A janela empoeirada

Mais uma manhã, por aqui. Não apenas mais uma manhã, quero dizer, mas, a manhã. Os pássaros a cantar, as folhas a roçar umas nas outras, e todos os harmônicos sons da natureza ouvidos por mim de uma forma bem abafada, em função do isolamento que meu quarto oferece. Fechado neste cubículo, o único contato que tenho com o mundo exterior é por uma janela empoeirada que se encontra aqui, ao lado da cama.- “Não é possível abrir, está emperrada há anos!”, diz a enfermeira com um manso e compassivo tom de voz, toda vez que peço para abri-la. Sim, eu insisto e insisto, repito e repito. Nossa, como eu desejo sentir o ar puro e ouvir claramente o som da natureza!

Aqui dentro não há muito o que fazer: tomar remédios, comer, dormir. Todavia, o meu passatempo predileto é sentar em frente à janela e observar. É admirar o cotidiano dessas pessoas livres, o dia a dia dos que não vivem presos em cubículos. É imaginar como será a vida dos que respiram o aroma das flores e se deleitam do doce sabor que apenas uma fruta fresca pode propiciar. Como desejo sentir o brilho natural refletido em meu rosto!

Todos os dias, desde que acordei aqui, fico a contemplar o cadenciado voo de beija-flores, o mágico passeio de famílias pelo parque e toda a perfeição possível da cidade que uma janela empoeirada poderia permitir. Que belo mundo!

Dia após dia, observo detalhadamente cada transeunte. Contudo, o mais distinto e ilustre personagem neste cenário teatral é um homem que vive na rua. Um mendigo, diriam todos. Ele habita as redondezas deste prédio, ronda em busca de alimento, na maior parte das vezes, rejeitados e jogados pelas pessoas daqui num latão de lixo. Um homem sem uma perna, que luta todos os dias para ganhar comida. Luta todas as noites para dormir no imundo chão abaixo de minha janela. Luta a cada dia para viver. Confesso que tenho grande admiração por esse homem. Apesar de tudo, creio que ele nem tenha conhecimento de minha existência. É peculiar até, mas, deste andar e desta janela, segundo a enfermeira, nada de fora pode ser visto. De qualquer forma, reafirmo: o admiro. Por vezes, o invejo. Um batalhador, um homem livre que percorre todos os dias a cidade, apoiado em uma muleta de madeira. Como ele consegue, é uma questão, talvez, nunca respondida. Eu desejo profundamente estar no lugar dele, ser como ele, ter essa liberdade. Almejo catar objetos, construir ferramentas primitivas e guardar naquela caixa de papelão. Ah, a caixa de papelão! Uma verdadeira arca do tesouro!

Desde que acordei, notei que hoje seria um dia extraordinário. Um sopro suave do vento, só um sopro!, a beleza matutina sussurrava secretamente para mim. Eu sei que a janela pode ser aberta, tenho certeza até, e por dias planejei e esperei o momento chegar. É o dia, afirmei. A enfermeira saiu pela manhã, bem cedo. Logicamente, me trancaria pelo lado de fora. Sem perder tempo, caminhei em direção à janela. Lindo dia, de fato.

Próximo dali estava o homem da rua. Tentei abrir a janela, e sujei minhas mãos completamente com a poeira encrostada. Não abria. Repetindo o processo, usei mais força. Mais, e mais, até que pus o máximo de força que meu fraco e sedado corpo poderia exercer. Logo, o inesperado ocorreu: a força aplicada foi tanta que o vidro se soltou e despencou os cinco andares indo de encontro ao chão. Não sei se passou algo pela minha cabeça. Unicamente talvez, o susto ao ver e ouvir o impacto do vidro, espalhando cacos próximos da caixa do homem. E ele também se assustou. Olhou aturdido para o prédio, especificamente para a janela onde eu estava. Demonstrei-lhe um sincero e puro sorriso. Porém, nada alterava sua expressão atônita. Completamente parado como uma estátua de mármore. Parecia ter visto um monstro.

No mesmo momento, senti uma dor aguda na sola do pé. Vi, ao levantar, umas gotas de sangue. Era um caco da janela, que havia entrado no meio de meus dois dedos. Preciso lavar isso, pensei. E desajeitadamente fui ao banheiro. Acabei por perder o equilíbrio e quase derrubar o armário do quarto. Mas, não, apenas um bloco de anotações caiu de cima dele. Era meu prontuário, desconhecido por mim, até então.

De repente, quando comecei a ler, um barulho na porta me abalou. Oh, meu Deus, a enfermeira voltou! Logo pensei. Bruscamente, ouvi-a ser aberta e, comigo ainda de costas, um violento golpe foi desferido em uma de minhas pernas. Caí, perplexo. Percebi que havia tombado de joelho para um lado, caindo exatamente no prontuário. Diversos jatos finos de sangue jorravam, e a crescente dor chegou ao seu clímax quando notei minha perna decepada, solta, próxima ao armário. E pude ler neste instante algumas das palavras nítidas do prontuário, as que não estavam cobertas pelo meu sangue: Assassinatos, tentativa, amnésia. Bastaram estas três palavras para trazer à tona, de forma estonteante, flashbacks e um turbilhão de fatos em minha mente, tão freneticamente quanto o movimento de uma montanha russa.

Virei-me. Vi o ensanguentado machado em uma de suas mãos e a outra servia de apoio para a muleta de madeira. E, ao direcionar meu olhar, lá estava aquele rosto familiar, distinto, impassível, a me encarar. Pasmem, e olhando para minha perna amputada , pude dizer simplesmente:

-Agora, somos iguais.

-Não! - respondeu, ele.

E ergueu o pesado machado o mais alto que pôde fazendo-o cair brutalmente contra o centro de meu crânio.

-Agora, sim, somos iguais. – e uma abrupta e completa escuridão se apossou do local.