Retratos do Inferno
- Casa nova, vida nova, emprego novo! - Josué mal se continha em sua felicidade.
- Que bom que está gostando... - Ironicamente, a adolescente Sofia de 16 anos respondeu.
- Espero agora poder ter espaço para minhas pinturas! - Roberta, a esposa, também estava feliz com a nova casa. - Vamos crianças! - Chamou os gêmeos de 10 anos de idade, Júnior e Davi.
Moravam na grande cidade de São Paulo, tinham uma vida agitada, tanto socialmente como profissionalmente. No entanto, tal agitação, causou problemas para Roberta. Ela não trabalhava fora, mas lidava com o lar e os filhos e tinha um talento para as artes visuais, adorava pintar, e frequentemente vendia seus quadros, que por sinal eram sempre muito bons. Os quadros de Roberta transmitiam aquilo que ela era, uma pessoa calma, centrada e de bons valores, seus desenhos sempre inspiravam bons sentimentos. Mas foi justamente nos quadros onde percebeu-se que havia algo errado com Roberta, ela passou a pintar com bem menos frequência, suas pinturas não eram belas, ao contrário, eram abstratas e impunham algo pesado a quem as apreciava. Logo percebeu-se que ela não estava bem, sentia-se triste, chorava as vezes e com isto a vida familiar ficou prejudicada. Após consulta com o médico, o mesmo diagnosticou uma depressão. A vida que levavam, bem como o local que moravam, não ajudava em nada o estado de Roberta, eles precisariam mudar-se para um local mais tranquilo.
Não é muito comum uma sequência de fatos se desencadearem para seu próprio benefício, já diz a lei de Murphy "Se algo tem chance de dar errado, então dará errado", no entanto, com esta família foi ao contrário. O problema de Roberta, trouxe certeza a Josué de que deveriam mudar-se para o interior, e isto era um antigo sonho seu. Mas o problema era trabalho, não era possível simplesmente abandonar a carreira de engenheiro numa grande empresa. Contrariando as leis de Murphy, a empresa onde Josué trabalha, assinou diversos contratos no interior de São Paulo, e o convidaram a assumir os negócios da empresa naquele local, algo que ele nunca sonharia. Os anos de serviço e a competência de Josué lhe renderam agora uma bela promoção e finalmente realizaria seu desejo de morar em um lugar onde ao invés de buzinas e sons de carro, pudesse ouvir o sons de alguns pássaros ou mesmo de pessoas contando "causos" sem se preocuparem com o tempo passando. Para completar a maré boa sorte, um parente de Roberta, ofereceu-lhes um pequeno sítio a um preço bem reduzido. O sítio ficava a quinze minutos da cidade, não estavam isolados e nem próximo demais da cidade, era perfeito, não pensaram duas vezes.
Tudo era uma maravilha, menos claro para Sofia, que era como diziam seus irmãos menores, a "aborrescente". Para uma garota de 16 anos, abandonar o local de origem, escola, amigos é um choque e tanto. Apesar de contrariada, Sofia entendeu que era pelo bem de sua mãe e alimentava certa esperança de que um dia voltariam para a cidade de São Paulo. Sofia possuia certo talento também, mas para a música. Tocava flauta como ninguém. Muitas vezes, quando a família estava reunida, com parentes de todos os lados, ela fazia seu pequeno espetáculo, e todos adoravam, exceto seus irmãos menores, mas não se podia esperar muito de dois garotos agitados de 10 anos que pensam somente em futebol e carros.
A casa de fato era muito bela, cercada por um jardim com gramado, algumas árvores e flores, transmitiam um tranquilidade sem igual. A casa foi desocupada a somente 1 mês, e os antigos moradores cuidavam dela com muito esmero. Havia um balança em uma das árvores, um banco suspenso na varanda, bem como duas redes. A casa era grande, possuía vários cômodos. Finalmente Sofia teria seu próprio quarto, pois a antiga casa era pequena, e ela tinha que dividir o quarto com os irmãos. Os garotos porém, preferiram continuar dormindo no mesmo quarto, eram bem companheiros. No andar superior, ficava somente os quartos e uma pequena sala de TV. Embaixo os demais cômodos, onde Roberta finalmente teria um espaço só para ela, um pequeno ateliê. Josué também poderia usar um dos cômodos para fazer seu escritório.
