Olhos Brilhantes

"Chegamos aqui no sítio. Traga mais carne, o açougue da cidade não estava muito bom. Nos vemos à noite!"

Essa foi a mensagem que Pedro recebeu de Antônio em seu celular. Toda a turma já estava no sítio, nos arredores de Boituva, interior Paulista. Aproveitando o feriado de 7 de setembro, todos decidiram passar o fim de semana no sítio dos pais de Antônio e fazer um tradicional churrasco com futebol e curtir as cachoeiras do local, deixando o estresse da cidade de São Paulo para trás. Pedro não teve tanta sorte, enquanto todos partiram juntos na sexta-feira do feriado pela manhã, ele teria de partir somente a noite, pois teve que trabalhar, não conseguira finalizar a tempo suas pendências.

"Além de ficar para trás ainda tenho que levar a carne?!", indignou-se Pedro em seus pensamentos. Já chegando o fim da tarde, Pedro finalmente deixou o escritório, que estava deserto, exceto pela presença do vigia, que a cada 10 minutos vinha até ele contar piadas sem nexo e sem graça, fazendo-o perder ainda mais tempo.

Como era feriado, Pedro conseguiu encontrar as carnes que desejava somente em um grande supermercado, não pareciam tão boas e frescas como a do açougue, mas era o que dispunha no momento. Enquanto esperava na fila, recebeu outra mensagem de Antônio.

"Traga muita carne, a daqui está horrível! Te pagamos depois!", ao ler que iriam pagar depois, Pedro ficou aliviado, saiu do caixa e foi atrás de mais carne. Comprou vários tipos de carne, em quantidade considerável, teve ainda que comprar uma caixa de isopor e um saco de gelo para manter a carne resfriada durante a viagem.

Dirigindo o mais rápido que podia, logo Pedro viu as luzes da grande cidade ficando para trás, e a sua frente e ainda movimentada, a rodovia Castelo Branco. Impôs grande velocidade, queria chegar logo, precisava chegar logo, ou a carne no porta malas poderia estragar. Chegando em Boituva após algumas horas, adentrou a pequena estrada de mão dupla, que apesar de remota, conservava ainda o asfalto sem buracos. O que impedia Pedro de ir mais rápido era a falta das faixas contornando a pista, pois na escuridão total em que se encontrava, somente seu farol iluminava o caminho e sem as faixas contornando a pista as curvas apareciam de forma repentina, pois o asfalto escuro confundia-se com o ambiente, ir mais depressa seria muito arriscado. Enquanto seguia seu ritmo lento, pois já não estava tão afoito quanto antes, viu algo adiante na pista, eram dois pontos brilhantes, pareciam dois olhos. Pedro pensou ser um gato, que tem olhos brilhantes a noite. Reduzindo a velocidade do carro e aproximando a cabeça do pára-brisa para identificar o que estava bloqueando o caminho, observou tratar-se de um cão, de porte médio, pêlo curto e cor negra. Sem a luz do farol seria impossível distinguir a silhueta do animal camuflada na escuridão. Pedro, sendo amante dos animais, foi gentil com o animal, que parecia estar doente de tão magro, parou o carro a alguns metros do cão e tocou na buzinha duas vezes, mas o animal não se moveu.

"Até os animais do interior são sossegados!", pensou Pedro suspirando e olhando para cima em gesto de desapontamento. Insistiu um pouco mais na buzina, mas o animal não se movia. Pedro então foi mais agressivo e avançou com o carro para cima do raquítico cão. Desta vez o cão moveu-se indo para o lado com dificuldade. Pedro sentiu pena do animal, devia estar doente e com fome e mal podia movimentar-se. O cão acabaria morrendo ali na estrada se encontrasse com alguém menos respeitoso com os animais. Apesar da pena que sentiu, Pedro deu-se por satisfeito ao ver que o cão sentou-se na beira da estrada, ficando fora de perigo. Pedro não poderia ajudá-lo na situação em que se encontrava, apressado e com um carregamento de carnes no porta-malas.

Não dirigiu por mais que alguns minutos, quando novamente a frente, Pedro avistou os olhos brilhantes. Novamente era o cão raquítico. "Como passou por mim tão rápido?!", Pedro estava espantado. "Deve ter algum atalho nesse mato afora.", tentou racionalizar rapidamente uma explicação. Buzinou novamente e o cão não se moveu, pelo contrário, deitou no chão, parecia muito debilitado. Tentou ser mais agressivo, acelerando e buzinando, mas novamente sem resultado. Pedro desceu do carro e caminhou até o cão, aproximando-se, examinou-o mais de perto. De fato, o cão não estava muito bem, além de magro, tinha uma expressão de tristeza, devia estar com muita fome. Pedro acariciou o cão, que correspondeu com uma leve lambida em sua mão. Compadecido com situação do animal, Pedro foi até o porta malas e pegou um dos pedaços de carne que lá estava. A carne estava dura e gelada, Pedro abriu o capô do carro e depositou a carne numa área quente do motor, em pouco tempo a carne estava macia e Pedro lançou ao animal, que avidamente abocanhou o pedaço ainda no ar.

