Guerun, O Deus Menino Cruel
Quando nós ouvíamos aquele som que parecia um motor pifando, meio surdo, arrepiante e parecido com o ronronar dos gatos, sabíamos que era o deus menino que saíra da face oculta de Jaindunel para assombrar as pobres crianças do nosso planeta-lua.
As meninas que o via ficavam cegas, confusas e grisalhas. Outras tinham a pele sulcada pelas rugas. Já os meninos que assimilavam a presença dele...
O deus-menino sempre aparecia em momentos de festejo para nós. Como no dia em que brincávamos de “roda-louca”, em nossos Campos Elíseos, que o deus cruel se mostrou para nosso amigo Nênior no centro das duas rodas, cada qual girando em sentidos opostos. Creio que ele quis aparecer para Nênior e pegá-lo por ele estar mais exultante, mais feliz, dançando exuberantemente, envolto pelos círculos em movimento, pelas fitas coloridas enlaçadas em seus dedos, ressaltando a beleza de seu corpo, o frescor da sua inocência, dando-lhe desenvoltura e jubilo.
Eu, estando na roda de dentro que girava em sentido anti-horário na ciranda, nada vi, mas todos nós, integrantes das circunferências, ouvíamos o ronronar gutural, na verdade o som mais parecia vir de dentro, pois havia uma ressonância absurda: uma entidade fria zurrando dentro da própria entidade.
Aquele barulho maldito silenciou nossa brincadeira, as rodas cessaram seu giro harmônico, nós estávamos assombrados com o silvo Daquele Que Habita o Lado Negro Da Lua Das Deusas Sanguinárias.
No centro das rodas que se dispersavam ficou Nênior cantarolando e dançando de olhos fechados, com o espírito dos deuses bons com pés de bode. Batia palmas e seu sorriso constante parecia irradiar luz, mas eu sabia que nem essa alegria poderia livrá-lo de Guerun, o menino de Candaia, a que bebe sangue, pois algumas meninas caducavam sob seus cabelos brancos.
Foi eu que o gritou e ele atendeu ao meu chamado. Eu não via Guerun, mas julguei notar a presença dele a milímetros de distancia de Nênior, pois esse, quando abriu os olhos teve seu rosto alterado numa careta disforme que denotava um estado de espírito que excedia os medos mais abissais.
Observei ele abrir a boca e o som como um enxame de abelhas saiu de seus pulmões e correu os ares sem eco. Ele expeliu duas lagrimas de sangue, eu soltei as minhas, de dor, ele caiu de joelhos, enfeitado como um príncipe ornado de fitas e flores. Tombou de lado numa morte horrível de contrações e sufocamento. Por cima de seu frágil corpo ouvíamos o ronronar diabólico que nunca extirpei da minha cabeça.