma forte pancada na cabeça, no chão ainda levou outras pancadas de um castiçal de metal, abrindo o seu crânio em dois e espalhando uma poça de sangue pelo chão do banheiro.
Dois homens carregavam o baú, foi o penúltimo móvel a ser vendido, a casa agora estava vazia, em breve seria tomada e a velha megera seria despejada, ela enxugava as lágrimas, do esplendor a pobreza. Já a empregada, da probreza á riqueza, tinha pego os diamantes e ido morar com a tia como uma princesa na Europa. O caminhão sacudia bastante, o baú não estava amarrado e sacudia para lá e para cá. Dentro dele, dois espíritos se esprimiam.
- Eu avisie, não quis ouvir a voz da experiência. Tira essa perna pra lá. - O velho falava visivelmente irritado.
A única coisa que o jovem fazia era levar as duas mãos na cabeça e se lamentar, passaria toda a eternidade ouvindo as broncas do avô.