Após a primeira semana, estavam bem instalados e felizes. Roberta parecia estar melhorando da depressão, pintava quadros mais alegres, com maior frequência. No entanto, após um mês, Roberta deu sinais de que ainda não estava muito bem.
- Pai, você viu a última pintura que a mamãe fez? - Sofia perguntou a seu pai, que mal entrara em casa.
- Olá, boa noite! - Josué fez graça com a pressa de Sofia. - Não ainda não. Ela terminou hoje?
- Não, já faz dois dias, e ela ainda não começou outro.
- Fiquei tão ocupado esses dia que não me atentei.
- Venha ver.
Sofia puxou o pai pelo braço, levando-o até o ateliê de sua mãe. Acendeu a luz, e havia muitas telas ainda inacabadas, mas uma ao centro concluída, e com certeza chamava a atenção, mas não pela beleza.
- É este pai.
- Mas o que é isso...? - Josué coçou a cabeça analisando a pintura.
- Estou até agora tentando descobrir.
A pintura possuía apenas 2 cores, preto e um vermelho escuro, da cor do vinho. A cor preta formava um sombra, onde notava-se contornos de uma forma humana. Todo o resto da tela era preenchida com a outra cor, o vermelho, e alguns tons de preto. A sombra possuía em sua cabeça os olhos vermelhos e uma boca vermelha. A boca estava bem aberta, os olhos em ângulo formando uma expressão triste. A figura era de fato perturbadora.
- Você já questionou sua mãe sobre isso?
- Sim...
- E o que ela disse?
- Disse que não se lembra de onde ou porque pintou isso. Ela diz que se lembra dela pintando, mas não sabe porque, como se não fosse ela.
- Que coisa, será que ela está tendo uma recaída?
- Talvez seja melhor a mamãe ir no médico de novo.
- Vamos fazer o seguinte, amanhã é feriado, mas vou ter que trabalhar. Então quero que você fique com sua mãe o dia todo, e quando eu voltar você me diz como ela se comportou.
- Ok, fechado!
No dia seguinte, Josué trabalhou todo o dia. Estava tão absorto em seu trabalho que até se esquecera do combinado com filha, atrasando-se para chegar. Quando chegou, Sofia o recebeu com inquietude, estava bastante preocupada.
- Pai, até que enfim!
- Desculpe, eu me atrasei no trabalho.
- Vem aqui logo!
Sofia puxou-o pelo braço, e mais uma vez foram até o ateliê. Josué espantou-se ao ver a pintura.
- Que diabos é isso!?
- Não sei pai... Estou com medo... A mamãe deve estar muito doente.
O espantoso desta vez era a qualidade da pintura, não era simples como a anterior, pelo contrário, ela bem elaborada, ultrapassava as capacidade que Roberta possuía. A pintura mostrava uma pequena igreja, uma capelinha. Estava abandonada, no alto uma cruz jazia torta e contorcida. Ao redor da capelinha havia inúmeras cruzes, algumas eram simples, de madeira, outras pareciam mais elaboradas. O local era o retrato de um cemitério, o ambiente criado na pintura por Roberta transmitia um ar muito macabro e misterioso. Mas ainda assim, a qualidade da pintura era inegável.
- Como ela conseguiu pintar isso? - Josué questionava-se.
- Não sei, fiquei com ela o dia todo. Ela pintou esse quadro numa velocidade incrível. Mas o mais estranho não foi isso...
- O que houve???
- Ela simplesmente recusou-se a preparar nosso almoço... Parecia muito brava, nunca tinha visto uma expressão como aquela. Fiquei com medo, então eu tive que preparar o almoço para mim e meus irmãos. Ela continuou aqui, pintando sem parar. Disse para os meninos que hoje a mamãe estava descansando. Eles foram falar com ela, dizendo que eu cozinhava mal, e sabe o que ela respondeu...?
- O que???
- Ela disse: "Então morram de fome!", o que está acontecendo pai?! - Sofia não pode mais conter as lágrimas.
- Minha nossa! Sua mãe nunca agiria dessa maneira.