- Você está realmente com fome! - Pedro conversava com os animais, sem o menor acanhamento.

O cão respondeu com um latido. Animado com o novo amigo, Pedro pegou mais alguns pedaços de carne, esquentou-os no motor e lançou-os novamente, para que o cão com precisão os abocanhasse no ar. Após alimentar o cão, Pedro examinou a coleira do animal, pois notou uma placa metálica presa a ela, onde estava escrito "Juninho".

- Juninho? Você não tem cara de Juninho! Vou chamá-lo de... Negão!

O animal respondeu com um latido, parecia concordar com o nome.

- Será que Juninho é seu dono? Se for, ele deve ter te abandonado, sem comida. Acho que vou levar você para o sítio, tenho certeza que não vão se importar em ter mais um cachorro por lá!

Pedro conduziu Negão até o carro, colocou-o sentado no banco do passageiro ao seu lado, e este por sua vez comportou-se muito bem. Como todo o cão, Negão colocou a cabeça para fora, curtindo a vento que batia em seu focinho.

Pedro avistou ao longe as luzes do sítio, e já pode ver a movimentação das pessoas vindo em direção a entrada, pois também tinham avistado o carro pelos faróis. Parando o carro na entrada, Antônio veio a seu encontro.

- Até que enfim, achei que íamos ficar sem nosso churrasco!

- Demorei, mas cá estou, com a "encomenda". Podem levar pessoal!

Alguns outros homens retiram a carne do porta malas e levaram até a cozinha, enquanto Antônio e Pedro conversavam. Negão, o cachorro, acanhou-se com a presença das pessoas e ficou encolhido no banco, passando despercebido pelas pessoas, até Antônio notar.

- Ei, o que é isso ai no banco?

- Ah, é um cachorro que encontrei abandonado na estrada aqui perto. Vem aqui garoto!

Prontamente o cachorro pulou para fora abanando o rabo. Sem conter a alegria, Negão pulou sobre Antônio, sujando-lhe a camisa com as patas.

- Que merda de cachorro sarnento! - Antônio desferiu um tapa na cabeça do cachorro, que com um ganido de dor correu e escondeu-se embaixo do carro.

- O que você está fazendo?! - Pedro questionou indignado com a brutalidade.

- Olha o que esse cachorro fez? - Antônio esticou a camisa mostrando as marcas das patas. - O que você pretende fazer com ele??

- Bem, achei que seu pai não se importaria em ter mais um cachorro por aqui.

- Você está maluco!? Isso aqui não é canil! Tira esse bicho sarnento daqui, não quero ve-lô! E por favor, lave bem as mãos!

- Tudo bem, tudo bem! Não precisa ficar nervoso! E ele não é sarnento!

Antônio voltou para junto dos outros, batendo na camisa tentando limpar as marcas do cão.

- Venha cá garoto, está tudo bem agora. - Pedro tentava tirar Negão de debaixo do carro.

Negão veio cabisbaixo com o olhar triste de sempre.

- É parece, que você não deu sorte mesmo, é melhor você ir embora, não quero ver você sendo maltrado.

Pedro despediu o animal, tentando fazê-lo abandonar o local, no entanto o cão ficou por ali, camuflado na escuridão. Pedro entrou no carro e adentrou o sítio. Após algumas horas, o cheiro de churrasco já inundava o local, risos de alegria eram ouvidos por todos os lugares, finalmente tinham tudo o que queriam, paz, churrasco e os amigos. Enquanto todos se divertiam, a imagem do cachorro mal-tratado veio a mente de Pedro novamente. Discretamente, Pedro pegou alguns pedaços de carne já assada, e foi até a entrada do sítio, onde havia deixado o cão, imaginava que o animal ainda estivesse por perto. Passando pela porteira, já na estrada, estava bem escuro, mas percebeu que Negão se aproximara, fungando em seus pés e pernas, tendo certeza que era de fato Pedro.

- Olá amigão, trouxe algo pra você. - Pedro depositou a carne no chão.

O cão avidamente saboreou o churrasco. Pedro acariciou-lhe a cabeça e voltou para dentro do sítio.

