A Prisioneira

A Prisioneira

´´Os piores demônios da alma não são aqueles os quais aprisionamos, mas sim os que caminham silenciosamente entre nós``

A.G.D

O despertar

Escuridão, frio, solidão eram sensações que embriagavam o inconsciente de Sara. Seus olhos pesados não conseguiam se abrir, ela apenas ouvia o som letárgico das sirenes enlouquecidas. Em alguns momentos súbitos de consciência, ela consegue despertar a lembrança; os faróis explodiram em seus olhos, e logo o choque violento contra um gigante de aço, o vidro se estilhaçou em milhões de gotas translúcidas. O corpo dolorosamente paralisado expelia sangue através da boca em seqüenciais golfadas.

Uma pulsão violenta arrastou sua consciência novamente, e seus olhos confusos vagavam entre mar de vultos e figuras silenciosas, logo tudo se transformou na mais solitária escuridão.

A ilha

Seus olhos e abriram, sentia-se leve coma brisa que acariciava sua face. As dores haviam cessado, e ao seu redor ela podia sentir a leveza do ar e o cheiro da grama fresca. O sol majestoso derramava sua luz dourada, iluminado uma gigantesca árvore ao centro, maças de um forte rubro brilhavam entre as folhagens, convidativas e suculentas. Sara se aproximou pegou uma delas e mordeu delicadamente, mas o sabor era amargo, sentiu sua língua formigar, quando afastou a maça dos lábios, pode ver que ao centro milhões de vermes se retorciam, ora com formas estranhamente humanas que se emaranhavam em gritos agonizantes. Súbito a maça caiu de suas mãos e uma voz sussurrante invadiu o seu silêncio;

- Deve estar curiosíssima para saber onde esta, estou certo, Sara?

- quem esta ai? - Ela olhou a redor, mas não havia nada, apenas a voz da ironia.

Os risos se alternaram em gargalhadas mais fortes que ecoavam pelo lugar, mas logo se calaram. Sara observou que diferentes cores cintilavam em um único ponto, todas as cores dançantes enchendo os olhos de pura energia. A imagem gradativamente se formou, as cores se transformaram em losangos e uma figura humana, ou quase humana, surgiu. O tecido colorido lhe cobria o corpo esguio, uma face branca surgiu, as órbitas oculares eram negras fornecendo ainda mais profundidade á sua face cadavérica. Ela observava Sara com um sorriso irônico e misterioso.

- Devo perguntar primeiro o que você quer em meus domínios?

_ Quero saber onde estou e que lugar é este? - Sara estava confusa, tudo parecia surreal demais para os seus sentidos.

O estranho puxou um cachimbo, colocou fumo no fornilho e começou a tragar calmamente, uma fumaça mal cheirosa invadiu as narinas de Sara.

- Perguntas demais...previsível.

Sara caminhou ao redor e percebeu que estava em uma gigantesca ilha suspensa, foi até a beira e olhou para baixo, o mar batia violentamente contra as rochas, que mais pareciam pequenos pontos negros cheios de espuma.

- Como saio deste lugar?

Pequenos troncos de madeira surgiram da grama e tomaram a forma de duas confortáveis poltronas.

_ Sente-se Sara, acalme o seu coração irei lhe contar o que quer saber – ambos sentaram e fitaram um ao outro – Primeiro meu nome é Arlequim, você se lembra do que houve há pouco? – ele estendeu a mão e dela surgiu um espelho circular.

Súbitos flashs de memória surgiam na mente de Sara, fragmentos do que aconteceu naquela noite, de como ela havia perdido a direção do carro graças a um motorista que ziguezagueava na estrada.

_ Olhe neste espelho e me diga o que vê ?...

Sara olhou fixamente para o espelho e viu a sua imagem refletida nele, era a imagem de onde ela estava. Algumas escoriações no rosto e no corpo, uma maquina monitorava seus movimentos cardíacos. Seus olhos estavam fechados e a sua esquerda ela podia reconhecer a imagem dos pais, aparentemente conversando com um médico, ela não podia ouvi-los, mas pela reação de sua mãe a notícia aparentemente não era boa.

