Malaquias (4)

Malaquias, o Grande, a quem as algemas mal serviam, não serviam realmente, tinha pulsos tão grossos quanto uma coisa qualquer que fosse grossa demais para encaixar nas algemas que a polícia usava, “pulseiras”, diziam os agentes da autoridade em assomos de jocosidade aos criminosos que “empulseiravam”, e desta vez fora a vez do colega, Malaquias, o Obeso, detective graduado, excepto que nos pulsos dele não serviam, realmente. Corpanço adiposo tolhido na sua costumada farpela domingueira, por acaso era domingo e calhava bem, mas que durante o resto da semana destoava, os óculos escuros virados para ele sobre o tampo da mesa reflectindo a sua barba de labaredas do ruivo mais ruivo, e a luz quente e amarela das lâmpadas da sala de interrogatório, ou “a sauna”, que era como lhe chamavam os agentes da autoridade em assomos de eufemismo aos criminosos que lá iam parar, sem dúvidas que Malaquias já estaria a suar debaixo daquela boinazinha ridícula.

Ainda não estava, mas não era caso para se perderem já todas as esperanças, ainda para mais era bastante anafadinho, e enquanto era observado através do espelho duplo pelos colegas que se estavam a divertir demasiado com aquela situação, Malaquias sublinhava mentalmente os trechos dignos de nota da última hora, logo a partir do momento em que decapitara o perigoso Palhaço com um único tiro da sua pistola pessoal, à qual ele carinhosamente chamava de “mula” mais por causa do coice que dava do que por causa duma outra coisa qualquer. Portanto, um palhaço sem cabeça caído de costas no corredor das escadas do prédio de apartamentos, um cepo a meio dos ombros de chumaços a derramar sangue no tapete de boas-vindas da cunhada como se alguma conduta se tivesse rompido por ali e, perante a qualidade macabra de tal visão, onze criancinhas aos berros e, em abono da verdade, traumatizadas para o resto da vida. O pior veio depois, porque era sempre quando o pior vinha. Depois.

Depois, quando a cunhada, em choque, mas ainda aos comandos da sua personalidade acusatória, nisso era completamente diferente da irmã, a falecida de Malaquias, uma alminha gentil como só visto, a cunhada faria bem em ser um pouco mais como a querida mana, mas não era, nem pouco mais ou menos e, quando se irritava, a voz fazia lembrar a duma galinha, se era que as galinhas tinham voz, mas se tivessem, seria numa voz parecida que a mulher perguntou a Malaquias, o cunhado, o que é que ele tinha feito, o que é que ele tinha feito, que tinha morto um homem à frente dos filhos, gémeos iguaizinhos, excepto que um tinha pilinha e o outro não, e dos coleguinhas deles, o que é que Malaquias tinha feito, oh Deus dela do céu, porque era que aquelas coisas só aconteciam a ela, porquê.

Malaquias, sendo bem menos fatalista quanto aos revezes da fortuna, explicou, enquanto aninhava o canhão de volta no sovaco que depressa ficou quentinho, aquele ali caído a sangrar da gola do seu fato de palhaço ser, nada mais, nada menos, que o Palhaço, o assassino em série de crianças que a polícia fora bem mais eficaz em manter longe dos noticiários do que em apanhá-lo, queria dizer, até ao momento em que Malaquias, esperto que nem um ovo, se lembrara de o atrair à festinha de aniversário dos seus sobrinhos para, no momento ideal, lhe meter um balázio nos cornos, caso mais que encerrado, para quê tanta gritaria, para quê.

