Enquanto caminhava pelas ruas vazias, ouviu a voz ordenando que fosse mais atento, embora não ousasse desafiar o Mental Superior, desta vez sentiu-se ofendido. Não achou justo: Logo ele, um observador nato, sempre analisando todas as possibilidades e desafios... Considerava-se um privilegiado, amparado por um ser que o tornava mais que especial, quase um anjo. Intocável e acima de todos os comuns, Jonas pensava ser ele o enviado do Supremo. Sorriu deliciado, sob as roupas largas e disformes que ocultavam a magreza e palidez de quem jejuava continuamente, submetendo-se a longas privações e castigos.

A esquina parecia perfeita para um grupo de adolescentes, ali podiam ser o que bem quisessem, não havia censura ou regras.
Uma menina seminua dividia a atenção entre os rapazes, alternando abraços e afagos.
A dor chegou forte, no topo da cabeça de Jonas, como deveriam ser as mensagens verdadeiras, era preciso que beirassem o insuportável. Jonas ajoelhou-se imediatamente, encostado na parede, escutou a ordem para salvar a moça. Ele sentiu a lâmina fria em contato com a pele, sob a atadura apertada em torno do dorso, pronta para fazer cumprir seu papel sagrado.

Levantou-se em passos trôpegos, aproximou-se dos jovens simulando embriaguês, eles não deram atenção ao maltrapilho. Em segundos, Jonas iniciou o massacre, cinco corpos agonizando na calçada fria, alguns ainda gemiam e pediam ajuda. Não houve tempo ou estavam tão drogados que não puderam reagir. Ignorou as súplicas e buscou o foco principal: Agora precisava transmutar e salvar a pequena alma que mantinha desacordada em seus braços.

Alice não tinha família certa, vivia ora na casa das tias, avós ou pelas ruas. Morava onde deixavam e comia o que conseguia pegar. Nunca conheceu a mãe, muito menos sabia quem havia sido o pai, sentia-se fruto do acaso, um ser a mais no mundo, sem compromisso com ninguém. Não conseguiu estudar por muito tempo, logo estava andando com gangues de drogados, estranhamente não gostava de nada que alterasse sua percepção. Com o tempo, aprendeu a fingir-se de bêbada e passava a noite sem tomar um só gole, atenta a tudo e todos. Precisava cuidar de si, por isso mesmo, foi a única que desconfiou de Jonas a tempo e tentou fugir, só não contou em ser o alvo... Quando recebeu a pancada na nuca, perdeu as forças e Jonas arrastou o corpo leve ao beco mais próximo.  

Ela não ofereceu resistência alguma, para ele, a moça era dócil como deviam ser os cordeiros. Jonas lembrou as palavras do mentor e viu ali o sinal. Fingindo estar desmaiada e analisando suas possibilidades, Alice concluiu que o seu algoz era um louco, que balbuciava continuamente mantras desconexos em uma eterna canção de ninar: Crianças malvadas, céus e anjos, piedosos senhores do destino... Meninos e meninas em segurança...

O mais assustador era a risadinha e os ruídos que emitia, sibilando, rangendo os dentes, passando a língua nos lábios continuamente. As mãos pegajosas descendo e despindo Alice, que continuou parada e muda. Ele forrou o chão com um pano, fez com que ela deitasse e derramou óleo de um vidrinho escuro. Sacou o facão sujo de sangue, limpou e o colocou ao lado do corpo de Alice. Entre os seios pequenos, ele derramou o sal que tirou do bolso do casacão surrado e recomeçou a murmurar os sons guturais.

Quando Jonas começou a espalhar a mistura com a ponta dos dedos, a jovem viu que era hora de agir e tentar sua salvação. Reuniu todas as forças e flexionou as duas pernas, acertando o abdômen do homem com toda a força. Ele caiu para trás e, imediatamente, ela pegou o facão e enterrou no primeiro lugar que alcançou. Depois disso, saiu correndo como se mil demônios a perseguissem... Não olhou para trás, não quis ver se ele estava em seu encalço, apenas queria fugir o mais rápido possível...

