À Hora zero
O rádio da polícia registrou o seguinte pedido de reforço:
_ Solicito reforço para controlar homem aparentemente transtornado; indivíduo portando barra de ferro; fez vários estragos em propriedades particulares e temos poucas alternativas. Se o reforço demorar teremos de abatê-lo. Repito. Vamos abatê-lo.
Três policiais estavam tendo serias dificuldades para conter um homem fora de si. O mesmo gritava paranoicamente e sacudia um cano de ferro maciço de um lado para o outro; Os policiais tinham percebido um princípio de tumulto e rapidamente agiram. As poucas pessoas que estavam ali fugiram desesperadamente logo que a viatura parou e ao contrário do que geralmente acontece não ficou ninguém para presenciar o que viria em seguida. Essa foi a sorte deles.
O homem que demonstrava o comportamento agressivo já tinha atacado duas pessoas uma hora antes acertando-os com o cano de ferro e foi pela denuncia dessas pessoas e de algumas testemunhas que a polícia colocou homens atrás do suposto baderneiro.
Era noite, os minutos se revezavam entre onze e meia e meia noite, o lugar onde encontraram o homem era um local pouco freqüentado por pessoas, mas, ponto de passagem de alguns poucos transeuntes.
A resposta do atendente da polícia foi um pouco desanimadora:
_ Não dispomos de contingente no momento, mas o alerta já foi emitido; façam o melhor até que o reforço chegue.
O lunático saltou sobre um dos policiais, golpeando com a barra de ferro em direção ao crânio de um dos agentes; o louco gritava incessantemente:
_ Estão esperando o que, seus idiotas, atirem! Atirem!_ Dizia descontroladamente.
O estado do neurótico era tão evidente que o homem cuspia e babava enquanto estava gritando. Estava sujo, cabelo desgrenhado, rosto manchado e machucado; roupas rasgadas, descalço; e, como se não bastasse, não parava quieto um instante sequer.
O primeiro policial investiu contra ele, queria dominá-lo sem fazer mal algum, mas quando encostou no lunático, este saltou para trás tão rápido que mais parecia ter a agilidade de um cachorro, em seguida acertou a barra de ferro no ombro do policial com tanta força que o osso úmero se soltou da escápula e a clavícula se partiu com um estalo seco e medonho. O grito do policial foi bizarro e brutalmente acompanhado pelo urro selvagem do homem ensandecido, talvez por loucura ou talvez por diversão.
_ Atirem! Agora!_ Gritava o louco.
O policial atingido ficou de joelhos, segurando o ombro quebrado, bem aos pés do seu algoz que vendo a recusa dos outros dois em cumprir a ordem que lhes dava, já estava prestes a desferir outro golpe com o cano no policial ferido.
Vendo aquela cena um outro soldado sacou de sua arma e sem pestanejar disparou, porém não no lunático, mas sim para o alto.
_ Parado, ou eu juro que atiro mesmo cara!
_ Atira agora!_ Desafiou o homem, os olhos injetados, a saliva escorrendo pela boca até o queixo, demonstrando o grau de sua demência, agora era avermelhada.
Provavelmente aquele indivíduo estivesse sofrendo de alguma doença gravíssima, somente isso podia explicar seu comportamento doentio, mas os policiais não sabiam o quão medonha era essa doença.
O lunático gritou mais uma vez, não por loucura nem por diversão, mas obviamente pela dor que o acometia, ele levou a mão livre até a cabeça; por um momento pareceu perder seu centro de gravidade e cambaleou rapidamente. Quase soltou o cano de ferro.
Aquele policial restante, o que não estava apontando a arma para o atormentado, tentou avançar na direção dele com as algemas em punho para efetuar a prisão naquele breve momento de descuido do baderneiro, porém a barra de ferro cortou o ar como se fosse uma lança e o acertou em cheio a face com extrema brutalidade; este policial viu seu nariz ser esmiuçado em questão de segundos. O sangue veio em seguida.
_ Tenham misericórdia, atirem o mais que puderem. _ disse o homem tentando controlar sua fúria, mas obviamente fracassando._ Agora!
Não havia outra escolha, o policial que ainda estava de pé com a arma apontada para o insano não queria ser acertado como seus colegas e disparou uma, duas, três vezes; acertou todos os disparos no tórax do louco que se abaixou com a blusa suja e sendo tingida pelo vermelho do sangue que brotava das perfurações no peito.
O policial efetuou os disparos contra sua vontade real, e com medo de que em algum lugar nas proximidades houvesse alguém camuflado nas sombras mais distantes filmando tudo com uma câmera digital ou com um telefone celular que fosse. Teve medo de que na manhã seguinte tal vídeo amador estivesse em todos os noticiários com uma manchete sensacionalista dizendo: “Policial atira em doente mental indefeso”; já vira isso acontecer uma vez, uma armação extremamente bem arquitetada. Mas não seria esse o caso; era algo bem pior.
Aquele insano gritava de dor, mas não era a dor das balas quentes dentro de seu corpo que o incomodava mais, era a pior dor que um homem pode sentir, a dor do monstro abrindo caminho desde seu interior até a superfície; rompendo nervos e músculos; dilacerando órgãos e tendões; remodelando ossos, pele e pêlos. A dor da fúria incontrolável, da dormência da razão, da morte dos sentidos e da brutalidade do ódio; Aquela era a dor da metamorfose.
Os policiais não averiguaram, nem poderiam, mas aquela era exatamente a meia-noite e a luz pálida da lua cheia passou tênue como um fantasma translúcido sobre a rua, banhando-os, porém eles não notaram por causa da iluminação artificial providenciada pelos postes cujas lâmpadas estavam acesas, exceto, é claro, o homem em avançado processo de transformação, este sim, sentia a lua quando esta lhe ordenava que deixasse a besta sair.
O lunático já nem parecia a mesma pessoa, seus gritos tornaram-se horrendas réplicas de gritos humanos, tornaram-se inumanos, e foram se corrompendo até virar um urro verdadeiramente animalesco.
Vendo aquilo, um homem se contorcendo no chão aos gritos; o policial atirou mais duas vezes, acertou também, mas àquela altura balas já não fariam mais o menor efeito sobre o outro. Ele ergueu os olhos e eles eram tudo menos olhos normais; eram olhos animais.
A metamorfose foi rápida e aterrorizantemente inconcebível; o homem lunático deixou de ser uma pessoa e passou a ser um animal bem na frente do policial, aliás, este ao ver aquela cena medonha com toda a sua cacofonia bestial de ossos estalando misturados aos urros do monstro, perdeu todas as forças do corpo, largou a arma e, assombrado, viu o levantar da criatura.
Os gritos e urros foram se tornando mais e mais agudos na medida que se tornavam cada vez mais potentes também, até que finalmente, quando o monstro se levantou do chão, o urro já era um uivo poderoso que reverberou pelo ar e congelou a alma do policial.
Ao ouvir o uivo o soldado tentou, com todas as forças que ainda tinha, correr, mas não era possível. Pensou que ficaria louco imediatamente e a fera se lançou sobre eles.
O ataque foi violento e os dois policiais que haviam sido feridos pelo monstro quando este ainda era apenas um homem, não tiveram chance alguma; seus gritos de terror não duraram mais do que poucos segundos. Já o terceiro policial, enquanto era parcialmente devorado pela fera, desejou ardentemente morrer, mas não morreu. Milagrosamente ele sobreviveria àquele encontro monstruoso, mas sua felicidade por ficar vivo só duraria até a próxima lua cheia, quando ele seria a besta.