Correspondência macabra

Escuto passos do lado de fora, deve ser o carteiro com mais uma carta de contas a pagar, todo dia é a mesma coisa, só contas, contas e contas, estou cansado disso tudo, é muita responsabilidade, nem sempre me sinto preparado, tem horas que eu gostaria de desaparecer, um buraco abrir e eu ser tragado, desaparecendo de vez dessa vida insensata. O barulho do portão se abrindo, palmas, tem alguém batendo palmas e me chamando, vou ver se é realmente o carteiro, não sendo seria algo bem inesperado.

Abro a porta, é o carteiro.

- O que você quer? – Ele sempre deixa a carta na caixa, o que ele quer.

- Encomenda para o senhor, só precisa assinar aqui nesse ponto.

Intrigado, assino. Ele vai embora. Não me lembro de estar esperando nenhuma encomenda, não tenho parentes e nem amigos, o que isso tudo significa? A volta dos gemidos, isso nunca acaba, ele quer me enlouquecer.

- Cala a boca, porra. – Falo para que pare de se agitar, isso me irrita.

Olho para a caixa, abrir ou não abrir? Me indago. Dane-se, abro o lacre, rasgo o plástico e abro a caixa, surpresa: uma corda! Que presente inusitado, quem será que me mandou isso? Com que intuito? O que eu irei fazer com isso? Desenrolo a corda e a observo de perto, seria uma moderna releitura de presente de grego, algo que faria você torcer o nariz, ficar de mal com a pessoa por um ano inteiro. Corda resistente, chega a queimar as palmas das mãos se deslizar por ela com força, uma corda de exército pelo visto, será que esse tipo de coisas existe? O novo princípio, arrumar algo para fazer com ela, achar um propósito para aquela coisa, algo vindo do profundo.

Na verdade eu ainda tenho uma certa relação de parentesco, tenho uma filha pequena e uma ex mulher louca, com sua família de loucos, quero apenas manter distância dessa turma de sádicos, mas nunca que consigo. Os gemidos novamente, altos, choramingos, um desejo de acabar com isso de uma vez, chuto a porta trancada o mandando se calar, o que faz prontamente, o medo é o melhor remédio em muitos casos, saio pela porta dos fundos, estou indo em direção ao meu pequeno açougue quase abandonado, aquela safada quase arruinou meu negócio. Negócio que construí a muito custo e suor, economizando cada centavo. Hoje são poucos os clientes, o marketing viral foi feito com sucesso. Carnes apodrecem e as dívidas aumentam, sou o único empregado, meu ajudante não agüentou ficar sem receber, pulou do barco e ainda me colocou na justiça, sou hoje o comandante de um navio à deriva, o elo perdido entre o mistério e o navio fantasma, abro a porta dos fundos do açougue, na minha mão esquerda eu seguro a corda, tenho que realizar o que paira em minha mente.

Dentro da câmara fria muitos pedaços pendurados apodrecem, não tinha dinheiro de consertar o sistema de refrigeração que permanece se arrastando, um gancho de ferro isolado, esperando por mim. Depois que eu partir aqueles gemidos vão cessar em no máximo uma semana, já se encontra a três dias sem beber água ou se alimentar, dez dias sem água ninguém agüenta, acredito que seja humanamente impossível, não devem encontrar o meu corpo tão cedo, só se a pessoa que enviou a corda vier investigar, será que foi ela? Será que me enviou com o intuito do meu suicídio? Sabia que eu iria sucumbir, peste demoníaca, minha morta vai servir como uma vingança também, mal sabe ela. Tiro minhas roupas, pego a corda, faço o laço da morte e a prendo no gancho, o banquinho balança, faço força para que ele tombe pro lado, espero que seja uma morte rápida e indolor, o banquinho vacila e vira.

Morri? Não, meus pés tocaram o chão, não calculei com exatidão o tamanho da corda, muito mais longa do que tinha em mente, paciência, não era a minha hora. Coitada da minha filha, as manchetes dos jornais, os comentários, as fotos da cena, nu e enforcado, iriam me encontrar assim, talvez já em começo de decomposição, fora que dizem que os enforcados defecam enquanto agonizam para morrer, além de estar nu, estaria todo borrado, uma cena de regozijo para aquela insana e um choque para a minha menina, poderia transtornar aa sua mente, crescer uma jovem drogada e revoltada, não quero isso para ela. Desamarro a corda e a levo embora para casa, mais uma noite agüentando os gemidos e os pensamentos em dezenas de contas para pagar, quem sabe essa não morte não seja um indício que as coisas irão melhorar.

Acordo depois dos gemidos terem se tornado insuportáveis, não me lembro se cheguei a sonhar ou ter pesadelos, se fosse influenciado pelos gemidos com certeza não seriam sonhos agradáveis. Sou acometido por uma chata dor de garganta, dormindo no chão já que vendi minha cama de casal, não existe cobertor que dê jeito, tento cobrir embaixo da porta para a friagem não me atacar, em vão. Passo em frente a porta do quarto trancado e bato na porta para que se cale, um cheiro podre passa por baixo da porta e queima os pêlos do meu nariz. “Preciso limpar essa bagunça”, penso comigo. Fico estirado no sofá da sala, todo rasgado, tendo dinheiro uma das primeiras coisas será consertá-lo, gosto muito dele, super aconchegante. Adormeço para logo acordar com seus gritos, parece que conseguiu se livrar da mordaça. Corro, abro a porta, aproveito e lhe dou dois socos no rosto e recoloco a mordaça, sinto um pouco de pena, seus lábios estão muito secos e está visivelmente perdendo peso, mas não é culpa minha, em breve terei que resolver sua situação.