- Eu não entendo! O que significa isso? – seus olhos já estavam marejados ao ver o sofrimento dos pais.

- É simples, você esta em coma Sara...presa neste lugar, ou como queira prisioneira de si mesma..Curioso não?...

- Quero sair, eu tenho que acordar, me diga como?

_ Você tem que encontrar o caminho por si mesma, mas pelo menos sei por onde pode começar... Por toda sua vida você sempre teve medo de ousar, agora chegou à hora, pule...

_ Como é que é? Você quer que eu pule no mar?

_ Sara, nada é o que parece ser neste mundo, não deixe que seus olhos lhe enganem, liberte-se...

E o arlequim desapareceu. Sara caminhou até á beira da ilha e sentiu a brisa salina do mar em seu rosto. Lembrou-se da mãe, das suas rugas e olheiras acentuadas devido à tristeza. Fechou os olhos e lançou o corpo, a queda era longa, o vento cortava seu rosto, mas a sensação de liberdade era algo maravilhoso, sem igual. O impacto da água lhe causou dor, inconsciente a escuridão do mar á tragou.

O medo

Quando acordou sua visão turva se fixou na escuridão. Árvores negras se erguiam do solo cinza, não havia brisa apenas o ar seco e morno que abafava os pulmões de Sara. Não havia vida, apenas uma estranha morbidez assustadora. É isto o que reside em minha mente?Pensou Sara. Ela podia sentir que aquele lugar tinha algo de familiar, então ela fechou os olhos; Era fim de tarde, o sol poente iluminava um pequeno lago, ela observava o irmão mais novo sorrir e brincar alegremente na grama, quando por um momento seus olhos se distraíram e o garoto desapareceu. Depois de algumas horas de busca desesperada, os pais o encontraram morto. Não sabendo jamais em que circunstância ele havia morrido, uma culpa corrosiva da qual Sara jamais superou.

Quando abriu os olhos Sara pode sentir um estranho formigamento na nuca, uma sensação incomoda de que alguém a observava. Estreitou os olhos a procura de algo na escuridão, mas nada se revelou.

Abruptamente dois olhos surgiram na escuridão com um brilho enigmático. Uma figura negra movia-se com felinos movimentos, então ela sussurrou, com uma voz fria e selvagem;

- Esperei por você ...Sara...- a figura negra se movia em círculos, cercando Sara.

- Apareça quem quer que seja!

- Eu sou aquele que habita o coração dos homens, sou a escuridão companheira dos tolos e covardes...

A figura se revelou surgindo da escuridão que o ocultava, era uma fera de pelos negros, a figura de um lobo gigantesco, garras prateadas despontavam da pata monstruosa e um sorriso com dentes pontiagudos surgiu. Enfim era a imagem mais magnífica que existia da natureza selvagem.

O medo estremeceu o corpo de Sara, como uma corrente elétrica, paralisando cada fibra do seu corpo. A fera a observava, a despia com os olhos analisando cada gesto do seu corpo, ela ainda podia sentir o hálito quente da sua respiração e o cheiro de carne apodrecida. Ele a fitou com olhos devoradores, farejou no ar algo que lhe agradou e sorriu;

- Sinto cheiro de medo...hoje irei fazer com que a sua dor seja lendária até os confins do inferno, onde ninguém irá ouvir os seus gritos de agonia...sua culpa será sua sentença...

Sara lembrou-se da frase do arlequim,´´nada é o que parece ser``. Então ela compreendeu que aquele monstro era parte de sua mente, algo que estivera tão presente e tão oculto em busca de vingança.

- Eu te conheço...- disse Sara.

- Diga-me quem sou eu e a deixarei seguir o seu caminho em paz, mas caso falhe, irei devorar cada parte deste seu corpo...