- Eu sei... Isto está muito estranho... Ela está muito doente!
- Vá descansar minha filha. Vou conversar com sua mãe e ver como ela está.
- Tudo bem, mas mantenha nosso segredo, ela não pode saber que te contei tudo, estou com medo que ela fique muito brava.
- Tudo bem querida.
Ambos se retiraram. Josué ao entrar no quarto, deparou-se com Roberta deitada na cama, de olhos fixos para o teto enquanto batia as pernas contra o colchão.
- Boa noite querida!
Não houve resposta.
- Como foi seu dia?
Não houve resposta novamente.
- Não quer conversar comigo?
- Por que? A desgraçada daquela garota já contou tudo!
- O que??? - Josué surpreendeu-se da pior maneira, nunca havia visto a mulher falar daquele modo muito menos de sua filha. - Por que está falando assim?
Mais uma vez, Roberta ficou em silêncio.
- Querida, Eu quero te ajudar...
- Me ajudar? Não precisa, posso preparar seu lanche sozinha. Você deve estar muito cansado, trabalhou até tarde. Espere um pouco que já volto.
Desta vez Josué ficou ainda mais confuso, em um estalar de dedos a mulher voltou a ser meiga e amorosa como antes.
- Mas...
- Não se preocupe, já volto!
Ela desceu, sem que Josué pudesse dizer algo ou entender o que estava acontecendo. Josué então entrou no banho, resolveu esperar seu lanche. Ao sair do banho notou que a esposa ainda não tinha voltado. Aguardou mais alguns instantes e estranhando a demora, resolveu descer e ver se estava tudo bem. Ao descer as escadas, notou que todas as luzes estavam apagadas, exceto a luz do ateliê. Dirigiu-se até o local, e viu a esposa de costas, pintando mais um quadro.
- Querida?
Josué chamou sem resposta.
- Querida, está tudo bem?
Josué deu alguns passos em direção a Roberta, que não respondeu e continuava a pintar. Aproximou-se ainda mais, e suavemente colocou a mão sobre o ombro de Roberta.
- Querida, já está tarde para isso.
Um silêncio pairou novamente, Roberta interrompera o movimento de sua mão sobre a tela. Estava ainda olhando para tela, não virara o rosto para seu marido.
- Querida...
Antes que Josué pudesse esboçar qualquer reação, Roberta com muita agilidade e força segurou a mão de Josué.
- O que você quer???
Com um grito terrível, Roberta virou-se para Josué, para revelar-lhe sua face estranhamente pintada. Todo o rosto de Roberta estava pintado de preto, a não ser as pálpebras que estavam pintadas de vermelho, bem como sua boca. Ela tinha os olhos fechados, o que fazia com que ficasse parecida com a primeira pintura que tinha feito, da sombra com olhos e boca vermelhos.
Josué assustou-se e saltou para trás. Roberta levantou-se e foi em direção a ele. O que mais espantava Josué, além da estranha pintura no rosto da mulher, era o fato de ela manter os olhos fechados o tempo todo. Roberta continuou caminhando em sua direção, claramente tinha intenção de fazê-lo algum mal. Josué por sua vez, não sabia como agir, pois aquela era sua esposa, apenas parou de caminhar para trás e aguardou que ela se aproximasse. Roberta com um grito saltou sobre Josué, mas no mesmo instante, ela misteriosamente desmaiou, caindo nos braços do marido, que a segurou firmemente.
- Roberta!!!
Josué segurou a esposa desfalecida, sem saber o que estava acontecendo. O grito acordou os filhos, os três desceram.
- O que aconteceu?
Davi adiantou-se, vendo a cara pintada da mãe.
- Nada, sua mãe só tropeçou e sujou-se de tinta! Estou levando ela para cima, e vocês devem ir também.
- E por que ela está desmaiada? - Questionou Júnior.
- Não foi nada, ela só passou mal. Vão dormir por favor.
Sofia sabia que o pai estava mentindo, sabia que algo muito errado acontecera. Ela, sendo maior, ajudou o pai a carregar a mãe para o andar de cima, enquanto os garotos voltaram a dormir, aceitando a explicação do pai.
