RESTOS E RATOS
Pela primeira vez em minha vida, eu cruzava a porta de entrada daquele estabelecimento sem ter em mente, como objetivo principal, o desejado encontro com o velho néctar escocês. Refugiar-me da incomum nevasca que se abatera sobre a região, em um local agradável, era o que mais importava naquela ocasião. Não havia uma explicação lógica para aquela queda tão brusca de temperatura, sobretudo na época do ano na qual nos encontrávamos, parecia que alguma anomalia da natureza resolvera se manifestar de maneira súbita, impondo seu poder a fim de afirmar quem de fato ditava as regras.
O abraço quente do ambiente me reconfortou. Rapidamente segui até meu lugar cativo: o assento único na extremidade do balcão de madeira, o qual formava os contornos de uma imensa letra “L” no meio do salão. Eu gostava daquele lugar por dois motivos específicos: ali ninguém poderia me perturbar, visto que não havia como outra pessoa se sentar ao meu lado, e porque, daquela posição, eu conseguia uma visão ampla de todo o recinto. Fazia parte da minha rotina observar o movimento noturno das pessoas que por ali circulavam. Eu conhecia a maioria daqueles rostos; os mesmos beberrões de sempre, os sujeitos que passavam horas na mesa de sinuca localizada no centro do salão, os solitários que brindavam com as sombras, os casais que se encontravam no fim de tarde.
Entretanto, além do frio absurdo, outra coisa destoava da normalidade: a presença de um homem, cujo comportamento se mostrava completamente estranho, numa das mesas no fundo do estabelecimento. O que atiçava a minha curiosidade não era o fato do homem ser um total desconhecido, afinal muitos passavam apenas uma vez por ali e nunca mais voltavam. Talvez a razão da minha indiscrição se consolidasse na aura projetada pela sua presença, uma sensação ruim, quem sabe uma incompatibilidade de espíritos, ou algo assim.
O baque produzido pelo contato da garrafa de whisky contra a madeira envernizada do balcão quebrou temporariamente o transe no qual eu estava mergulhado. O velho percebeu o meu susto, e enquanto preenchia o copo com uma dose dupla do líquido amargo, proferiu algumas palavras, como se adivinhasse meus pensamentos. De maneira preocupada, ele me disse: “O sujeito está ali há horas”. Assenti apenas com a cabeça, nunca fui muito de conversa, mesmo querendo saber mais detalhes sobre o comportamento do sombrio cavalheiro.
As mesas dispunham-se ao longo de toda a extensão da parede defronte para o balcão. Como o salão era intencionalmente mal iluminado, as pequenas lâmpadas brancas, fixadas ao lado das bancas arredondadas, se encarregavam de quebrar a penumbra ao redor dos clientes. Porém, na última mesa, nenhuma iluminação se fazia presente, o ocupante desejava a todo custo manter o anonimato.
Eu continuava a observá-lo, entre um gole e outro do demônio etílico. A bebida percorria seu inevitável caminho deixando um rastro de ardência e torpor, porém a preocupação causada por aquela presença me queimava muito mais, como se algo desagradável estivesse por vir. Mesmo encoberto pelas sombras, alguns detalhes de sua aparência transpareciam conforme minha visão se acostumava ao ambiente. Era possível distinguir o longo sobretudo de cor escura que trajava, assim como o cachecol de fios trançados que lhe envolvia o pescoço e a larga boina sobre a cabeça. Longos cabelos escorriam até os ombros. Definitivamente aquele homem não era da região, um estrangeiro provavelmente. Ele fazia uso de óculos para leitura, mas não portava nenhuma revista ou vespertino, nem mesmo tocara no cardápio. Um copo pousava sobre a mesa, o nível do líquido permanecera inalterado durante todo o tempo, assim como a cigarrilha que queimava num cinzeiro, e que não fora tocada um só instante, parecia que estava ali apenas para nublar aquele espaço com uma fumaça densa e acinzentada. Vez ou outra ele consultava um relógio de bolso, aparentava preocupação com a hora, no entanto não demonstrava impaciência.
Ouvi a sineta da porta, alguém adentrava o recinto. Virei os olhos e me deparei com o sinuoso caminhar de uma vistosa mulher. Ela trajava um longo casaco de couro branco e trazia uma touca de lã da mesma cor como proteção para a cabeça. Um franco sorriso estampava seus lábios. O conjunto formado pela tonalidade dos trajes e o dourado dos seus cabelos traduziam uma impressão de luz e jovialidade. Um aroma de jasmim impregnou o ar com sua passagem, um doce brinde para minhas narinas.