A cunhada lá tinhas as suas razões, uma das que talvez, e isso ela até admitia, nem fosse a mais premente de todas passava pelo facto do tio dos seus filhos ter usado os sobrinhos, que era como quem dizia, os seus filhos, mas em nome de não se repetir, desse modo fraseou a acusação de que Malaquias se serviu dos gémeos para atrair um assassino em série que, e aqui vinha a parte em que a voz da cunhada mais se assemelhava à das galinhas, desprezava o bolo de anos para comer o aniversariante, e convidados, e tudo, como se atrevera a pôr em risco a vida dos seus sobrinhos, filhos dela, que era irmã da sua falecida, e a coisa continuou neste tom enquanto Malaquias, paciente, esperava a sua vez de falar. Que nunca chegou, mas tivesse chegado, lhe teria dito que o Palhaço em questão era dono de um apetite voraz e nos últimos sete meses se tinha entregue a um regime de carne tenra de criancinhas, o número de vítimas ia em cento e sessenta e oito, assim mesmo, redondo, e que graças a ele, Malaquias, o banquete chegava agora ao fim, balázio nas trombas, caso encerrado.

Ou não.

Não, porque, e aí vinha o pior, aquele palhaço não era o Palhaço. Como assim, não era o Palhaço, Malaquias não percebia, não ligara a cunhada ao número que ele lhe dera, o mesmo que ele copiara das Páginas Amarelas, o que é que estás a dizer, mulher, que este palhaço é um outro palhaço, um palhaço qualquer, não pode ser. Mas era, disse a cunhada, galinha, putos a berrar ante o espectáculo grotesco dum palhaço sem cabeça a derramar sangue no tapete, boas vindas ensopadas em escarlate e cinzento, tom este dos miolos, estão prontos para se divertirem, meninos e meninas, aquele não era o palhaço que Malaquias tinha aconselhado à cunhada porque esse, aquando do telefonema que lhe fizera, e que fora atendido atempadamente, lhe tinha dito estar adoentado, desconfiava que tivesse sido de alguma coisa que tivesse comido e por isso e com muito pena sua, não poderia ir à festinha dos gémeos, um com pilinha, outro sem, lamentava muito, talvez para o ano.

Se o palhaço não era o Palhaço, o tal do “P" maiúsculo procurado pela polícia, então quem, por amor aos santinhos, era aquele palhaço sem cabeça, não que não a tivesse à chegada, porque tivera, Malaquias, o Grande idiota, é que lha havia arrancado de cima dos ombros com um tiro da mula pensando que era o outro. Este, que não era nada o outro, chamava-se Cats Bamber, viva no décimo-quarto andar e revelara-se bom vizinho pois numa viagem que os dois partilharam no elevador ao ver a vizinha lamentar-se da sua eterna falta de sorte lhe perguntou o que a levava a dizer tal coisa e ela respondeu que os gémeos iam fazer nove anos no dia seguinte e que o palhaço que pensara em contratar para animar a festinha não podia vir por estar a braços com uma intoxicação alimentar e ela agora não sabia como descalçar aquela enorme bota. Se o problema era esse, disse o vizinho, trate-me por Cats, é como todos me chamam, ele ainda tinha a sua farpela de palhaço do último Halloween e toda a gente que o conhecia lhe reconhecia talento para lidar com crianças, ou não tivesse sido ele pai de cinco rapazes e uma rapariga e agora avô babado de sete netinhos, alguns com, outros sem, todos fãs das suas palhaçadas.

Depois disso, até à chegada da polícia foi um pulo, Malaquias entregou a arma e o crachá e subiu para a parte de trás duma viatura e esta, pouco acostumada a tais carregos, acelerou como pode e fez as curvas todas que tinha a fazer a caminho da esquadra, a mesma onde Malaquias, o Equivocado, trabalhava todos os dias ia para trinta anos, a uma unha negra da reforma, ele que bem conhecia a sauna, ele que finalmente começava a suar debaixo da boina que a falecida lhe oferecera, ainda bem que estava morta para não ver cair em desgraça o seu ursinho fofinho, para si o caso estava mais que encerrado.

Nuno Lopes
Enviado por Nuno Lopes em 16/03/2010
Código do texto: T2142030
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