Malaquias (6)
Revoluteando em espiriformes padrões na cabeça vermelha e branca de Malaquias, o Preso número 2520, estava a dúvida premente quanto ao tempo que levava a um gajo qualquer, embora não fosse de um gajo qualquer que ele pensava naquele momento, pensava no Palhaço, portanto, quanto tempo levaria o Palhaço a curar a caganeira da qual padecia naquele preciso momento em que Malaquias, de fato-macaco alaranjado, se sentava na tarimba da sua cela à sombra das barras verticais que a lâmpada florescente projectava sobre a sua obesa pessoa, quanto tempo, voltando ao assunto em mãos, até por causa da maneira espiralada com que o assunto ia e vinha na mente de Malaquias, quanto tempo é que demoraria ao Palhaço recuperar da intoxicação alimentar que, ao telefone, o próprio lhe admitira estar a sofrer.
Malaquias, que não era por feitio avesso a um prato cheio, fosse de que fosse desde que fosse comida que se comesse, e ele comia de tudo, na sua duradoura experiência com intoxicações alimentares, havendo ao pontapé quem lhes chamasse “intóchicações”, pelos vistos podiam-se chamar das duas maneiras, sendo que uma delas era muito parva e a outra não, quanto à sua duração o mais parecido com uma conclusão a que o veterano da polícia, agora caído em desgraça, conseguiu tristemente chegar foi a de que variava. Dependia sempre do culpado, neste caso, a comida comida, quer fosse um doce de ovos por infelicidade menos fresco, quer fosse um cocktail de camarão inadequadamente conservado. Malaquias sucumbira vítima de ambos, e em ambas as ocasiões os efeitos diarreicos e a convalescença assinalada por suores e vómitos em seco favoreceram diferentes durações e díspares intensidades. Todavia não seria o camarão nem a salmonela que presentemente desinquietavam o sistema digestivo do pior assassino em série na história daquela cidade solarenga. Era, sim, algo que Malaquias, o Comilão, nunca havia levado à boca: apetitosas, para alguns, crianças.
Antevendo a possibilidade dos níveis tóchicos de tal pitéu serem bastante elevados derivado da dieta de alto teor liberal que os pais tragicamente desinvestidos da saúde presente e futura dos seus descendentes permitiam aos mesmos praticarem, Malaquias esperava, e era apenas isso que ele, uma vez dentro, como estava, podia fazer, esperava que o assomo de caganeira fosse tão mau e tão arrastado que lhe desse tempo, a ele, Malaquias, de encontrar uma forma de sair dali para conseguir proteger os seus sobrinhos, um parzinho de gémeos, um com e outro sem, da promessa de virem a breve trecho alimentar os apetites patológicos do Palhaço. Promessa essa que lhe fora feita durante o telefonema que o infanticida antropófago de cara pintada e florzinha esguichadora na lapela, fazendo-se passar por seu advogado, e entre um e outro venha o diabo e atenda o telefone, lhe fizera, com a ressalva da visita aos sobrinhos não poder ser para já visto estar naquele instante confinado ao tampo da sanita e à arte de pintar à pistola.
De qualquer forma, o cumprimento de dita promessa, como a voz apalhaçada, mordendo através de quilómetros de fio de telefone e estática, deixou perfeitamente implícito, ficaria em suspenso até ao momento em que a presente debilidade intestinal fosse reprimida, o que, convenhamos, aconteceria muito antes de alguém abrir a Malaquias a porta daquela cela e lhe dissesse “Malaquias, meu amigo, faça favor de sair”. Ou não tivesse Malaquias, o Otário, morto um inocente na casa da cunhada, a mesma senhora que, agora pesadamente medicada, se recusava a atender-lhe o telefone, não podendo, portanto, ser adequadamente informada sobre o perigo que os seus filhos corriam.
Esgotada essa via de esclarecimento, Malaquias, o Incompreendido, tentara por todos os meios chegar à fala com os colegas que dele troçavam e não só decorrente daquele fiasco, ou com o Chefe, o tal do thesaurus bem grosso, o mesmo que lhe garantiu fazer questão de perder a chave da porta do buraco para onde Malaquias fosse atirado por ter morto um tipo a todos os níveis porreiro, boa gente, chamado Cats Bamber, um nome assim só podia ser de pessoa que dizia “intóchicação” sempre que a palavra viesse à baila numa conversa, fosse por que motivo fosse mas que, pronto, agora já não viria, decerto, porque estava morto, e por sua causa, que o havia morto por engano e que, por causa disso, Malaquias partilhava então uma cela com um tipo que fazia chichi sentado e que, tirando isso, não se dava a conhecer melhor.
Não que Malaquias quisesse conhecê-lo melhor, de resto não pretendia conhecê-lo de todo, não planeava demorar-se tanto tempo assim que houvesse oportunidade, até porque, macacos o mordessem nas suas partes fofas que, inclinando-se a sua figura mais para a rotundidade, abundavam, alguma vez iria deixar um Palhaço qualquer comer os seus sobrinhos, que eram filhos da irmã sua falecida, mulher boa que Deus o seu espírito ou alma ou lá o que fosse tivesse lá onde a tinha, nunca lhe perdoaria, nem ele a si mesmo, Malaquias, o Titio.