A Velha do Caixão
A história aconteceu nos anos 60, no interior de Pernambuco. Cícera era uma pré-adolescente curiosa e com mania de inventar histórias. Seu maior passatempo era tapear os outros com seus “relatos surreais”, que só existiam em sua cabeça. Vivia metendo o nariz onde não era chamada, em busca de “causos” interessantes que ela posteriormente relatava, não sem antes adicionar tórridas doses de fantasia e invenção.
Preguiçosa e moleirona, passava as horas debruçada sobre o parapeito da janela, o olhar vago, contemplando a paisagem agreste onde bois e cabritos pastavam magramente.
Numa tarde de outono, a jovem estava matando seu tempo no seu confortável parapeito, os longos cabelos negros agitados pela brisa suave, o olhar lânguido. Mordiscava vagarosamente um suculento caju e imaginava uma história povoada por bruxas, cavaleiros e donzelas.
Os devaneios de Cícera foram interrompidos por um movimento ao longe. Um grupo de pessoas vestidas de negro caminhava lentamente no horizonte. Parecia uma procissão.
Mais que depressa, a jovem correu para tomar parte do movimento. O vento agitava o vestido de chita, bem como a cabeleira solta. As chinelas de couro não encontravam obstáculos no solo agreste. Parecia uma valente índia que corria destemida pela mata.
Entrou no grupo, afoita. Uma alegria sem sentido. Os cabelos desgrenhados, o peito ofegante. Uma figura tola. Viu as pessoas sérias, caladas, rostos pálidos. À frente, uma jovem mulher chorava desconsoladamente, amparada por várias pessoas de semblante triste, que nada diziam.
A sapeca foi acompanhando aquele cortejo lúgubre até que este parou no cemitério.
Curiosa, foi adentrando o recinto, sem pudores.
Era um velório. Cícera viu um pequeno caixão. Uma curiosidade mórbida crescia dentro de seu ser. Aproximou-se sorrateiramente, como um gato malandro. Com as duas mãos, puxava os cabelos da frente da face, a fim de não atrapalhar a visão. Foi se aproximando a passos silenciosos e viu o pequeno anjo que jazia dentro do compacto ataúde. Com flores ao redor do corpinho, uma criança de uns dois anos, rechonchuda, muito branca, uma expressão cândida. Estava maquiado, os lábios e as bochechas gorduchas ganharam um tom rosado. Um legítimo anjinho. No seu nariz, chumaços de algodão, mas que não maculavam de forma alguma sua beleza inocente.
Cícera sentiu pena da criancinha. Pobrezinha, morrer assim, tão novinha!
Depois de saciada a sua curiosidade fúnebre, a menina xereta saiu do recinto, a passos de tartaruga, sensibilizada com aquela pequena vida que fora arrebatada tão precocemente.
Perambulando, a curiosa menina percebeu outra sala ao lado. Logo, a sensação de tristeza foi substituída instantaneamente por uma imensa curiosidade.
“Outro velório!” – pensou, excitada, vibrando o corpo e esfregando as mãos com malícia. Mais que depressa, entrou na sala.
Ao contrário do outro velório, este estava estranhamente vazio. Havia apenas o caixão com o defunto lá dentro. Estava aberto.
Cícera se aproximou curiosa. E viu. Era uma velha com nariz e ouvidos entupidos de algodão. Ao contrário do anjinho na outra sala, esta tinha uma aparência assustadora, de bruxa mesmo. Os lábios murchos e arroxeados, olheiras imensas, uma cara empapuçada. A menina sentiu grande repulsa com aquela visão.
Um frio intenso se fazia presente na sala. Mais que depressa, saiu do lugar, benzendo-se repetidas vezes.
Foi pra casa correndo feito cabrita desvairada. Já anoitecia. Na porteira da casa simples, a mãe esperava carrancuda, uma vassoura de palha na mão.
- Onde é que a senhora estava, hein moleca? Te procurei em tudo quanto é buraco!
- Ai mãe! Eu fui ali no velório do anjinho... – confessa a menina, inocentemente, toda encolhida – Mãe, a senhora não vai acreditar! Tinha uma bruxa horrível lá, ela tava mortinha da Silva, tinha uns algodão nas ventas e nos ouvido... – a jovem fazia gestos e caretas toscas, a voz cheia de mistério – Mãe, te juro que vi! Ela abriu os zôio pra mim, mãe! Juro por meu padin Ciço...
- Pára de falar bobagem moleca! – a mãe ralha com a filha, batendo a vassoura de leve no traseiro da garota – Não jura em vão, não, diaba! Vamo, passa pra dentro! Isso é tudo falta de reza!
Cícera entrou em casa correndo. Pegou um candeeiro, ateou fogo no pavio e foi para o quarto. Pôs o candeeiro em cima do criado mudo e se jogou na cama, eufórica. Aquela havia sido uma tarde e tanto!
A menina relaxava no quarto pobremente iluminado, já maquinando uma nova história. Então percebeu uma sombra que se formava numa das paredes. Levantou o tronco, curiosa. Pegou o candeeiro e chegou-o mais para perto. Grelou os olhos. O sangue gelou. Havia alguém dentro do seu quarto!
A figura de negro estava de costas para Cícera e de frente para a parede. A aparição, levemente inclinada para um lado, possuía uma vasta cabeleira grisalha, extremamente rebelde e armada.
Antes que aquilo virasse para o seu lado, Cícera saltou da cama e praticamente pulou na maçaneta da porta. Trancada! Como, se ela só a deixara encostada?! Bateu na porta descontroladamente, tentou gritar, mas nem um som saía de sua garganta. Abria a boca desesperadamente, botava as mãos na garganta, sem entender o que se passava.
Estava com medo, mas sua curiosidade era maior. Voltou-se para o lado oposto lentamente. Um calafrio percorreu seu ser de cima abaixo quando ela viu aquilo... Era a mesma velha do velório que ela visitara horas antes, sem ser convidada! E ela estava ali, em seu quarto, a dois palmos de sua face, encarando-a com olhos ameaçadores, injetados de ódio. A velha, de rosto horripilante, tinha nariz e ouvidos entupidos de algodão. A boca igualmente preenchida, estava escancarada, deixando cair chumaços da fibra. Um cheiro pútrido a envolvia dos pés a cabeça.
O coração de Cícera parecia que ia explodir. Ela queria gritar, mas foi interrompida. Num momento, uma dor lancinante atacava seu ser e, no outro, seu corpo tombava inerte no chão, pálido, olhos e boca arregalados numa expressão de horror extremo.
Por fim, a porta abriu-se.