Morte

"Hoje fui ao médico.

Há meses o tenho visitado, não porque goste de sua companhia, mas porque a necessidade o exige.

Um mal tem me consumido desde tempos atrás, uma dor, dias mais fortes, dias menos, mas posso dizer que me incomoda.

Mas voltando à visita ao médico, na verdade, nem sei bem como encontrei meu caminho de casa, depois de receber a pior das notícias.

Os anos de medicina o ensinaram a ser muito sutil e a fazer floreados para dar as piores notícias,

Mas no meu caso pedi a ele que fosse direto e me poupasse os floreios.

E foi o que ele fez, foi direto ao assunto.

Resumindo, é bem desconfortável, alguém vestido de branco como um anjo, olhar no fundo de seus olhos, como se atravessasse seu ser e visse sua alma já se desfazendo, e dizer que infelizmente, algo completamente fora do controle o corrói há tempos, e que nada pode ser feito, e que não saber precisar quanto tempo de vida ainda lhe resta.

Meses? Talvez. Anos? Pouco provável. Dias? É uma hipótese.

Senti meu chão e visão sumindo. Tudo girando à minha volta. A voz do médico sumindo no nada. Uma mistura de sentimentos. Medo, desespero, náuseas, dor, enfim não dá para descrever.

Senti cada palavra entrando em meus ouvidos como lâminas cortando minha carne.

Dilacerando cada parte de meu corpo.

Após alguns segundos, ou minutos, não sei ao certo. me levantei com a certeza de qua nada poderia ser feito e vim para casa, onde estou até agora.

A sensação de morte tão perto é indescritível. A certeza é fria é dura.

Remoendo as idéias, vejo que me sobram poucas opções.

Posso relatar o dia de hoje para que todos saibam de minha condição, mas isso faria com que me tratassem de modo diferente, como o coitado que está morrendo, e eu não saberia quem estaria sendo sincero.

E isso seria muito dolorido para com as pessoas que me amam de verdade.

Meus pais já idosos sofreriam muito com isso e outros parentes mais próximos.

Não, essa idéia está descartada. Definitivamente.

Posso esconder de todos a realidade e tentar viver de modo normal....bem, acho que seria quase impossível tentar viver normalmente quando se sabe que seus dias são poucos e algo te consome aos poucos por dentro.

Seria um sofrimento acima de minhas capacidades.

Acho que não, idéia fora também.

Pensando bem, sobra uma outra opção bem mais prática.

Moro sozinho, meus filhos vivem com a mãe, meus pais com meus irmãos, tenho poucos amigos, quase nenhum.

Ninguém sabe de minha idas ao médico.

Passo meus dias fechado aqui, horas lendo, horas escrevendo.

A idéia me é deveras interessante. Porque não??

Simples, não causarei dor e sofrimento a ninguém.

Pouparei meu desalento. Não deixarei que ela me leve no meio de um texto ou no meio

de um copo de whisky.

Não quero deixar nada inacabado, nada pendente.

Terminarei meus contos e poemas e os empacotarei.

Farei uma visita a cada pessoa com quem tive bons momentos.

Abraçarei a cada um deles para sentir o calor da despedida, mesmo que eles não o saibam.

Beijarei a cada um de meus filhos e meus pais.

Sei que eles não entenderão o porque, mas com o passar do tempo saberão.

Espero que me perdoem ...

No fundo quero muito viver, mas isso é coisa que não escolhemos.

Vou sentir falta de meus livros, das caminhadas, de meus pensamentos insanos, dos sorrisos que deixei de mostrar, e principalmente sentirei falta de todo o bem que eu poderia ter feito e não fiz.

Simplesmente depois de tudo isso feito, me recolherei à minha casa como sempre faço, e aqui darei adeus á todo esse sofrimento, de corpo e de alma.

Assim farei."

Assim foi feito conforme todo o planejado.

Apenas uma pessoa leu essa missiva, eu, o seu médico, a quem ele também pediu para que atestasse sua causa mortis como infarto agudo do miocárdio.

E assim o fiz.

Paulo Sutto
Enviado por Paulo Sutto em 02/03/2010
Reeditado em 03/03/2010
Código do texto: T2116434
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