Passado aproximadamente trinta minutos, o cão entra no sitio, e vai até onde estão a pessoas, afim que conseguir mais alguns pedaços do delicioso churrasco. Ingenuamente, aproximou-se de Ana, namorada de Antônio, que com a visão não muito agradável do animal, gritou e chamou por seu namorado.

- Mas que diabos! - Antônio apressou-se e aproximando-se do animal, e sem a menor preocupação chutou-lhe a barriga com brutalidade. - Vai embora bicho nojento!

O cão ganiu alto de dor, mas num instinto de defesa, rosnou e latiu, os pêlos do dorso se arrepiaram, e as outras pessoas pensando que o cão atacaria, atiraram-lhe pedras. Mas o que aquele pobre e raquítico cão poderia fazer? Novamente, Negão ganiu de dor com o impacto de algumas das pedras lançadas.

- Parem! - Pedro tentou intervir.

- Eu já falei pra você mandar esse cachorro embora! - Praguejou Antônio.

- Ele já está indo!

Pedro aproximou um pedaço de carne do focinho do cão e deixou-o cheirar, depois lançou a carne o mais longe que pode, assim, o cão correu em disparada atrás da carne e sumiu na escuridão.

Algum tempo depois, surge da entrada do sítio, um pequeno garoto, de uns 6 anos. Ninguém notara sua presença, no entanto ele foi em direção a Ana, namorada de Antônio.

- Oi...

- Oi! Quem é você? - Ana surpreendeu-se ao ver uma criança.

- Eu sou o Juninho!

- Oi Juninho, você está perdido?

- Não...

- Não? E onde está sua mãe?

- Lá fora.

- E o que você está fazendo aqui?

- Meu cachorro quer carne!

- Ah entendi, você sentiu o cheiro de churrasco!

- Não... meu cachorro quer carne!

- Tudo bem, mas acho melhor você voltar para sua mãe.

- Não... meu cachorro quer carne!

Ana já sem paciência, chamou Antônio.

- Você conhece esse moleque?

- Nunca vi antes! Deve ser uns desses que moram nas redondezas e ficam pedindo coisas, manda esse moleque embora porque eu não vou dar nada, bando de folgados!

- Ele ta dizendo que o cachorro dele quer carne.

- Ah, então ele deve ser o dono daquele pulguento! Manda ele embora logo, antes que eu o expulse daqui como fiz com o cachorro dele.

Ana, voltou-se para o garoto, e tentou despedí-lo, no entanto ele continuava a insistir que o cão dele queria carne e não ia embora. Ana já irritada com o garoto, chamou Antônio novamente para dar um jeito no menino.

- Muito bem moleque, não tem nada aqui pra você! Vai embora, vai vai vai! - Com rudeza, Antônio foi empurrando o garoto para a saída do sítio, ambos sumindo no escuro.

- Mas meu cachorro... quer... - A fina voz do garoto ainda tentava argumentar.

- Não quer nada!

Enquanto Antônio empurrava o menino, subitamente o garoto ficou rígido como uma estátua, e Antônio espantou-se ao notar que não conseguia mais empurrar o pequenino ser.

- Que droga é essa? Anda garoto!

- Eu disse que meu cachorro quer carne... - A voz fina e angelical do menino ficou grossa, como a de um homem bruto.

Antes que Antônio dissesse qualquer coisa, sentiu as pequenas mãos do garoto segurando rigidamente seu braço, e com um único movimento para baixo, Antônio foi posto no chão de joelhos.

- O que é você??? - Já em pânico, Antônio tentava compreender a situação.

- Eu? Eu sou o devorador! E meu cão está com fome!

- O que está acontecendo???

- Tudo aquilo que você não doa, aquilo que você prende, você acaba perdendo.

- Do que está falando?

- Eu vim fazê-lo perder. Homem mal! Cerberus, sua carne!

Da escuridão, Antônio viu dois olhos brilhantes de cor avermelhada. Formou-se sob a parca luz a silhueta do raquítico cão que Pedro trouxera, mas desta vez sua aparência era terrível, além dos olhos vermelhos, a boca estava espumando e possuía um rosnar que não combinava em nada com um cão daquele porte. Num rápido movimento, o cão saltou sobre o pescoço de Antônio, pondo fim a sua via em segundos.

- Antônio! - Chamou Ana, percebendo a demora do namorado.

Ana viu então a pequena silhueta do garoto, indo em sua direção, mas não viu Antônio.

"Ai, esse moleque de novo!", pensou Ana, sem saber o tinha acontecido metros a frente, na escuridão.

