Ceifador – História para Assassino Dormir
Ceifador – História para Assassino Dormir
Dona Cotinha estava angustiada. Para ser sincero, a palavra angustiada era leve demais para refletir aquilo que se passava em seu íntimo. Ela estava mesmo era desesperada, e o pior era que não fazia idéia se tinha ou não um motivo real para estar assim.
Tudo começou algumas semanas atrás. Dona Cotinha era o tipo de idoso que lamentava muito sobre as coisas de seu tempo que não mais existem. Uma dessas coisas era a troca de cartas, antigamente você poderia abrir sua caixa de correios esperando algum cartão de uma amiga de outro estado, ou uma longa carta daquele irmão que foi tentar a sorte em lugares distantes. Hoje em dia, abre-se já cabisbaixo a caixa, sabendo que a única coisa que poderá estar lá dentro são contas e mais contas para pagar.
A velha não gostava de contas, e isso era apenas uma das coisas de que ela não gostava, mas isso não vem ao caso agora, porque naquele dia não havia apenas contas para ela, havia também um papel com a foto de uma jovem que desaparecera na região e havia uma carta. Era um envelope de aspecto incrivelmente pobre, como remetente tinha o nome José da Silva e o endereço de uma caixa postal. A velha Cotinha abriu apressada, ansiosa por saber que mensagem continha. Ficou muito surpresa, só dizia o seguinte:
“Você conhece a história de um macaco muito maluco, um pé de jabuticaba estranhíssimo e uma borboleta para lá de esquisita? Aguardo resposta para essa caixa postal.”
Pensou que era engano, mas seu nome estava escrito de forma bem clara. Talvez fosse uma brincadeira, todos sabiam que ela participava de um projeto social onde pessoas idosas contavam histórias de antigamente para crianças de hoje. Ela era conhecida por ser muito boa nisso, mas nada que justificasse aquela estranha carta.
Guardou o envelope em uma gaveta e ignorou o assunto, mas não por muito tempo, no dia seguinte havia mais uma carta:
“Já enviou a resposta? Estou aguardando.”
Aquela segunda missiva fez com que a velha passasse o dia inteiro sem pensar em outra coisa. Nunca ouvira aquela história, e mesmo que tivesse ouvido, gostaria muito de saber quem estava mandando as cartas e qual o verdadeiro objetivo das mesmas.
Por alguns dias ficou pensando se conseguiria descobrir o segredo. Enquanto isso novas cartas chegavam.
“O que está esperando? Preciso dessa resposta!”
“Estou contando os dias”
“Seu tempo está acabando.”
Não resistiu e respondeu:
“Não sei nada sobre essa história do macaco maluco, por favor pare de me perturbar”.
A resposta chegou no dia seguinte:
“Não acredito, irei visitá-la para me certificar”.
Era o que faltava, desde então ela não dormia, e cada dia recebia mais uma carta falando sobre a visita do estranho remetente.
“Qualquer outra pessoa teria chamado a polícia” pensou Dona Cotinha. Qualquer outra pessoa.
Algumas noites depois o inevitável finalmente aconteceu. Por volta de vinte e três horas da noite um homem alto encapuzado adentrou na velha casa onde Dona Cotinha morava só há vários anos. Parecia ser bem experiente em invasões, porque pulou o muro com precisão e desacordou o cachorro sem que este pudesse fazer qualquer barulho. Após isso, forçou o trinco de uma das janelas até abri-la o suficiente para penetrar no casebre, não foi muito difícil, mas saiu dali com um pequeno corte no dedo, talvez um fiapo de madeira, teve que engolir o gemido de dor.
Tão logo entrou notou que um vulto descia as escadas, Dona Cotinha. Ele sentiu o dedo ferido latejar dolorosamente, mas aquilo não iria pará-lo. Firmou o punhal na mão direita, dirigiu-se cautelosamente atrás da velha e a segurou por trás:
- Estava me esperando, Dona Cotinha? – Perguntou desdenhosamente.