- Não é nada disso que aconteceu, não é pai...?
- Não minha filha... Eu não sei o que houve...
Josué estava entristecido, sentindo-se impotente. Levaram Roberta para o quarto e limparam-na, e ela não acordou em nenhum momento. Decidiram que ela deveria descansar, bem como ambos. Josué colocou-a na cama e deitou-se ao seu lado, mas não conseguiu dormir durante toda a noite.
No dia seguinte, Roberta acordou e não se lembrava de nada do que tinha acontecido. Josué não contou nada, para não alarmá-la.
- Josué, você já está atrasado para o trabalho.
- Tudo bem querida, vou tirar o dia de folga hoje.
- Que bom! Vou acordar as crianças.
Josué levantou, e como todas as manhãs, dirigiu-se ao banheiro para lavar o rosto e escovar os dentes. Roberta parecia bem, mas ele seria rápido, não queria sair do lado da esposa neste dia. Quando estava terminando de vestir suas roupas, sua tranquilidade foi interrompida ao ouvir um grito de Sofia. Josué correu pelos corredores e de forma abrupta adentrou o quarto da filha. Lá, viu a filha deitada no chão, com a barriga para baixo e as costas nua, ou melhor, suas costas estavam completamente pintadas. O desenho não estava muito bom, mas via se claramente dois personagens, olhando para cima com atitude de súplica, e tal reação era devido as chamas que queimavam abaixo dos personagens. Não bastasse a macabra cena pintada, ainda estava pintada nas costas da filha.
- O que houve Sofia???
- A mamãe... a mamãe... não é ela!
Sofia estava chorando e desesperada. Enquanto Sofia tentava explicar o que aconteceu, ouviu gritos de dor vindos de Júnior e Davi. Josué imediatamente correu até o quarto deles, e lá viu a última coisa que poderia imaginar.
- Pai!!! Pai!!!
Os garotos gritavam em desespero. Ambos estavam cobertos em chamas. Josué viu uma garrafa de álcool no chão, vazia. Os garotos em seu desespero, corriam de um lado para outro, e na ânsia de amenizar de alguma forma a chama que queimava-lhes a carne, correram em direção a janela. Mas tanta era a velocidade de ambos, que a janela quebrou-se, e como se fossem 2 cometas, ambos mergulharam pela janela abaixo, queimando. Chegaram a chocar-se com uma árvore, chamuscando-lhe algumas folhas, mas logo encontraram o chão. Melhor se tivessem caído de muitos andares e suas vidas tivessem findado naquele momento, pois caíram, mas ainda não mortos, agonizavam com o fogo abraçando-lhes. Ainda moviam-se, com as últimas forças que lhes restavam, debatiam-se inutilmente, até finalmente cessarem seu movimento.
Josue entrara em choque, acabara de ver os filhos queimarem vivos e caírem pela janela. Olhando pela janela, presenciou os últimos movimentos dos garotos. Em desespero, pensou em pular pela janela, na inútil tentativa de fazer algo pelos filhos. Entretanto, com o mínimo de sobriedade que ainda lhe restava, virou-se para descer e ajudar os filhos. Ao virar-se, Roberta estava na porta, seu rosto havia mudado novamente, era mal, indescritivelmente mal com um sorriso irônico. Os olhos estavam fundos, sua bela mulher de outrora tornara-se horrível. Não bastando isso, Roberta havia pego Sofia, e segurava-a pelos cabelos, a pobre garota chorava incessantemente. Num movimento muito rápido, Roberta dirigiu-se para a escada, arrastando Sofia pelos cabelos. Josué correu atrás delas, mas Roberta andava com muita velocidade e agilidade, muito além de suas capacidades normais. Josué ia atrás, e o que mais o desesperava eram os gritos de Sofia, que estava se ferindo cada vez mais.
Já do lado de fora da casa, Roberta continuou a arrastar Sofia mata adentro. Josué viu os outros dois filhos. Quis ajudá-los, no entanto tinha que fazer uma escolha, ou ajudava os dois carbonizados, que provavelmente já estariam mortos, ou ia atrás de Sofia. Dos males o menor, decidiu ir atrás de Sofia.