A jovem seguiu em direção ao estranho, o qual, de pé, retribuía-lhe o sorriso. Não sei se fora apenas uma sensação, mas posso jurar que o ar tornara-se mais frio. Parecia que a satisfação estampada naquela resposta provocava alguma reação no ambiente. O que era apenas um pressentimento, acabara por converter-se quase numa convicção: aquela mulher corria perigo.
Os minutos se passaram. A garrafa, minha usual companheira, insinuava seus últimos suspiros sem que eu ao menos tivesse me dado conta. Eu não fazia a menor idéia sobre o que falavam, mas uma coisa era certa: aquele homem, pelo qual eu nutria uma antipatia gratuita, parecia ser bem articulado e persuasivo. A jovem ria de modo espontâneo e demonstrava afinidade através de contatos corporais cada vez mais freqüentes. Ela estava caindo numa armadilha traiçoeiramente armada.
Não tardou para que se levantassem e seguissem para os fundos do estabelecimento. No final do corredor de acesso aos banheiros ficava uma porta que servia de limite com um beco, o qual em noites mais amenas funcionava como um ambiente mais propício para, digamos, uma conversa mais pessoal, por assim dizer. Virei garganta abaixo o conteúdo que restava no copo, me levantei e parti decidido a evitar que a garota sofresse algum tipo de agressão. Era estranho pensar dessa maneira, afinal ela o seguira de livre e espontânea vontade, mais do que isso, exalava confiança e decisão. Porém, uma voz me dizia que algo não se encaixava no padrão usual de um relacionamento, uma espécie de indução ou coisa do tipo se fazia presente.
A porta escancarada oferecia um intimidador abraço noturno. A corrente de ar gelada e impiedosa, que entrava pelo vão e circulava livremente pelo corredor, fazia meus ossos doerem. O som produzido pela batida súbita da peça de madeira me assustou pela segunda vez naquela noite, assim como senti todos os meus pêlos se eriçarem com o ruído estridente fornecido pelas dobradiças enferrujadas quando a porta novamente se abriu. Fiquei estagnado observando o movimento incomum da prancha móvel. Parecia que ela debochava dos meus receios através daquela caricatura de uma gargalhada crua e cínica.
Agarrei e ergui do chão um resquício da recente reforma nos encanamentos dos banheiros. A barra de ferro me serviria de arma caso eu precisasse. No beco, o frio estava muito mais intenso do que na ocasião da minha chegada. Um tapete branco se estendia sobre todo o chão, os flocos gelados não mais caíam, mas o vento cortante me atingia como açoites de uma chibata. Não havia nenhum sinal do casal. Por um momento fiquei aflito por estar fazendo papel de tolo, entretanto não pude deixar de notar aquilo no chão, um sinal claro de que minhas preocupações eram legítimas.
Mesmo com toda a escuridão, não havia como negar a natureza daquelas manchas sobre a camada de gelo. Aquilo era sangue! Inegavelmente! A neve estava revolvida no local, havia um sulco, como se algo pesado tivesse caído ali, provavelmente um corpo. Céus! Naquele momento passei a temer não só pela integridade física da garota, como também pela minha própria segurança. Achei por bem retornar em busca de ajuda, então caminhei até a porta, mas para minha total incredulidade, esta estava trancada, não havia jeito de abri-la por fora.
Tentei manter a calma, deixei o ar gelado preencher meus pulmões. Aproximei-me das manchas vermelhas, notei que o sulco se estendia em direção à rua, como se o corpo tivesse sido arrastado naquela direção. Ainda de posse da barra de ferro, segui o rastro. Algumas gotas de sangue salpicavam o caminho que contornava uma grande caçamba de lixo. Utilizei a chama do isqueiro para tentar quebrar as trevas absolutas que dominavam aquele espaço fechado. Vi alguma coisa presa entre a tampa e o engradado de ferro, cautelosamente cheguei mais perto a fim de desvendar o que seria.
