Malaquias (1)

O Palhaço pulou do décimo-sétimo andar ainda sorrindo, ainda com o sangue da última criança que tinha comido nas pontas dos caninos extremamente longos e afiados, abandonando assim uma festinha de aniversário que havia corrido pelo pior, embora não para ele. Não, para o Palhaço a festa tinha sido um banquete. E nem sequer tocara no bolo em que sete velinhas se empinavam numas verticais vacilantes, derretendo pavio abaixo, sem oportunidade tempo para se cantar o parabéns a você ou para as soprar no fim desse clássico. Ficava para o ano, ah ah ah ah, ecoou por toda a cidade a gargalhada doida e em queda livre do pior assassino em série que se atravessara na carreira de Malaquias, o Grande.

Malaquias, o Obeso, como lhe chamavam os camaradas, filhos da mãe invejosos da sua folha de serviço que eram, Malaquias, o Panças, chegara tarde uma vez mais. Demasiado tarde e arquejante, debruçou-se da varanda do apartamento de luxo na zona alta da cidade, vista fantástica para o golfo plácido e a praia de areia branca que valeria todos os zeros da escritura, o vento de fim de verão ameaçando levar-lhe do cocuruto a boina presente de casamento da sua falecida, a ver impotente a descida vertiginosa do devorador de crianças com nariz de palhaço, roupa de palhaço, sapatos a condizer e o bandulho cheio de pequenos miúdos e miúdas que quando decidiram apagar a luz para entoarem “parabéns a você, nesta data querida” mal sabiam que o palhaço que até ali mal conseguira animar a festa do pequeno David com os seus patéticos truques de animais feitos com balões aproveitaria a momentânea obscuridade da sala para dar ao dente. Ainda por cima, pensou Malaquias, ao observar a forma como o assassino aterrou de pé na movimentada Avenida Grande, deu uma cambalhota cómica para não fugir à personagem, e partiu à desfilada na direcção norte, o Palhaço havia de ser daquelas pessoas irritantes que podiam comer de tudo que nunca engordavam. Mesmo putos diabéticos.

Malaquias exibiu a sua frustração raspando com dedos gordos a longa barba russa que esbranquiçava nos lados, ajeitou o ângulo dos óculos escuros em cima da batata doce a que chamava de nariz, endireitou o corpo e compôs o fato de bombazina que ainda trazia bolas de naftalina no bolso interior do casaco, bem como o telemóvel de serviço, aquele pequenininho com teclas diminutas que tornavam o speed dial num processo por demais lento. Informou a central na sua voz de contralto, que viessem depressa, que enviassem uma frota de ambulâncias e carros-patrulha cheios de agentes uniformizados e outros à paisana, se tiver de ser, mas de preferência mais daqueles que tivessem tido um almoço ligeiro e saltado o lanchinho ou segurassem bem os conteúdos estomacais recentes quando confrontados com sangue e vísceras infantis espalhadas pela cena do crime como se fossem serpentinas.

Recado dado, Malaquias regressou, em movimentos ondulatórios com a camisa branca espreitando e denunciando a protuberante barriga sob o colete listrado, à sala de estar, o cenário sangrento onde uma dúzia de pequenos corpos roídos até ao osso o acusava a título póstumo de não vigiar convenientemente a sua dieta.

A culpa não era sua, nem do turducken que comera ao almoço. Os tipos da Telefónica é que se tinham demorado a fornecer-lhe os registos de chamadas enviadas e recebidas do principal suspeito naquele caso. Malaquias há muito que andava de olho num animador infantil em especial, que se anunciava nas Páginas Amarelas com o simples nome de “Palhaço”, uma aposta pessoal sua e desaproveitada pelo resto da Brigada, debilóides reconhecidos do forro intelectual, mas a burocracia atrasava tudo o que era trabalho de polícia, ordens de tribunal, mandados, essas coisas chatas, e depois ainda ia esbarrar nas manhas da confidencialidade que as empresas de telecomunicações erguiam aos deuses da ética em nome da protecção da privacidade dos clientes. Tretas, pensava Malaquias pleno de espírito de tragédia, tretas que matavam pessoas e, neste caso, criancinhas, as mesmas que, tendo sobrado de entre as partes que o Palhaço não tivera tempo de comer, talvez por ter ouvido os passos pesados de Malaquias que chegava (ainda que um pouco tarde, mas chegava), agora lhe apontavam um ou outro dedo, restos, de forma acusativa.

Malaquias evitou sujar o sapatinho lustroso nas costeletas ensanguinhadas expostas duma menina de cabelo amarelo quando se inclinou sobre a mesa posta (sem dúvida pelos pais, casalinho de aspecto feliz que o Palhaço matara primeiro e Malaquias encontrara prostrados na cozinha), e usou a mão como espátula para arrancar ao bolo do aniversariante um enorme bocado com o monograma incompleto e feito de açúcar “Parabé”. Não tinha chantilly, bom para a dieta, pensou o polícia atirando um olhar aos cadáveres de palmo e meio como quem dizia “vêem que eu até tenho cuidado com o que como?” enquanto acolchoava todo o interior da boca com a massa do bolo. Amêndoa, adivinhou Malaquias, e doce de ovo, e o quê?, canela?, que ideia infeliz essa, mas bom à mesma.

Com qualquer coisinha no estômago, Malaquias apanhou-se a pensar melhor, a pensar em fazer o que devia ter feito logo que o caso lhe veio parar às mãos e que a sua reputada capacidade de dedução, por isso é que ele era Malaquias, o Grande, identificara aquele insuspeito palhaço como mais que lógico suspeito. Mas não, em vez disso seguira as regras, amochara diante dos protocolos, fizera o que o ditador bom senso ditava, e guardara aquela hipótese, na verdade a primeira ideia que lhe viera à cabeça no sentido de jogar o mais depressa possível as manápulas ao assassino, para a eventualidade de tudo o resto dar em nada. Como se veio a verificar, olha a grande surpresa, e agora, ao menos agora, podia pôr em prática o plano B, a última cartada desesperada para apanhar um monstro vestido de artista de circo que andava a petiscar no futuro da cidade, uma festinha de aniversário de cada vez.

Dedos cheios de bolo escorregaram pelo teclado do telemóvel e do outro lado, quando uma voz familiar disse “tou?”, ele disse “Sou eu… Eu… o Malaquias, o teu cunhado. Sim, estou bem, está tudo bem. E desse lado? Ah sim? Não sabia… Hmm-hmm… hmm-hmm… Olha, não andavas à procura duma cena qualquer para animar a festinha dos gémeos? Ainda não pensaste em nada? Então e se fosse um palhaço? Pois, também me pareceu boa ideia, por isso é que te estou a ligar. Tenho o contacto dum gajo que me dizem ser muito bom. Sim… Vês? Quem é o melhor tio de todos os tempos, quem é? Agradeces-me depois. Tens aí uma caneta à mão?”

Ao longe, já se ouvia as sirenes da polícia e das ambulâncias que chegavam em parada. Enquanto transmitia à cunhada o número do assassino ao qual planeava armar uma cilada, Malaquias, o Grande, pôs os olhos no resto do bolo (para o menino David, muitos anos de vida), decidido a não deixar que se estragasse.

Nuno Lopes
Enviado por Nuno Lopes em 15/03/2010
Código do texto: T2139449
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.