O VENDEDOR DE SONHOS

O cheiro inconfundível de pipoca estava no ar. O som cativante e tão semelhante ao de uma caixinha de música completava a imagem formada na mente da pequena Clara. O convite era irresistível, seus olhos brilhavam! Conduzida pela pressa, ela venceu rapidamente os degraus da escadaria, atravessou o corredor e a sala, ganhando as ruas. Nas mãos levava as moedas resgatadas com dificuldades das estranhas de porcelana de um porco rosado.

Inúmeras crianças cercavam a carroça. Balões multicoloridos, manipulados de forma a lembrarem os contornos de animais, dançavam no céu, enfeitando os limites da caixa de metal. Cercados pelas folhas de vidro e aquecidos pelo calor do óleo, os grãos de milhos saltavam e transformavam-se em anseios infantis, desejos caramelados, como os algodões que envolviam os espetos fincados na esteira de palha, enrolada como um cone.

O vendedor de sonhos, uma figura de vestes largas e coloridas, estampava um sorriso no rosto pintado, enquanto girava uma estridente matraca. Os raios do sol matinal incidiam sobre a superfície metalizada do instrumento, produzindo um reflexo brilhante e intermitente.

A alegria seguiu em cortejo ao redor do quarteirão. Logo, os pequenos desfilavam sua satisfação pelos gramados da praça. Mas as gargalhadas e gracejos foram interrompidos pela inoportuna pergunta efetuada por uma mulher de vestido estampado:

- Crianças, vocês viram a Clara?

- Tia – chamou um menino rechonchudo, cuspindo farelos enquanto falava – ela ficou com o palhaço. Ela vai ganhar algo especial, ele prometeu.

- Eles estão lá na outra esquina, tia – apontava uma garotinha sardenta, mordiscando uma barra de alcaçuz.

A jovem largou a sacola que trazia nas mãos e correu. Um grito ecoou pela vizinhança. As pessoas, que logo seguiriam em direção à origem do som, compartilhariam do mesmo choque experimentado pela mulher desfalecida. Uma imensa poça rubra se mesclava ao barro do chão e à pipoca caída, uma macabra evidência ao redor da carroça abandonada.

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Numa outra parte da cidade, Simone acabava a rotineira tarefa de escovar os cabelos da filha. A menina mal conseguia esconder a ansiedade. O espetáculo mambembe faria sua estréia naquela noite.

- Você não acha que é uma temeridade ficar passeando por aí com essa onda de violência?

A pergunta partia de Amanda, namorada do irmão de Simone.

- Não, não acho. Não deixo minha filha sozinha, nunca. Comigo ela não corre perigo. Além do mais, não podemos entrar nessa paranóia, senão nos tornaremos prisioneiras de nós mesmas.

Amanda não se surpreendeu com a decisão da cunhada. O pouco tempo de convivência entre ambas mostrara-se mais do que suficiente para que a personalidade forte da mulher, a qual beirava a arrogância, saltasse cristalina aos olhos. Entretanto, ainda assim, insistiu para que a menina ficasse em casa. O pedido fora plenamente rechaçado, não só pela mãe, como, principalmente, pela menina.

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Fogos de artifício riscavam o céu estrelado. Um quarto crescente perfeito, como um desenho infantil, completava a pintura na abóbada. Palmas ditavam o ritmo dos artistas na arena montada na rua. Simone voltava no tempo, sentia-se numa época mais simples, onde tudo era mais fácil. Durante o intervalo da apresentação, onde toda a trupe se recolhia nas tendas armadas, uma fila se formou rapidamente ao lado das plataformas de madeira que serviam de assento para o público. Um palhaço fazia piruetas e distribuía balas para a criançada.

Simone permitiu que a filha participasse da algazarra, obviamente mantendo-a sob seus olhos vigilantes. A pequena estava encantada com a habilidade demonstrada pelo homem de roupas coloridas. Como mágica, flores surgiam das mangas, confetes voavam pelos ares, esferas explodiam oferecendo um aroma perfumado.

O espetáculo reiniciou com uma malabarista de pé sobre a cela de um cavalo. Por um instante Simone desviou o olhar para a jovem artista, e quanto retornou para a lateral das arquibancadas encontrou o vazio. Sua filha não estava mais lá. Movida pela aflição, ela abriu caminho por entre a multidão, buscando em casa rosto infantil os contornos familiares do seu tesouro.

Bolas de goma de mascar, gargalhadas, pipoca voando, mas nada da menina. Rapidamente, ela ganhou as dependências do acampamento circense. Avistou um senhor de barba espessa, o qual parecia organizar o vai-e-vem dos artistas. Ela o agarrou bruscamente pelo braço, causando tanto espanto quanto indignação ao homem.

- Mas, o que é isso, minha senhora?

- O palhaço! O palhaço! Cadê o palhaço?

- Não estou entendendo, senhora...

- O palhaço que estava lá – apontava para o espaço entre as pranchas de madeira – ele levou minha filha. Ele levou minha filha!

