Malaquias (2)

Malaquias, o Grande, sentava-se numa cadeira demasiado pequena para si, como o eram quase todas, num canto da sala de jantar dos cunhados, a uma distância que julgava segura do rancho de miudagem que marcava presença na festa de aniversários dos seus sobrinhos, um casalinho endiabrado de nove anos, cheios de genica, que naquele momento passavam pelo tio em corrida, liderando um rancho de outros miúdos no género, todos gritando gargalhadas que zuniam como brocas de dentista sádico nos tímpanos dele. Havendo coisa que Malaquias detestava mais do que criminosos, se é que havia, essa coisa seria sem dúvida crianças.

Graças a Deus que os seus nadadores afundavam-se como tijolos, por assim dizer, a caminho dos ovários, ou lá o que era, da falecida, e a paternidade, temida como um homem normal temia morrer de cancro, fora dessa forma evitada. Para grande pena de Malaquias, o Grande, fingidor quando tinha de ser, para não encarniçar ainda mais a desconsolação da falecida, que à altura ainda vivia, quanto ao facto de encarar a vida de casada como um completo fracasso reprodutivo. Para Malaquias, menos mal, já que a autoria de filhos, quem os tinha, tinha cadilhos, servia-lhe que nem uma camisa de forças. A falecida, à vista da falta de forças dos soldadinhos, aparentemente de chumbo, do marido, ainda o tentou convencer a adoptarem algum puto de orfanato, mas Malaquias soube opor-se sempre a essa ideia, com argumentos válidos, outros nem tanto, arrastando o hipotético processo até ao momento em que a falecida perdeu toda a esperança e depois foi só o ter sido atropelada pela carreira dezassete para que Malaquias se livrasse para sempre do fantasma da paternidade. O funeral fora um misto de profunda tristeza e alívio, mas o padre, talvez terceiro na lista das coisas que Malaquias não gostava mesmo nada, até fez um elogio fúnebre decente. A falecida merecia.

Nove anos faziam os sobrinhos, dos nove aniversários aquele era o segundo a que Malaquias se fazia comparecer. A cunhada, fazendo contas com isso, encomendara um bolo com o dobro do tamanho e também caprichara nas travessas dos acepipes que o viúvo da sua irmã estava a depredar desde que chegara. Comia um croquete atrás do outro, parecendo nervoso, muito apertado no seu fato completo, Malaquias vestia sempre fato completo, com gravata e lenço de magnata do século passado, e a boina na outra mão. Detritos do croquetes perdiam-se na robusta barba russa sem que ele desse por isso. Algumas crianças notavam, apontavam para ela de longe e riam-se. Malaquias estava habituado a ser gozado pela miudagem. A ver se eles se riam quando o Palhaço chegasse, pensou ele, engolindo um pastel de massa tenra quase sem o mastigar. A espera estava a deixá-lo ansioso. Quando estava ansioso, ele comia. Ele comia sempre, mas a ansiedade punha de lado a disciplina da mastigação.

Aproveitando que a cunhada passava ao alcance da sua mão, Malaquias disse “então, há palhaço ou não?” num tom grosso que ecoava mesmo naquela salinha acanhada e se sobrepunha ao histerismo própria duma festinha infantil. “Sim” disse a cunhada, já esgotada, os gémeos eram mão cheia, ainda bem que cresciam, pensou Malaquias, e depressa, porque se uma criança se demorasse muito naquela fase entre o ser parida e os doze anos, os pais, desgraçados, enlouqueceriam sem dúvida, não precisando de serem deitados à terra, eles mesmo se atirariam para a cova fundo, assim pensava Malaquias, o Grande, que por uma unha negra se esquivara de ser pai.

“Pareces nervoso, Malaquias” observou a senhora, de voz cansada, “não paras de te mexer nessa cadeira.” O medo dela era que o enorme cunhado lhe desse cabo daquela peça de mobiliário, pensou Malaquias, ao mesmo tempo que pensava numa resposta que desviasse as atenções da mulher do canhão que escondia no coldre debaixo do braço e das suas intenções homicidas em relação ao animador da festa, que não havia meio de chegar.

“Hmm, pois, estou de dieta” respondeu ele, “é nova….”

“Ah…” fez a cunhada, tão longe de estar convencida como de perceber o que fora a irmã, coitada, ver naquele gigante sorumbático a ponto de se ter casado com ele e, bem, ao menos não tinham tido filhos. Nisso, a irmã fora esperta. Nisso, e no se ter atirado para a frente do autocarro. “Pois, olha, não te faz mal nenhum perderes uns quilinhos.”

“Sim” concordou Malaquias, e o Palhaço que não havia meio de chegar.

Nuno Lopes
Enviado por Nuno Lopes em 15/03/2010
Código do texto: T2139452
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