A velha apesar do sufoco, respondeu calmamente:
- Para falar a verdade, estava sim meu filho.
- Então talvez possa agora me dar a resposta que eu quero, a história de um macaco muito maluco, um pé de jabuticaba estranhíssimo e uma borboleta para lá de esquisita.
- Eu realmente sinto muito, mas não sei essa história.
- Eu também realmente sinto muito, mas vou cortar a sua gar...- A voz sumiu da boca daquele homem, sentiu o corpo todo estremecer e cair no chão, a última coisa que ouviu do mundo dos vivos foi Dona Cotinha falando “Você realmente sente muito desgraçado, sente o veneno que estava na armadilha que coloquei na janela destruir sua vida”. E a primeira coisa que ouviu do mundo dos mortos, fui eu:
- Bela noite não Arthur?
Seu susto foi óbvio ao me enxergar.
- Ahhhhhhhh, quem é você?
- Eu sou a morte, vim recolher você, mexeu com a velha errada não foi?
- Que velha desgraçada.
- Se é desgraçada não sei, mas assassina sei que ela é. Já matou vários, sua última vítima foi uma jovem dessa região, que está enterrada no quintal onde você também vai ser enterrado. Por isso ela não chamou a polícia, ficou com muito medo de ser descoberta.
- Eu não posso ter morrido. Morri sem saber a resposta.
- Da história do macaco?
- É, essa mesma.
- Isso não é realmente importante é?
- Eu não posso morrer sem saber. – E caiu no choro.
Nesse momento vislumbrei seu passado e entendi o porquê da pergunta. O pai de Arthur o criou sozinho, a mãe morreu no parto. Apesar de ser um grande criminoso, era um pai muito dedicado. Todos os dias a noite ele contava uma história diferente para o pequeno filho. A última lembrança que ele tinha do pai era do mesmo sentado à cabeceira de sua cama e ele, aos cinco anos de idade, perguntando:
“papai, qual a história de hoje?” e a resposta foi:
“Hoje vou contar para você a história de um macaco muito maluco, um pé de jabuticaba estranhíssimo e uma borboleta para lá de esquisita”
Mal o pai falou o “esquisita” e o barraco foi invadido por 5 homens armados, que dispararam dezenas de tiros contra ele, nenhum atingiu Arthur, mas a criança recebeu o corpo do pai sobre o seu, complemente sem vida e banhado de sangue. “Papai, por favor, não morra papai, me conte a história do macaco, me conte a história do macaco”. Foram 3 dias para ele ser achado, até então ficou deitado ao lado do corpo do pai, aquilo afetou sua mente para sempre.
- Sabe Arthur. – Falei para ele. – Eu até entendo sua dor, mas precisava matar 8 pessoas só porque não sabiam lhe contar a tal história?
Ele nada falou, apenas chorava o tempo todo. Mas eu tinha uma boa notícia para ele.
- Acho melhor você parar de chorar, quando vejo um homem do seu tamanho chorando dá vontade de matar, e como você já está morto, isso seria um problema de proporções consideráveis. Além do mais, eu sei contar a tal história.
O choro parou instantaneamente:
- Você sabe?
- Sei sim, eu que recolhi a alma do seu pai.
Os olhos dele brilharam como o de uma criança. E ficou me esperando contar.
- O macaco ficava dando voltas no pé de jabuticaba perseguindo uma borboleta para matá-la, porque achava ela muito feia. A borboleta, porém, era o próprio rabo do macaco, e ele não conseguia perceber. A moral da história é que quem procura defeitos demais nos outros acaba deixando de prestar atenção em si mesmo.
- É só isso?
- Sim, é só isso. E agora fim de papo, que eu não faz parte das minhas funções contar histórias para crianças crescidas como você – Falei enquanto o carregava para a fronteira dos mundos. Esse planeta tem cada inquilino estranho.