Ela engoliu o medo preso na garganta e respondeu;

- Você é o medo, a culpa, a tristeza...é parte de quem eu sou...

O lobo uivou profundamente e desapareceu no ar em uma obscura névoa que logo se dissipou.

Memórias

Alguns minutos e passaram até que Sara recobra-se suas forças, secou as lágrimas e começou a caminhar, sem destino, entre as árvores enegrecidas. Caminhou exaustivamente até encontrar uma casa simples com janelas brilhantes, luz, enfim um sinal de vida.

As portas estavam abertas, havia uma sala iluminada apenas com luz de velas pálidas. Nas paredes milhares de papeis colados um por cima dos outros, criando um emaranhado de textos e imagens. Sara correu os olhos nos textos, eram as suas próprias lembranças registradas uma a uma. Então ela ouviu murmúrios na sala ao lado, caminhou por um extenso corredor até chegar em uma sala circular, onde um homem sentava diante de uma escrivaninha velha, com uma caneta de pena ele escrevia freneticamente sem ao menos notar a sua presença, súbito ele parou, fazendo com que Sara engoli-se o ar de medo. Ele virou o corpo lentamente, no lugar dos seus olhos existiam apenas duas órbitas vazias, sua pele era velha e ressecada, acentuadas rugas e vincos forneciam-lhe uma aparência ainda mais envelhecida. O corpo era magro, usava roupas velhas e surradas, o cabelo ralo e esbranquiçado lhe caia aos ombros e em suas mãos eram visíveis os calos que a escrita lhe causou. Ele sorriu como se pudesse ver a garota;

- Sente-se Sara...não tenha medo de um velho homem como eu...

Ela se sentou em uma poltrona empoeirada, o pó subiu a fazendo espirrar, ainda sim ela não conseguia tirar os olhos daquele ser decrépito.

- Não se assuste com a minha aparência, sei que não lhe é muito agradável aos olhos...

- O que houve com seus olhos? Se me permite perguntar...

- Eu já não os tinha quando fui criado, na verdade eu vejo muito mais do que imagina, vejo com os olhos da alma...

- Diga-me, aqueles papeis na parede são minhas memórias?

- Nossas memórias, pois eu sou o seu guardião. Eu escrevo, e registro-os desde o principio de sua vida...

- Diga-me o que faço para sair deste lugar?

- Seguir o caminho certo...devo admitir que você esta tendo êxito até agora, pois venceu uma de suas mais importantes batalhas, derrotou o medo...mas o tempo esta passando o relógio esta correndo, você não tem muito tempo Sara...

- Como assim? O que quer dizer?!

- Você esta morrendo, seu corpo esta se enfraquecendo, a cada momento você se aproxima mais e mais da morte.

Imagens invadiram a mente de Sara, lembranças de toda uma vida, velozes lembranças prestes a desaparecer. Imaginou como seria a reação de seus pais ao saberem de sua morte, a morte de sua ultima filha. E a sensação de morte certa lhe traria apenas o vazio e o esquecimento.

- Diga-me o que eu devo fazer, por favor! Eu não quero morrer...

_ Acalme-se, nem tudo esta perdido. Você deve encontrar a prisão, o lugar onde os demônios da alma são aprisionados, neste lugar você irá encontrar o que você procura para se libertar...Agora vá, pois o tempo se esvai a cada segundo desta nossa conversa...vá!

A prisão

De todas as coisas que Sara já fez o mais insensato parecia à idéia de ter de entrar naquela gigantesca torre negra, o que lhe causara arrepios na alma. Esta torre era tão grandiosamente alta que desaparecia entre a neblina das nuvens, observou a fila que se formava a frente para entrar na torre, milhões de seres pálidos e maltrapilhos caminhavam lentamente com olhares vagos e tristes. Sara tratou de sujar as roupas com a terra branca que estava aos seus pés, rasgou as roupas e despenteou seus cabelos castanhos encaracolados.

