O Beijo da noite perpétua
_ Escolha seu novo nome, Agar ou Acácia.
Simona se levantou rapidamente e correu, mas parou no meio do ímpeto de fugir por estar num lugar muito escuro, a luz abundante, porém quase fantasmagórica era a luz do luar e a mulher parecia estar longe de qualquer lugar habitado. Suas roupas estavam sujas e retaliadas; havia sangue em seu decote, mas não tinha nenhum ferimento visível em seus seios ou pescoço.
_ Acácia, vem do grego, significa ressurreição, e foi o que aconteceu com você nesta gloriosa noite; já Agar é um nome hebraico e significa estrangeira. Isso é o que você se tornou hoje; para sempre uma estrangeira no meio das pessoas.
A mulher se voltou girando nos calcanhares e viu um homem sentado sobre uma lápide e recostado em uma grande estátua de um anjo, que fazia sombra defendendo aquela pessoa da luminosidade pálida da lua com suas grandes azas abertas e as mãos estendidas para frente.
_ Por favor, me ajude, não sei como vim parar aqui. Que lugar é este?
O outro; puxou as pernas até encostarem no tórax, repousou os braços sobre os joelhos e disse:
_ Olhe em volta.
Simona parou um minuto e antes de olhar ao redor, percebeu que aquele homem estava sentado sobre uma sepultura, havia outra cuja tampa, como uma espécie de sarcófago, estava aberta e uma terceira também fechada. Finalmente ela se virou e teve certeza do que já imaginava, viu várias lápides, várias sepulturas, várias estátuas de anjos; querubins, serafins, santos, cruzes de diversos tipos e alguns mausoléus. Estava em um cemitério.
Irrompendo em prantos imediatamente ela caiu com os joelhos em terra, na verdade, era uma grama verde e umedecida pelo ar da noite; uma nevoa rasteira se apresentava em alguns lugares como se fosse um rio formado por almas translúcidas que serpenteavam pelo solo em busca de alguma entrada para o centro da terra.
_ Não chore. Nunca mais você vai precisar chorar novamente, você está livre e fora do jogo; em breve vai entender que lágrimas não farão parte de sua vida, mas sim daqueles que zombaram de você.
_Fui seqüestrada? Sou sua prisioneira? O que você quer?_ Falou ela no intervalo dos soluços que embargavam sua voz.
_ Não. Você não é nada disso, de fato, jamais foi. Só peço que você me ouça atentamente, não faça perguntas, meu tempo é curto e quero dizer tudo o que você precisa saber para sobreviver.
Ela chorava copiosamente imaginando que seria utilizada e depois enterrada na sepultura que aguardava com o tampo pesado de granito aberto.
_Não minha doce sobrevivente, nunca passou pela minha cabeça usá-la como seus clientes o faziam até a noite passada, na verdade, agora é você que vai usá-los, nunca mais vai precisar vender-se a si mesma em troca de dinheiro, nunca mais vai precisar sucumbir ao vício e usar tudo o que usava para perder os sentidos ou obliterar a consciência em troca de viagens mentais distorcidas. Você minha cara, morreu.
Simona estava deitada em posição fetal e continuava chorando; em sua mente passava um cem número de coisas e ela ainda não compreendia nada do que o homem falava.
Ele prosseguiu:
_Eu trouxe você aqui, porque é um lugar tranquilo, o mais tranquilo que conheço, ótimo para descansar. Você vai gostar deste lugar com o tempo, quando perceber que não suporta mais ouvir as vozes e os pensamentos da multidão fervilhante de pessoas em todas as partes.
_ Minha jovem escute, você não precisa mais fingir, não precisa mais mentir para si mesma como as pessoas fazem, você está além dos falsos sentimentalismos humanos; todos os dias eles sorriem para pessoas as quais não suportam, fazem violência contra eles mesmos agradando falsamente pessoas que desejam o pior possível, dizem que conhecem sentimentos como piedade, amor, esperança, mas negam tudo isso com seus atos. Eu libertei você.
A maquilagem pesada de Simona agora estava destruída pelas lágrimas que brotavam incessantemente de seus olhos, os longos cabelos, desgrenhados, mas havia algo dentro dela, algo diferente que ela não sabia identificar.
O outro continuou falando:
_Não sei porque você chora, se já a escolhi pela sua total falta de apego a vida; sim eu ouvia todas as vezes que durante sua jornada de trabalho você desejava acabar com tudo; estava perto quando você, sendo usada por seus clientes como um trapo humano desejava não ter nascido e se considerava a pior das mulheres.
Simona tentou se levantar, sentiu o corpo leve, tão leve que pensou por um momento que seria levada caso soprasse um vento mais forte.
_ O que houve comigo?_ Perguntou _ sinto-me leve.
O outro estremeceu, parecia sentir dores por dentro do corpo e fez força para responder.
_ O que você sente é meu sangue correndo em suas veias; eu lhe dei um presente, um beijo que vai tornar essa noite perpétua; você vai viver até enjoar, mas devo adverti-la _ ele parou tossiu e fez mais força para continuar falando _ não vai ser fácil no começo alimente-se de seus antigos clientes e dos novos também, use os dotes físicos que você possui para atraí-los a cada noite, seja prudente e sorrateira, mas não beba todo o sangue porque senão ele se tornara como você e você perecerá como eu.
Ela não compreendia totalmente e ficou olhando o outro enquanto ele descia do lugar onde estava sentado e deitava no caixão aberto.
Ele disse:
_ Os próximos dias serão importantíssimos para você, fuja da luz forte e jamais ouse desafiar o sol, fuja da prata e da água corrente; alimente-se só o necessário, você saberá; em pouco tempo tudo o que eu tenho hoje voltará sobre você, não haverá lugar onde você não possa ir, mente que não possa ler. Simona não é mais aquela mulher rejeitada pela sociedade dos vivos e sim uma rainha da noite.
Por fim, ele fechou a tampa pronunciando a sua última frase:
_ Até nunca mais.
Ela ficou ali parada um tempo sem saber o que fazer, olhou para seu próprio corpo pálido e sentia que já não era a mesma pessoa de um dia atrás, não lembrava como fora parar ali, mas agora aquilo era o que menos importava. Sempre fora uma mulher rejeitada por todos principalmente por causa de sua profissão, mas agora isso mudaria, faria com que todos os que lhe fizeram sofrer pagassem cada palavra degradante que dirigiram à ela alguma vez na vida, cada bofetada que levou, cada vez que teve de se humilhar por um pouco de dinheiro ou favor, por cada momento em que procurou misericórdia nas pessoas e não encontrou. Ela tinha conhecido o lado obscuro das pessoas, o “eu” escondido, a face em que os homens pareciam apenas animais. Não conhecia afeto, alegria, tampouco amor, embora tenha procurado e almejado tudo isso desesperadamente; mendigado até, em busca de tais sentimentos, mas na verdade ela vivia num nível mais baixo de existência, um nível em que as pessoas não davam o benefício de um olhar mais afetuoso ou um sorriso mais acalentador. Simona sempre fora usada como um objeto, mas ela enxergava naquela noite que tudo aquilo ia mudar drasticamente.
Daria o troco mesmo sabendo que se tornaria um monstro e que isso era uma coisa irremediavelmente sem volta.