Malaquias (5)
No rosto ruborizado de Malaquias pontuavam redondas gotas translúcidas que podiam ser derivadas da sua afamada caudalosa transpiração, sintomática de ter passado a última hora na “sauna”, assim os colegas chamavam à sala de interrogatório, mas não era, tal como não eram esses pingos molhados provenientes de alguma bátega de água de inspiração torrencial amazónica, que o pulmão do mundo, apesar de não ser de todo de desprezar como sítio para se estar naquele momento em vez da esquadra de polícia, distava demasiado do buraco que Malaquias, o Grande, cavara para a sua rechonchuda pessoa quando matara a coice de mula o simpático vizinho da cunhada, um tipo porreiro de seu nome Cats Bamber, um nome bem idiota, diga-se de passagem, para se gravar numa lápide, paz à sua alma. Não, aquelas gotículas, mesmo não oriundas dalgum aguaceiro tropical, choviam impiedosamente sobre o semblante sorumbático de Malaquias provenientes da boca cuspideira do Chefe que não percebia, por muito que lhe tentassem explicar, pelo que o melhor era que nem tentassem, não valia a pena, que ele não percebia como é que um homem, um polícia, dos melhores que aquela esquadra conhecera e que o Chefe, pessoalmente, assim como ele nunca tivera sob o seu comando, um tão bom profissional do detectivismo, se é que tal palavra existia, com trinta anos de carreira, e trocos, viúvo, ainda por cima, com idade para ter juízo, fazia uma coisa daquelas, assim, sem mais nem menos, não percebia.
O Chefe, homem com a brochura dos regulamentos impressa no seu ADN, junto com a disposição genética para desenvolver tumores malignos na próstata, que ele combatia ferozmente até à remissão incondicional, três nódulos pretos potencialmente fatais já tinham levado na pá e actualmente esgrimia-se de teimosias com uma quarta, completamente careca da frequente quimioterapia, e de muito mau humor, atirou à cara de Malaquias, o Bronco, além dos seus perdigotos encorpados, um molho de fotografias que ilustravam o estado em que ficara o pobre palhaço, voluntário benfazejo, já para não falar no tapete de boas-vindas da cunhada do néscio que tinha à sua frente, sangue por todo o lado, quase que respingava das fotos, só de pensar nas criancinhas que tinham assistido àquela carnificina, coitadinhas, e na choruda indemnização, cheque com muitos zeros que a comunidade teria de passar à família enlutada da vítima, o que lhe apetecia fazer era enfiar Malaquias numa cela suficientemente larga para as suas mórbidas dimensões, e deitar fora a chave.
Esta promessa, bem como todas as ideias adjacentes ao vigoroso raspanete, que o Chefe não entrara na sauna pelo prazer de fazer perguntas, que para isso ele tinha gente, Malaquias suportou votado a um silêncio envergonhado, concordando com tudo o que o Chefe lhe dizia, duvidando mesmo que fosse capaz de o dizer melhor que o Chefe, de colocar as coisas em termos que rivalizassem com o calibre dos que o Chefe pusera de parte para a ocasião, o homem tinha o dom da palavra, se bem que os perdigotos que as acompanhavam seriam, de bom grado, dispensáveis, mas na vida todos tinham de aceitar o bom com o mau e o bom era que Malaquias, o Grande, tivera uma folha de serviço limpa durante três décadas, e trocos, como polícia na cidade grande, sendo o mau o ter deitado tudo a perder, tudo por causa dum palpite calamitoso, duma obstinação diletante, duma voluntariosidade, palavras dos Chefe, estulta, duma imponderação, assim mesmo, desditosa, do maior menoscabo pelos preceitos do bom policiamento, enfim, tornava-se evidente que além das fotografias do cadáver decapitado de Cats Bamber, palhaço nas horas vagas e vizinho obsequioso, o Chefe arremessava à cara de Malaquias o glossário dos adjectivos depreciativos.
Ainda enlevado no seu palanfrório colérico, o Chefe levantou-se e saiu intempestivamente da sala de interrogatório batendo com a porta e levando consigo as fotografias macabras, os perdigotos e o índice de sinónimos, sem dúvida para o seu gabinete, que não distava assim tanto da sauna que Malaquias, o Repreendido, não o conseguisse ouvir dali de onde permanecia sentado. Durante quinze minutos, um quarto de hora, vá lá, sentindo a bombazina que caracterizava o seu estilo pessoal de vestir humedecer-se à volta do seu corpo adiposo, teve tempo para dissecar o percurso que o levara até ali e os erros que eventualmente teria cometido, não encontrando nenhum de grande monta. O mal fora a cunhada não ter conseguido contratar para a festinha no nono aniversário dos gémeos o palhaço certo, o tal que Malaquias, o Grande Detective, sabia ser o que seguia um regime escrupuloso de criancinhas, cento e sessenta e oito já tinham sido comidas por esse Palhaço, o tal que, estando o único homem que o havia topado algemado a uma mesa ali na sauna, poderia prosseguir na sua dieta assassina sem problemas de espécie alguma.
Absorto neste raciocínio, que o mortificava, que o enxovalhava, que o fazia sentir ter falhado na sua função de servir e proteger os inocentes, Malaquias não deu pela entrada de um agente uniformizado, um maçarico qualquer, que se chegou perto e lhe disse “ó gordo”, assim mesmo, “ó gordo, tens um telefonema do teu advogado”, e o conduziu pelo braço, como o pior dos criminosos, ou pior, como um inválido, até ao telefone público instalado na parede de um dos corredores onde se afixavam cartazes que alertavam para os perigos do carteirismo aleatório, do carjacking selectivo e da pederastia acidental. Quando Malaquias levou o auscultador ao seu ouvido, esconso que estava algures por trás das melenas ruivas, e uma voz dentuça do outro lado lhe confidenciou “eu é que sou o Palhaço que andas à procura, bófia” e lhe garantiu que “assim que me passar esta caganeira vou fazer uma visitinha aos teus sobrinhos” enfatizando o detalhe de Malaquias estar dentro e “não há nada que possas fazer para me impedir”, “bófia”, “vou comer aqueles pirralhos”, “nham-nham”, a conversa só conhecendo o seu fim abrupto quando o telefone foi arrancado da parede, cacos dos azulejos agarrados, por Malaquias, o Burro, o Inútil, o Impotente, mais ainda assim, e sempre, o Grande.