Roberta andava com destreza e agilidade incríveis, Josué com dificuldade conseguia acompanhar. Sofia já estava desacordada após tantos ferimentos sofridos com seu corpo sendo arrastado pelo chão. Roberta incansavelmente continuava a adentrar a mata, que tornara-se cada vez mais densa, entretanto, ela seguia uma trilha no qual ninguém pisava ali por muito tempo. Seria impossível perceber a trilha camuflada pelo mato, mas Roberta parecia conhecer o caminho muito bem e seguia adiante. Josué continuou a perseguir Roberta incansavelmente, e parecia de fato que ela tinha a intenção de conduzi-lo para algum lugar no meio da mata. Embora Josué corresse muito, nunca conseguia aproximar-se de Roberta.
Após duas horas de correria de perseguição, finalmente Roberta parou. Ela conduziu Josué até uma pequena clareira, neste local, para espanto de Josué, possuía uma capelinha e em volta muitas cruzes, como um cemitério, era exatamente como Roberta havia pintado naquela tela. Roberta então parou, não adentrou a área onde haviam as cruzes. Sem nem um pingo de delicadeza jogou Sofia de lado que caiu de bruços, revelando os calcanhares que ficaram em carne viva, após ser esfolado por todo esse tempo. Roberta virou-se para Josué, ainda com a terrível expressão. Apontou para a capelinha e começou a gritar e dizer coisas que Josué não compreendia, aparentava estar muito transtornada. Josué por sua vez estava com medo, sabia que aquilo não era uma simples depressão, mas tinha algo errado com sua esposa. Ela queria alguma coisa, mas era impossível distinguir qualquer informação saindo de sua boca. A falta de compreensão de Josué irritou-a ainda mais, ela virou-se em direção a Sofia que continuava desacordada, agarrou-a pelo pescoço com uma das mãos, e sem nenhum esforço, ergueu-a, até seus pés não tocarem mais o chão. O espantoso era o fato de Roberta fazer isso como se Sofia fosse uma leve boneca. Josué desesperou-se ao ver a filha pendurada pelo pescoço, sendo mantida nesta posição pela própria esposa. Roberta mais uma vez começou a gritar e apontar para a capelinha. Para não irritá-la ainda mais, Josué dirigiu-se a capelinha, passando pelas cruzes, sentiu a terra fofa abaixo de seus pés, imaginou que provavelmente ali era o descanso eterno de muitas pessoas. Chegando na capelinha, apenas um portão de ferro guardava o local, não estava trancado. Josué abriu o pequeno portão e Roberta começou a gritar novamente, mas desta vez ela disse algo compreensível:
- Me liberte...
- O que? - Josué queria entender direito.
- Me liberte!!!
“Me liberte? O que ela quer dizer?”, pensou Josué. Era claro que Roberta, ou a entidade que a dominava, o trouxe àquele lugar por causa desta capelinha. Ele entrou na pequena construção, as paredes estavam pretas de tanto tempo que permaneceram abandonadas. No chão, não havia crescido mato, mas continuava de terra batida. Na parede imediatamente oposta a entrada, havia diversas fotos antigas de pessoas, objetos, jóias penduradas em alguns locais. Logo a frente, uma mesa, com velas já queimadas, mais fotos e objetos diversos. No centro, havia uma pequena caixa de madeira, estava em bom estado de conservação, a tampa era arredondada como um baú. Josué abriu a caixa, e de dentro retirou um papel, onde havia algo escrito a mão. Escondido sob o papel havia uma grande quantidade de cinzas.
“Aqui jaz as cinzas daquela que vendeu-se. Vendeu-se para comungar com o diabo e tornou-se um diabo. Sacrificou pais, mãe, filhos, irmãos, amigos de nossa vila. Eis que a sentenciamos a morte, mas a morte ela não conhecerá, vagará errante por esta terra, pois manteremos suas cinzas neste local e sem enterrar suas cinzas ela não descansará, não poderá se afastar de suas cinzas e nem aproximar-se delas e esta é sua sentença. Para proteger as cinzas, eis que enterramos suas vítimas envolta desse local, e eles irão proteger a urna. Ela nunca se atreverá a entrar nesta área ou suas vítimas irão vingar-se e levá-la para algum lugar desconhecido do homem, para sofrer ainda mais. E assim fizemos.
