Malaquias (3)
Uma bola de futebol sem a mínima semelhança com qualquer bola de futebol com a mínima qualidade, nem sequer um selo oficial de uma liga profissional qualquer, apenas isso, uma bola de futebol, colorida e de borracha saltitona, eis o presente de aniversário que Malaquias, o Grande gastador, trouxera para os gémeos. Um dos gémeos era rapariga, tão interessada em futebol, ou em bolas, como era interessada nos filósofos pré-socráticos, ou seja, mesmo nada, mas o irmão, que sendo rapaz bem podia ter-se mostrado um bocado mais agradado, também não se mostrou, mesmo nada, quando o tio, descomunal no seu fato domingueiro, boina quadriculada e óculos escuros órfãos duma moda passageira dalguma década há muito perdida, lhes passou o presente com um “tomem lá” como quem espera “oohs” e “aahs” de deleite e de surpresa de crianças de nove anos perante tão certeira prenda. “Uma bola” disse um gémeo, “obrigada” disse a outra, ambos deram um beijo na barba vermelha e branca e farfalhuda do tio Malaquias, e foram brincar, sem a bola, largada logo ali, com os outros miúdos. Malaquias não se deixou afectar pelo egoísmo das crianças, já que ele viera à festinha infantil por outros motivos, nenhum deles sendo o bolo de aniversário colocado no centro da mesa e que o embeiçava com o seu debruado a fios de ovos. Enquanto se partia e não se partia o bolo, Malaquias deu-lhe nos rissóis de camarão e esperou que o motivo que realmente o trouxera a casa dos cunhados batesse à porta de cara pintada.
O Palhaço. O assassino em série que atacava em festas de crianças e se anunciava nas Páginas Amarelas, teria na sua agenda a morada do apartamento num décimo-terceiro frente da zona da cidade que era pasto da classe média média, e a hora a que se devia apresentar, e Malaquias, o Grande, não via a hora da hora chegar. No sovaco esquerdo, escondia um pistolão graúdo, um verdadeiro canhão, perfeitamente não-regulamentar, algo que a Polícia não distribuía pelos seus agentes, mesmo os mais graduados, como era Malaquias, mas que alguns deles sabiam onde arranjar e que alguns deles, até, sabiam onde os modificar de forma que fossem na direcção do gosto pessoal ou da panca habilmente oculta dos psicólogos do serviço. Para deter o Palhaço, pensava Malaquias, a pistolinha de serviço seria duma plangente ineficácia, visto o suspeito não ser exactamente humano. Algo que causava ataques de riso e crises de sarcasmo entre os colegas, quando Malaquias, a quem eles chamavam O Obeso, punha na mesa essa hipótese, documentada pela sua experiência pessoal de o ter vistos altar dum décimo-sétimo andar e aterrar lá em baixo com uma cabriola, e com uma gargalhada ter seguido o seu caminho. Sem dizer que, e isto era uma tristeza ter de ser ele a lembrar aos colegas, tudo cambada de miolos gelatinosos desde a estagiária de academia que trazia os cafés aos chefes até esses mesmos chefes, quem comia crianças em ambiente festivo de bom grado trocara a sua Humanidade, assim mesmo, com H maiúsculo, por outra coisa qualquer mais habitual nos círculos rasteirinhos do Inferno, como costumava dizer a sua falecida.
Magote de miúdos, todos eles isco de Palhaço, nenhum deles o sabendo, trouxeram da varanda a sua algazarra de volta à sala de estar dos cunhados de Malaquias, interrompendo-lhe o chorrilho de pensamentos e a degustação impaciente dos últimos pratinhos de carnes frias, e abafando quase por completo o som da campainha a tocar lá ao longe, no hall de entrada. Foi a mãe dos gémeos que veio pedir silêncio à criançada, boa sorte com esse pedido, pensou Malaquias, no seu imperecível cepticismo em tudo o que dizia respeito a miúdos, revirando os olhos e limpando a boca a um guardanapo de papel de muito má qualidade, porque aí vinha o palhaço, e as crianças queriam ver o palhaço, não queriam? “Siiiiim” harmonizaram os anjinhos já em pré-coma diabético, acompanhado ao canhão não-regulamentar por Malaquias, o Grande, que já erguia o peso da pobre cadeira que o suportava desde que havia chegado, cento e sessenta e dois quilos de pressão atrás, “que venha o palhaço”.
Com Malaquias atrás da correnteza de putos, serpentearam pelos corredores do apartamento de classe média média cuja arquitectura labiríntica fora projectada para transmitir a uma família da classe média baixa, se tanto, aquela sensação de opressão urbanística, até ao hall de entrada e a porta de saída que a mãe dos gémeos já abria com uma expressão de brincadeira que mal se escorava no seu rosto extenuado e desejoso que aquela festa acabasse que era para pode ir tomar um longo banho e repisar na sua cabeça a descasca que ia aplicar no marido, esse cobarde fugidio que logo no dia do aniversário dos filhos calhou ter de fazer serão no escritório, olha que pena, sacana, abre mas é a porra da porta ao palhaço a ver se o gajo vale o dinheiro e o trabalho que custou a arranjá-lo. “Palhaço! Palhaço! Palhaço!” gritavam a crianças, Malaquias já desalojara o canhão do coldre de sovaco e apontava a bombarda à porta, ecoando também “Palhaço, Palhaço, Palhaço” com um compasso mais homicida.
A porta abriu-se e, como prometido, um palhaço estava do outro lado, vestido a preceito, laço vermelho e desproporcionado às bolinhas amarelas, fatiota verde com remendos de várias cores, na maioria azuis, cinto com uma fivela grande como um pequeno frisbee que era um smile amarelo de olhos e sorriso pretos, sapatos de borracha a imitar verniz completamente encarnados e dez a doze números acima do indispensável, e um sorriso torto numa cara pintada que Malaquias, o Grande lhe arrancou de cima dos ombros enchumaçados, cabeça e chapéu de coco peruca verde despenteada e tudo, com um tiro trovejante, ainda o sacana não tivera tempo de na voz universal dos palhaços dizer “olá, meninos e meninas, estão prontos para se divertirem?”
“Na mosca!” Congratulou-se Malaquias, de canhão ao alto, cano longo cuspindo fumo, caso encerrado.