Realidade (Relato de um vigilante).

Realidade (Relato de um vigilante).

Local: Franca SP

Baseado em relato.

O dia estava frio, cinzento, era sem dúvida um dia triste. Os sapatos de couro sintético do senhor Geraldo estalavam sem ritmo frente ao silêncio da universidade que vigiava. Com olhos atentos averiguava cada milímetro do tão conhecido corredor e, em cada curva, agarrava a coronha do revólver; expondo uma preocupação inerente e constante em não ser surpreendido.

O vento frio avermelhava-lhe a face e lhe descascava os lábios de forma gradativa e contínua; forçando-lhe a umedecê-los incessantemente. Era janeiro e, tal condição do tempo; era uma anomalia.

“Há algo errado com este mundo!” – Pensava sempre o idoso vigilante.

Mas, em verdade, para Geraldo, dias cinzas e frios como aquele, conduziam lembranças de um dia bem parecido; este que com grande ênfase, há tempos assola seus pensamentos: Não era janeiro no entanto, e sim junho, inverno; dia vinte e quatro para ser exato, e com exatidão Geraldo afirmaria que era um domingo , um dia frio, como muitos em que o pobre vigilante já se acostumara a trabalhar.

A universidade estava vazia e somente a alma de Geraldo ali se prostava ao trabalho. Os corredores imensos se tornavam contínuos emissores de luz e som quando vazios e, ainda mais, quando intensificados pelo vento e a dilatação. Geraldo absorto nestes ruídos ou sons fazia temerosamente a sua ronda. Pois claro! Tanto qualquer barulho pode ser causado pelo vento, como também por um ladrão. Sem questionamentos, Geraldo era um vigilante precavido. Deste modo, dias assim faziam com que Geraldo depositasse atenção dobrada ao trabalho e à sua vida.

Geraldo com sua mente, determinou, como todas as pessoas, um local onde reinava um medo maior, mais exatamente um pequeno corredor localizado entre a sala de raios-X e a de revelação no setor de odontologia, pois, assim como muitos que, por um receio irracional evitam passar por uma pequena rua, ou conversar com certa pessoa, ou ainda, caminhar sob uma grande árvore; Geraldo evitava a todo custo ir àquele setor. Não que ali houvesse algo além do comum, não, contudo ali os barulhos eram somente diferentes, mais suaves, rítmicos; mais humano. Ali, o ambiente era frio e úmido, talvez pelos produtos químicos da sala de revelação, que por ficarem destampados ao lado da pia talvez proporcionassem esta sensação, Geraldo acreditava nisto, mas sua mente não.

Naquele domingo de inverno a última coisa a se esperar seria uma chuva, entretanto fora justamente o que ocorrera. Esta começara bruscamente, mas logo, aos poucos, tornou-se suave e delicada e, como o orvalho noturno passou a encobrir o céu e a terra com uma ternura suprema.

Não após muito tempo de chuva, um forte relâmpago fez brilhar o rosto de Geraldo, este rapidamente voltou-se para o estrondo gigantesco que automaticamente se seguira. As luzes, como um chamado divino apagaram-se e, antes os simples ruídos que incomodavam o velho vigilante; agora uniam-se à escuridão chuvosa.

“Os disjuntores do gerador” - Pensou Geraldo.

Eles ficam no setor de odontologia, justamente onde o velho homem não desejava ir.

“Bem, daqui a quatro horas termina o meu turno e, o Mario pode bem ligar os disjuntores caso a energia ainda não tenha voltado... Droga! Os frízeres com o material de pesquisa... O reitor nos orientou (No máximo dez minutos desligado, esta é uma pesquisa importante e de alto custo, e de fato, um grande orgulho para a universidade)”.

Geraldo, contrariando os próprios pensamentos, dirigiu-se maldizendo o reitor ao setor de odontologia da universidade.

O gotejar incessante da pia indicou a Geraldo que ele estava na sala de revelação, nada se podia ver e o frio úmido era demasiado incomodante. O vigilante com uma frialdade na espinha procurava ao lado da tela fluorescente o painel que continha os disjuntores, não encontrava. Incrivelmente naquele dia frio havia um homem que suava. Geraldo desconcertado por não encontrar o painel, tremia como um garoto. O gotejar da pia era incessante; contínuo como o frio úmido.

“Droga ficava aqui. Droga”.

A sala parecia menor, mais apertada, o tremor era insistente.

“Droga. Cadê!”

Estranhamente o gotejar cessou, os olhos de Geraldo voltaram-se para onde pensavam estar a pia, entretanto com assombro só viram escuridão.

“Nem os encanadores da universidade conseguiram faze-la parar de gotejar, eu mesmo vi, e agora ela para do nada, Deus do céu.”

O frio aumentara também a umidade, mas não havia ruídos. Nenhum ruído.

“A chuva e o vento cessaram-se. Será?”

O painel sumira, Geraldo sabia que procurava no lugar certo, igualmente a todas as pessoas que se enganam, ou talvez não.

O gotejar da pia voltara, mas agora era diferente, constante como as mãos do vigilante que apalpavam sem sucesso a parede áspera. Gotejava muito mais e mais forte.

“Dane-se a pesquisa” No mesmo instante um grande estrondo demonstrou a Geraldo que a porta se fechara.”

O gotejar aumentara, forte como nunca.

Geraldo correu em direção a porta.

Algo molhado agarrou-lhe os tornozelos. Uma grande pancada atingiu-lhe a face.

Enquanto caía, Geraldo pode ver as luzes acenderem e também a face de uma criança deformada que lhe agarrava o pescoço forçando-lhe a queda, e antes de desmaiar pode vê-la desaparecer assim que surgira a luz.

Não era domingo e também não era inverno, mas o dia de hoje lembrava Geraldo que o mundo não é somente aquilo que vemos.

Estava frio, pelo corredor havia um vigilante que distante pelos seus pensamentos alisava uma cicatriz no rosto, não era inverno e, não havia somente uma pessoa no corredor.

J o ã o V i c t o r.

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