O ritmo dos meus batimentos cardíacos denunciava o completo nervosismo que me dominava, o suor era expelido pelos meus poros como a lava de um vulcão ensandecido, mesmo com toda a rigidez da temperatura adversa ao redor. Agarrei a parte que estava exposta e puxei, a tampa metálica insistia em não ceder, empreguei mais força, então ele se soltou, levando-me ao chão. Era um casaco, o casaco de couro branco que até pouco tempo vestia a mulher. Estava lavado pelo líquido vermelho e pegajoso, o sangue da vítima, sangue esse que agora estava também em mim, maculava minhas mãos e roupas.
Gritei. Uma manifestação legítima e urgente. Semelhante aos apelos feitos por uma criança amedrontada. Porém, meus gritos obtiveram uma resposta, não um indício de ajuda ou algo assim. Os ruídos que percebi nos telhados indicavam muito mais uma ameaça do que qualquer outra coisa. Era o maldito. Só poderia ser ele. Levantei-me o mais rápido que pude. Provavelmente o corpo da garota deveria estar naquela lixeira, sendo assim, ele não teria a menor intenção em manter viva uma testemunha.
A maciez do piso não ajudava na tentativa de fuga, os tombos eram inevitáveis. Pensei em dar a volta no imóvel e ganhar as dependências do bar pela entrada principal, mas nada impedia que ele me seguisse e desse cabo da minha vida ali mesmo. Não. Era preciso abandonar o local o mais depressa possível.
Eu mal conseguia me manter de pé quando cheguei ao automóvel, o nível da neve chegava aos tornozelos. Entretanto, para minha felicidade, a via principal havia sido desobstruída pelo serviço público. Acionei a ignição e parti. Aos poucos pude recuperar o ritmo normal da respiração, ainda tremia um pouco, mas sentia o alívio da salvação. Jurei para mim mesmo nunca mais me meter nos assuntos alheios.
Guiei por algumas centenas de metros, praguejava contra o aquecedor que não dava vazão ao frio intenso no interior do automóvel, também refletia sobre o ocorrido, pensava se valeria à pena avisar às autoridades e me envolver ainda mais. Porém, algo inusitado aconteceu, um toque leve e gelado na minha nuca me fez perder a direção e sair da estrada. O veículo se chocou contra um monte compacto de neve, a colisão fez com que eu batesse a cabeça com violência no volante. Senti o sangue escorrer pelo meu rosto, mas o pior ainda estava por vir.
Ouvi uma voz atrás de mim, o ato reflexo impulsionou uma correção imediata de postura. Apesar da dor absurda proporcionada por tal movimento, o resultado obtido acabou revelando-se como algo positivo, pois meu campo de visão agora compreendia perfeitamente a parte traseira do veículo, utilizando como artifício o espelho do retrovisor interno. Contudo, para minha surpresa, a imagem refletida não revelava nada além do estofado do banco de trás, nenhuma presença estranha, nada que justificasse o que eu havia ouvido. Mal tive tempo de emitir um suspiro de alívio, pois novamente fui assaltado pelo som daquela voz, mas desta vez não foi apenas um sussurro desconexo o que chegou até meus ouvidos. Não. Eram palavras. Palavras proferidas de maneira nítida e pausada, as quais formavam muito mais do que uma frase, elas construíam uma revelação...
Eu precisava confirmar o quanto louco eu estava ficando, e para isso tive de girar o tronco, pois não havia como movimentar o pescoço. Nunca pensei em sentir tanta dor, mas eu estava enganado, muito enganado, o que meus olhos viram quando completei o movimento assegurava exatamente o contrário: muita dor ainda estava por vir. Aquela imagem diante de mim era, sem sombra de dúvidas, a pior aberração que poderia circular no mais hediondo dos pesadelos. Mas era real, estava ali, e revelava de modo perverso e letal o quanto errado podemos estar em nossas suposições.
Os olhos injetados, o sorriso animalesco, cada contorno daquela pele pálida e fria revelava a verdadeira face do mal, uma ameaça que julguei tão ingênua e frágil...
“Tenho certa preferência pelo sangue azul, raro e esnobe dos aristocratas, entretanto o líquido que corre em suas veias também me apetece.”
Ao completar a frase, a mulher, que até então eu desejava proteger, deslizou o dedo indicador, do qual saltava uma longa e curva unha, por toda a superfície do meu rosto ensangüentado. Em seguida, levou-o até os próprios lábios ressequidos e lambeu o líquido que escorria. Eu poderia gritar, mas de nada adiantaria, em breve eu teria o mesmo fim do infeliz largado naquela caixa metálica. Morto e esquecido, entre restos e ratos.