Padre Mariano Fernão – Outubro, 1807”
Josué compreendeu então o que estava acontecendo. Aquela mulher era algum tipo de bruxa e cometeu muitos assassinatos na região. Devido ao artifício utilizado pelo padre, a mulher ficou presa a este mundo. Aproveitando-se da condição mentalmente e espiritualmente frágil da mulher, conseguiu de algum modo dominá-la. Josué pensou no que fazer, e a solução era trazer a bruxa para a área das cruzes, para que suas vítimas finalmente pudessem levá-la desse mundo. Ele pegou a pequena urna e levou-a para fora.
- É isto que você quer? - Josué levantou a urna mostrando para a bruxa.
A bruxa por sua vez ficou ainda mais inquieta, jogou Sofia no chão, e sem entrar na área das cruzes, esticava os braços e continuava a gritar.
- Venha pegar isto! - Josué tentava atraí-la.
Ainda mais irritada, a bruxa começou a puxar os cabelos, e arrancou algumas mexas. Josué vendo o desespero daquele ser, resolveu espalhar um pouco das cinzas no local. Retirou um pequeno punhado da caixa e espalhou sobre as cruzes. No local onde as cinzas se depositaram, uma pequena fumaça branca emanou da terra.
- Veja, eles vão te levar! Venha pegar ou vou despejar tudo isso aqui, e você nunca mais vai conseguir se libertar!
Josué continuava a irritar a bruxa, que andava de um lado para outro, inquieta, gritando e se auto-flagelando. Ainda sem conseguir fazer com que ela entrasse na área, decidiu chegar mais perto. Ao aproximar-se, viu os olhos extremamente arregalados olhando fixamente a caixa e esticando os braços na tentativa de alcançar seus resto. Ela parecia em transe, como uma drogada em estado de abstinência, onde o único pensamento é obter o que lhe satisfaz. Josué aproximou-se ainda mais, e quando estava bem próximo, permitiu que ela alcançasse a urna, e neste momento, Josué agarrou-lhe o braço, e com toda a força que tinha puxou a mulher para dentro da área das cruzes. Josué caiu para trás, machucou-se, bateu as costas em uma das cruzes, a mulher caiu sobre ele. Na queda a urna caiu e espalhou as cinzas. Vendo esta cena, a bruxa ficou furiosa, e começou a espancar Josué, batendo-lhe no rosto, enforcando-o e cortando-lhe a pele com as unhas. Josué estava quase desacordado, até que algo violentamente retirou a mulher de cima dele. Ele então observou, as vitimas obtendo sua vingança. A terra fofa, parecia ter ganhado tentáculos, que estavam abraçando a mulher, e ela debatia-se com violência. Josué viu então uma sombra surgir sobre o corpo da mulher, era como aquela sombra que Roberta havia pintado também. Abaixo da sombra, viu a forma de várias pessoas, sim, eram as vítimas da bruxa, agora estavam segurando-a e levando-a para baixo. E a sombra foi entrando na terra, até desaparecer totalmente. Sua esposa, estava desacordada, com a terra dragando-a. Josué tentou impedir, mas foi inútil, a terra haveria de devorar o corpo de sua esposa também... E em pouco minutos, ele assistiu sua mulher descer terra abaixo. E ali foi sua morada final, ela tornara-se mais uma das vítimas da bruxa.
Josué recuperou-se como pode de suas feridas. Foi até Sofia, que estava muito ferida, mas viva. Apesar de sua condição, carregou a filha até em casa, e mais uma vez teve que ver os filhos carbonizados na frente de casa. Tudo pareceu um grande pesadelo, mas não era. Seus filhos menores se foram, e também sua esposa. Restou-lhe apenas a filha. Mas não foram embora do local, ali permaneceram, junto com Roberta, e os garotos, foram enterrados em volta da capelinha da mesma forma. A bruxa havia deixado seu legado, cada cruz em volta daquela capelinha era seu legado, de morte. Mas esse foi o fim, agora ela estaria em algum lugar do mundo invisível, sendo castigada por aqueles a quem vitimou, e assim continuará, até o fim dos tempos.