Alguns espectros guiavam à fila, mas aparentemente não notaram a presença da garota, que logo conseguiu acesso ao interior da prisão. A visão que teve foi estarrecedora, uma escadaria circular subia até ser engolida pelas sombras, nas laterais celas e mais celas, lotadas de seres que gritavam e imploravam para serem libertos, milhares de braços se estendiam pelas grades tentando agarrar os espectros sem sucesso.

Sara caminhou pela escadaria em espiral, observou um prisioneiro em uma cela devorando suas próprias pernas, outro destruindo tudo em suas cela em um ataque de fúria, e os gritos de agonia das torturas que ecoavam pelo lugar, era enfim a visão que mais se aproximava do próprio inferno.

Ela caminhou entre os prisioneiros e sentiu que deveria alcançar o topo da torre, ocultando sua presença ela subiu cautelosamente as escadas se escondendo na penumbra que a envolvia, chegou a topo, tarefa que a exauriu até as ultimas forças. Chegando ao topo havia uma imensa porta de madeira com símbolos e esculturas horrendas, a fechadura era tão grande que caberia o dedo indicador de um humano. Sara encostou as mãos na porta, ouviu um click rápido e a porta se abriu rangendo a madeira podre. Ao entrar pilares com tochas se acenderam uma a uma e a sua frente estava um prisioneiro em um altar, preso por várias correntes. Estava nu e pálido, seu corpo exibia milhões de chagas, algumas cicatrizadas outras não. Os cabelos negros e longos escorriam úmidos pela face triste, ocultando a única coisa viva, seus olhos negros e obscuros. Sua boca estava costurada e sangrava a todo o momento. Sara observou que naquela figura existia algo irresistivelmente oculto e belo. Ela passou os dedos em seus lábios, os pontos e costuras desapareceram revelando a beleza contida ali. Tocou nas correntes e elas se desfizeram libertando-o, ele caiu de joelhos diante dela, exausto e ofegante. Sara tocou o seu rosto frio e ajoelhou para encará-lo, ele a fitou e sorriu. Subitamente as sombras que o envolvia se colaram ao seu corpo formando um manto negro. Ele se levantou e segurou o rosto de Sara, olhou fixo em seus olhos como se a despi-se a alma e a beijou, e em um ultimo sorriso ele disse;

- Obrigado Sara, agora eu posso espalhar minha escuridão ao mundo dos vivos...graças a você, minha guardiã...acorde!

Neste momento a visão se turvou, seu corpo estremeceu e sua consciência foi tragada pela escuridão.

No mundo Real

Ela despertou, e as imagens claras se formavam, seus pais estavam ao seu lado, aflitos, mas sorrindo pelo despertar da filha. Sara sentia a dor real do seu corpo, sua cabeça ainda latejava um pouco, apesar da dor ela estava feliz por retornar á consciência. Ela sorriu, mas ao tentar falar percebeu que havia um tubo preso a sua traquéia. Sua mãe tocou em suas mãos e a olhou com olhos lacrimosos, e disse;

- Filha até que enfim você acordou, foram dois meses á espera de um sinal de vida, você nos assustou filha...

Sara pensou em sua estranha e breve aventura, algo criado pela sua mente, mas que parecia ser assustadoramente real.

- Temos de conversar com o médico, voltaremos em alguns minutos...

Os pais saíram pelo corredor, o som dos passos logo desapareceram e tudo foi consumido por um silêncio mortal. O relógio que estava na parede cessou seu movimento e o ar se tornou pesado. Uma sombra formou-se ao seu lado, era o prisioneiro que ela havia libertado, e em seus olhos agora emanava um puro poder. Ele se aproximou de Sara e encostou os lábios próximos ao ouvido e disse e voz calma e penetrante;

- Irei ceifar tudo aquilo que você mais ama, e no final seremos apenas você e eu...

Fim.

Taiane Gonçalves Dias
Enviado por Taiane Gonçalves Dias em 10/02/2010
Reeditado em 11/07/2010
Código do texto: T2079449
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.