- Senhora – disse da melhor maneira possível – nós não temos palhaços em nossa equipe.

O mundo pareceu desabar sobre a cabeça de Simone. Como não havia palhaço? Ela vira o sujeito com as crianças.

- Escute – continuou o velho, receoso com as aflitas lágrimas da mulher – se a senhora viu um palhaço aqui, pode ter toda a certeza de se tratar de um intruso em nossa trupe. Mas, não se preocupe. Vamos achar sua filha.

Ele fez sinal para dois homens corpulentos que os observavam de perto. Os homens seguiram cada qual para um lado, ambos portando pesadas ripas de madeira nas mãos. O velho barbudo também correu, assim como Simone. Ela sabia que o tempo era um inimigo cruel, e essa certeza trazia dor ao seu coração. Gritos, ainda que camuflados pelo som estridente e animado da fanfarra, ela teve a convicção de ter ouvido os indícios evidentes de medo, sofrimento e dor.

- Fique aqui – disse o velho para Simone, apertando fortemente o cabo de enxada, que lhe servia de arma.

As ruas vazias e escuras da cidade traziam uma aura pesada e sombria à busca.

Cautelosamente, ele entrou no corredor de tijolos expostos, de onde provinham os gritos. Porém, sua precaução de nada adiantou. Com um baque seco, os fios grisalhos de sua barba foram lavados em vermelho. A ponta de um afiado bastão transpassou-lhe o pescoço, causando uma morte instantânea.

A outra ponta do cilindro metálico era empunhada pelas mãos enluvadas do palhaço, o mesmo maldito que Simone vira instantes antes. Largados no chão, estavam os corpos dos funcionários do velho.

A maquiagem estampada no rosto do indivíduo escorria fartamente, os tons se mesclavam resultando numa aparência repugnante e aterradora. O palhaço gargalhava enquanto caminhava em direção à mulher. Esta recuava e chorava. Ela não temia pela sua vida, a angústia em seu peito era pela menina.

Com um passo em falso, ela tropeçou nas próprias pernas e foi ao chão. Um sapato enorme pressionou seu tórax. Mas foi assim, deitada, que seus olhos úmidos puderam enxergar, nos fundos do beco, amarrada, a razão de sua vida. Uma injeção de ânimo a dominou, no instante exato em que o bastão afiado era erguido, com um endereço certo já traçado. Com ímpeto ela conseguiu rolar, desviando do golpe fatal, mas incapaz de escapar plenamente da investida do assassino.

A seta afiada atravessou-lhe uma omoplata, arrancando um grito de dor de sua garganta. O palhaço retirou o bastão e se preparava para avançar mais uma vez quando, surpreendentemente, parou.

Simone tentava se arrastar, numa luta desesperada para fugir do maldito, quando duvidou do que seus olhos lhe mostravam: Amanda, sua cunhada, ali, parada, com um revólver em punho, apontando para o palhaço. Vencida pela dor, e quem sabe pela reviravolta da situação, ela desfaleceu.

- Eu, eu não tive intenção. Por favor, entenda. Eu não faria mal a menina e... – a voz feminina do palhaço não teve tempo para terminar a frase. A vontade inabalável do chumbo tratou de silenciar, para sempre, suas palavras.

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Simone abriu os olhos e vislumbrou a imensidão branca do hospital. Seu irmão segurava-lhe a mão.

- Onde está ela? Onde está minha filha?

- Não se preocupe, Simone. A polícia vai achá-la...

- Como assim vai achá-la? Ela estava lá no beco, amarrada. O palhaço a colocou lá.

- Não, Simone. Ela não estava. Apenas os corpos de três integrantes da equipe circense. Amanda, preocupada, foi atrás de vocês no espetáculo. Uma criança disse que te viu procurando pela menina e pelo palhaço. Ela chegou a tempo de te salvar, mas nenhum sinal da menina.

- Não, não, não...

- Tenha fé. Com o assassino morto, as chances de encontrá-la a salvo são bem maiores e... Simone? Simone? Acorde! Enfermeira...

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- Uma vez eu fui professora. Ensinei tudo o que eu sabia para minhas alunas. Compartilhei todos os segredos dos nutrientes de uma boa refeição, dos ingredientes raros e rejuvenescedores da carne jovem. Às vezes, precisamos inserir um pouco de alegria, proporcionar alguns sorrisos, de modo a liberar as propriedades eficientes no sangue, faz parte do processo, sabe? O problema é que alguns pupilos não respeitam certos limites, teimam em desejar o que não lhes pertence, quando isso ocorre, não há outro jeito de silenciá-los. Você está feliz, querida?

- Estou sim, tia. Quando vamos ver a mamãe?

- Quem sabe, pequenina, quem sabe...

Amanda terminava de retocar alguns contornos vermelhos no rosto predominantemente branco. Uma peruca multicolorida aguardava na penteadeira...

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 15/03/2010
Código do texto: T2140391
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