- Onde está o Antônio? - Perguntou ela ao garoto.

- Não sei... mas meu cachorro encontrou carne! - Disse o garoto já com a voz fina de antes.

- O que??? Ora, se você tiver dado nossa carne para seu cachorro eu vou te pegar!

- Não, olha lá! - O garoto apontou em direção a escuridão.

Surgindo em meio ao escuro, o cachorro vinha arrastando uma grande carga.

- O que é aquilo? - Ana não conseguiu identificar o que o cão estava arrastando, apenas viu que era grande. As outras pessoas notaram a movimentação de Ana e o estranho garoto, e viram algo sendo trazido por um cachorro. Ana aproximou-se e com grande espanto viu que o cão estava arrastando um corpo pelo pescoço. Maior foi seu terror ao reconhecer o corpo já desfigurado do namorado.

- Não!!!!! O que é isso??? - Ana entrara em pânico.

Os outros correram para junto dela para ver o que tinha acontecido.

- Meu cachorro quer carne! - Novamente disse o garoto.

- Que carne?! Você tá louco moleque?! - Um dos amigos que lá estavam respondeu rispidamente ao garoto.

- A carne de vocês!!! - A voz fina tornou-se novamente grossa e áspera.

O cão assumiu sua aparência aterradora novamente, e com grande força e velocidade avançou sobre todos os outros, abocanhando-lhes o pescoço, fazendo-os cair indefesos no chão. Caídos, agonizavam com a perda de sangue. Rapidamente o cão matou a todos, com precisão de uma animal caçador, não deixou que nenhum fugisse. Exceto Pedro não fora atacado, estava estático sem entender o que estava acontecendo. O cão saltou sobre Pedro, fazendo-o cair no chão, e segurou-o no chão, mantendo suas patas sobre seu peito, que já visualizava sua morte. O garoto aproximou-se.

- Você cuidou do meu cachorro! - A voz voltou ser fina. - Deu carne pra ele.

Pedro continuou calado, com olhos arregalados e extremamente assustado com a situação. Reunindo o pouco da sanidade e coragem que possuia, perguntou:

- Quem... quem é você?

- Eu sou o devorador, e meu cão estava com fome! - Apresentou-se o garoto novamente. - Tudo aquilo que você não doa, aquilo que você prende, você acaba perdendo.

- O que...?

Pedro não compreendia. E o garoto continuou.

- Meu cão tem fome dos inchados?

- Inchados...?

- Sim, os inchados! - O garoto falava mesmo como uma criança inocente - Aqueles que ficam inchados de tanto segurar as coisas!

- Não entendo...?

- Eles seguram, seguram, seguram e de repente... "bum"! Estoura! Aí meu cachorro gosta, come os inchados. Os inchados são maus, não dão nada! Pegam tudo até ficarem inchados!

Pedro continuava confuso.

- Mas quando eles ficam inchados eu gosto, fazem "bum"! Meu cachorro pega eles e eles fazem "bum"! É engraçado, hehehehe! Aqui tinha um monte de inchados.

Pedro começava a compreender que o garoto falava do egoísmo de seus amigos, sim, todos eram muito bem abastados, muito despreocupados e curtiam o que o dinheiro podia proporcionar. Pedro não sabia ao certo porque estava entre eles, conheceu Antônio a pouco tempo no trabalho, achou que este fim de semana seria bom para fazer amigos e contatos profissionais, mas a maioria ali nem trabalhava... Antônio fingia que trabalhava na empresa do pai.

- Você é homem bom! Você não é inchado! Você não faz "bum"!

O cão assumiu a forma no qual Pedro o encontrara.

- Meu cachorro sempre tem fome! Aqui não tem muita comida pra ele, porque ele só gosta de fazer "bum"! Mas agora, ele quer brincar com você, lá na cidade grande deve ter muito "bum"!

- Mas eu não posso...

- Ele é seu! Você vai brincar de devorador agora! Tchau!

O misterioso garoto sumiu na escuridão. Pedro olhou na coleira, e onde outrora estava escrito "Juninho", agora estava escrito "Pedro". Pedro decidiu correr, fez o máximo que pode, entrou no carro e deu a partida, mas ao olhar para o lado, lá estava o cão.

- Você não vai me deixar não é?

O cachorro latiu confirmando.

- Eu vou ter que te alimentar...?

O cachorro latiu novamente.

- Vou ter que procurar "inchados" para você...?

O cachorro latiu duas vezes, parecia feliz...

LeoLopes
Enviado por LeoLopes em 08/03/2010
Reeditado em 10/03/2010
Código do texto: T2127179
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