CORPO SECO
Uma súbita e quente rajada de vento levantou com ímpeto os particulados áridos e as folhas avulsas daquele vasto campo à beira da estrada. Embora marcante, a ação da ventania não se mostrou duradoura, não tardando para que a calmaria voltasse a reinar nas cercanias do distante pomar.
Nenhuma anormalidade se mostrava evidente nos numerosos e diversificados exemplares frutíferos ali expostos. A exceção se fazia valer numa alta e frondosa mangueira, cujos frutos jaziam no chão. A exuberância em degrade verde e dourado era assaltada por uma ação invisível e avassaladora, a qual tomava para si o viço marcante dos frutos, entregando a eles, em contrapartida, um revestimento acinzentado e opaco, um frágil castelo elevado aos céus pelo delicado beijo de uma simples corrente de ar.
A árvore, de tronco espesso e imponente, sinalizava ter sido dominada pela mesma força devastadora que aniquilara com extrema facilidade os contornos maduros, os quais eram, até então, exibidos com orgulho em suas extremidades. Semelhante à maneira repentina e destrutiva com a qual as ardentes lufadas de ar dominaram os limites locais, o agente oculto tratou de retorcer e curvar os robustos galhos da mangueira, empalidecendo e fazendo cair toda a verdejante folhagem, comprometendo e secando toda a sua estrutura, reduzindo-a a um monte cinzento, triste e morto.
A manifestação sobrenatural e inexplicável não era fruto da vontade da natureza, pois esta, justa e sábia em sua essência, há muito tratara de expurgar de suas entranhas a abominação representada pelas linhas malditas daquela criatura. A terra, revestimento sagrado dos mortos, não admitia tal presença entre seus grãos.
O amaldiçoado tentava se resignar, mas era difícil convencer a si mesmo de que sua existência era um estorvo para o equilíbrio entre os planos. Sua estada não era bem-vinda nos reinos de luz, muito menos tolerada nos níveis mais baixos das trevas, suas atitudes o transformaram num condenado sem direito a descanso.
Vencido mais uma vez, ele ergueu seu ressequido corpo das cinzas, as quais ele mesmo fora o responsável pelo surgimento. Com pesar iniciaria uma nova jornada, nenhum ser vivo o tolerava por muito tempo. Ele buscava abrigo nas cascas das árvores porque seu caminhar era tortuoso e dolorido. Por mais que soubesse que sua permanência entre o vegetal não fosse de grande valia, ainda assim, ele preferia tal investida a ter de se deslocar pelo descampado, a não ser que tivesse um bom motivo para fazê-lo. Uma razão que o atraísse como a força de um poderoso imã.
Sua pele enrugada e sedenta pressionava o esqueleto desprovido de carne e músculos. O atrito produzido pelo movimento de seu corpo proporcionava a mais lancinante das dores, algo insuportável até mesmo para alguém de sua natureza. Ele arfava conforme caminhava, nenhuma língua ornava a escuridão putrefata de sua boca, um vão cravejado por filamentos cerrados em substituição aos antigos dentes. Nenhuma gota de saliva se apresentava naquela cavidade, apenas um pó enegrecido e fétido, o qual era expelido em profusão, contaminando o ar ao seu redor.
Um amontoado de ossos revestido por uma pele em eterna decomposição. Danação e penitência num incessante vagar sobre uma superfície que não o suportava. Ingrata busca pela redenção de seus pecados.
Olhos há muito não possuía. Por conta disso precisava se orientar pelo olfato, sentido traiçoeiro que lhe acendia a penúria pela míngua de víveres. Ele se arrastava em busca do perfume irresistível, a tal força que o impelia.
A praça estava repleta, os populares iam e vinham por conta de seus afazeres. O vazio em seu estômago era um espaço infindável. Muitos o viram e caíram, vencidos por incomparável choque. Outros o encontraram e fugiram. Inúmeros o contemplaram e gritaram. Mas ele só precisava de um, e o agarrou. O ser humano sob seu jugo tinha sonhos, como ele mesmo tivera um dia, mas diferentemente da garota em seus braços, ele os suprimiu, deixou que fossem consumidos pelos atos mais vis que um vivente poderia cometer.
Assim se tornou um corpo seco. Agora usava a rigidez de seus dedos para rasgar de forma ávida a carne da indefesa vítima, fazendo brotar uma fonte rubra de nutrientes e dor. O frenesi o impulsionou a cravar os aguçados fios de sua boca na suavidade crua daquela pele. Com movimentos apressados arrancou um bom pedaço do apetitoso tecido, engolindo-o sem mastigar.
Da mesma forma que a terra não acolheu sua carcaça amaldiçoada, como o céu e o inferno rejeitaram sua presença, o alimento não encontrou morada em seu corpo. O caminho inverso fora inevitável e a carne regurgitada. Ele gritaria se tivesse voz. A balbúrdia à sua volta era crescente, inúmeros e repetidos impactos o acometeram, ele desejava o toque frio da morte, mas já estava morto, apesar de não ser merecedor do descanso eterno.
O vozerio era insuportável, sua dor era insuportável! Frases sagradas e de libertação foram proferidas, água abençoada foi lançada sobre seu corpo. Ele rogou por sua mãe, a razão do seu martírio, pediu por seu perdão, implorou por alívio e paz.
Uma luz incandescente o envolveu, a multidão se afastou tomada pela surpresa e pelo medo. Seu corpo se curvou em posição fetal, seus membros se dobraram e mesclaram ao tronco. Logo, os contornos evidentes da criatura não passavam de uma estrutura ovalada e seca. Sem demora um estampido se fez ouvir e uma cortina de fragmentos particulados foi lançada ao ar.
Com o dissipar da fumaça, os incrédulos olhos testemunharam o completo desaparecimento do ressequido corpo. Nos corações daquelas pessoas ficou a certeza de que a completa superação de tão incomum experiência tardaria a ter o mesmo fim.
Muito longe dali, um vento abafado e repentino produziu um espiral ao redor de uma árvore. A poeira suspensa no ar se uniu e moldou as linhas de um corpo, deixando claro que, para alguns pecados, não há possibilidade de redenção.