Nua, Alice escorregava na calçada molhada, a chuva fina e gelada fustigava a pele, mas nada a faria parar de correr. Era a segunda vez que encarava a morte, se conseguisse chegar a algum lugar seguro, mudaria de vida, prometeu a si e correu, correu... Sem atinar por onde pisava ou ia, sem conseguir gritar por socorro, completamente apavorada e perdida.

Jonas arrancou a faca da coxa e urrou de ódio, ainda avistou a menina dobrando a esquina, mas não podia corrigir seu erro. Não havia perdão, ele sabia o que tinha a fazer, a voz jamais se repetia. Ele sabia que não faria falta a ninguém, há muito a família o havia abandonado em um sanatório. O Mental Superior o encontrou e o tirou de lá, ordenou a execução dos hereges e nem os parentes mais distantes haviam sido poupados.

Jonas apagou seu rastro na terra dos homens, mudou de cidade e só caminhava nas sombras. Transformou as posses dos mortos em dinheiro vivo e sobreviveu com o essencial. Era um servo, limpava as ruas dos maus e libertava os poucos escolhidos. Mas havia falhado e seria castigado, purificado em sacrifício  para merecer a paz e misericórdia. Jonas reviu toda a vida e ensinamentos, os rostos de suas vítimas rodopiavam à sua frente. Alguns tinham as bocas abertas, em um grito mudo e absurdo que apenas ele podia escutar.

Cinco e quinze da manhã, dois policiais estavam parados na esquina de um beco sujo. Havia tantos carros, peritos e curiosos que, a muito custo, conseguiram aproximar-se da cena do crime:

- Cara, em quase vinte anos, nunca vi nada parecido.

- Parceiro, como este maluco conseguiu se mutilar deste jeito?

- Não sei. Dizem que tiram forças de Deus sabe-se lá onde, mas este aí se superou. Ele arrancou o próprio pênis, fez um monte de talhos no rosto e depois cortou o abdômen de fora a fora.  Devia estar muito doido, se é que estava sozinho...

- O que a gente não tem que passar por este salário de merda? Muito pouco pra aturar estas coisas... Pior que a investigação nem começou e já tem mil especulações. Viu as tatuagens? Dizem que é de uma seita satânica. Que merda! Odeio estas coisas de religião.

O delegado Valdeci passou pelos detetives com seu sorriso sarcástico de sempre à guisa de cumprimento,
fez uma meneio com a cabeça, e caminhou em direção a viatura parada. Uma mocinha pálida e magrela, de olhos arregalados e vermelhos, os observava:

- Aquela é a sobrevivente. Pegaram vagando nua pelo parque há duas quadras daqui.   A única coisa que contou, foi que quando fugiu, o assassino ainda estava vivo. A mídia já começou a festa, preciso de respostas, vocês sabem... Ah sim! Bom dia, meninos! 

Torres engoliu o café morno que restava, Borges preferiu o antiácido de sempre, o dia mal começava e tinham certeza de que não haveria  hora para terminar.
Seis corpos, uma menina com uma historia pra contar e um quebra-cabeça a ser montado. Deixaram o local apinhado de curiosos cheios de suposições, eles próprios ainda não tinham a ponta da meada e, de qualquer forma, sabiam que não iriam descansar até destrinchar todo o enredo. Eram assim, dois obstinados em apurar a verdade, que não mediam esforços, o que os tornava um estorvo para muita gente. Infelizmente, de ambos os lados da lei, haviam feito amigos e inimigos. 

A única certeza: O sentimento de revolta que os unia contra o massacre presenciado. Era preciso resolver a questão, entender o que havia acontecido e apresentar os fatos.

 Torres dirigia o carro apressado, mentalmente traçava linhas de conduta do caso, as ruas já não estavam tão vazias, era um domingo bonito de verão.  Borges pensou que o tempo estava  perfeito para passeios e lazer. Algum programa bem família, sentiu saudades dos filhos e discou para casa. Nem percebeu que era cedo demais.





Revisão: Lucia Czer



Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 24/01/2010
Reeditado em 20/03/2010
Código do texto: T2048690
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.