Ouço passos do lado de fora, seria o carteiro novamente? Me levanto e espio pela janela, aquele uniforme amarelo não me deixa mentir, trás consigo uma enorme caixa, outro presente? Abro a porta.

- O senhor poderia assinar aqui?

Pego a caneta e assino, antes de sair ele faz um comentário sagaz:

- Ganhando muitos presentes.

Forço uma risadinha ele vai embora. No sofá fico olhando para a caixa, essa é bem maior do que a outra, bem mais pesada também, seria uma arma? Será que ele mandou isso para garantir que vá mesmo me matar? E, se afinal de contas não for ela que estiver me mandando os presentes? Curioso, abro a caixa e um pequeno envelope cai no chão, pego o envelope e antes de abri-lo para ler, tiro o papel que envolve o presente, uma moto-serra, que ótimo, vou brincar de lenhador agora, não se tem idéia de como essas coisas me deixam eufórico e sarcástico, abro o envelope:

“Bom dia amor. Se ainda estiver vivo, aproveite esse momento único e corte fora a sua cabeça, o mundo agradece”.

Você sabe quem.

Puta vadia, amasso o bilhete e o atiro longe, urro pela casa, olhar ensandecido, fogo nas ventas, ela não pode estar fazendo isso comigo, eu que a peguei me traindo com outro, ainda por cima na nossa cama de casal. Que tivesse traído longe de mim, caí no erro de me sentir sensibilizado e ter lhe dado um belo bofetão. Rolou até polícia, um escândalo na rua, vizinhos me chamaram de covarde, no final da história todos achavam que tinha sido eu a trai-la, que ela tinha me pego com duas putas loiras na cama, uma vergonha. Depois disso as coisas só pioraram, garotos passavam de madrugada pichando as portas do açougue, durante o dia lançavam pedras nos vidros do balcão, pessoas eram intimadas a não entrarem no açougue, ela começou uma campanha que eu vendia carne de gato, rato, cachorro e quiçá de humanos, que eu era um risco para a humanidade. Mas o pior ainda estava por vir.

Segunda-feira eu nunca abro o açougue, é o dia em que vou na cidade resolver as pendências, alguns problemas, pagar as contas e tal. Nessa segunda tinha ido na rua, mas acabei voltando bem cedo, não tinha dinheiro para pagar as contas. Chegando em casa notei uma barulhada vinda do açougue, me armei com um porrete e fui olhar. Sorrateiramente, me esgueirando, notei um coroa na casa dos cinqüenta anos, com uma bandana da bandeira nacional na cabeça saqueando minha loja, ela não se contentou apenas em roubar o dinheiro do caixa que era muito pouco, ele estava destruindo o meu patrimônio, filho da puta. Vindo por trás o acertei na cabeça, quando ele tombou, eu o olhei de frente, desacordado e levei um choque, era o pai da minha ex esposa, aquele animal perigoso, indesejado em várias cidades, ela não teve mesmo pena de mim, qual seria o próximo passo, mandar ele vir me matar? E qual seria o intuito disso tudo? Não entendo mais nada.

Mas que beleza de moto-serra, veio junto com uma garrafinha de óleo diesel, pronta para o combate, hora de colocar a mão na massa. Encho o recipiente com o óleo e puxo a corda uma, duas e a faço funcionar na terceira vez, abafando com isso aqueles gemidos azucrinantes, a máquina gritando e exalando uma fumaça muito bonita, me sinto todo poderoso nesse momento, nada poderá me deter. Arrebento a porta com um chute, aquela figura outrora valente e com um ímpeto avassalador me olha agora com um medo profundo, olhar pedindo clemência. Com um prazer asqueroso eu falo:

- E ae sogrão!

Confesso que deu um pouco de trabalho ajeitá-lo em uma posição favorável, mesmo enfraquecido ele continuava a lutar, fazer força, gemer e gemer, como se estivesse pedindo para que eu o deixasse ir, mas isso seria impossível, estou louco de ódio e vingança. Quando o ajeitei na posição ideal, sob seus olhares de medo, religuei a moto-serra, arrancando com um pouquinho de dificuldade suas duas pernas. Seus gritos embaixo da mordaça era de quem estava sofrendo uma dor brutal, sem precedentes e o sangue que espirrou e jorrou, era o suficiente para pintar as paredes da casa inteira, eu estava inteiramente coberto de sangue, mas muito feliz de finalmente ter tomado uma decisão.

Mas minha vingança ainda não tinha acabado, arrasto o seu corpo praticamente morto pelo jardim, sinto uma respiração bem leve se esvaindo aos poucos, junto trago também a corda. Na câmara fria, sem as pernas ele se ajeita perfeitamente no lugar em que ia servir ao meu suicídio. Ajeito a corda em volta do seu pescoço e solto o seu corpo, não demora cessar a vida, enquanto o seu corpo ainda balançava. Lembro de mais uma coisa, corro em casa e pego minha câmera, volto e tiro uma fotografia dele.

Hoje ela recebeu minha correspondência em uma caixa: as pernas do pai, uma foto dele morto e uma pequena carta em que a mando se foder. Passos se aproximando, olho pela janela e lá vem ela bufando, olhar de ódio. Ligo a moto-serra, pode vir que hoje eu estou preparado.