Não!

Fábio despertou sobressaltado. Que lugar era este onde estava? Ele não conseguia se lembrar daquelas paredes de pedra exposta, do teto altíssimo de tábuas rústicas ou da escadaria também de madeira que percebia pelo canto dos olhos. E também não se lembrava de como chegara até ali. Muito surpreso, ele percebeu que apesar do ambiente estar bastante escuro sua visão detectava mesmo assim até os menores detalhes de tudo que o cercava. A rugosidade das pedras, cada fenda nas tábuas do teto e das escadas, a poeira acumulada no chão, as teias de aranha nos cantos, tudo parecia irrealmente nítido para seus olhos. Ele podia sentir o cheiro dos ratos escondidos e até mesmo ouvir os passinhos ásperos e rápidos dos insetos que se esgueiravam pelos cantos. Isto não estava certo, alguma coisa muito estranha estava acontecendo com ele!

Assustado Fábio se levantou, pois estava deitado no chão, nu, bem junto a uma parede fria e úmida no fundo do aposento onde se encontrava, e percebeu que não conseguia sentir direito seu corpo, como se tivesse sido anestesiado. O estômago ardia como se estivesse pegando fogo, e ele se sentia cansado e quase sem forças. Sendo um estudante de medicina ele sabia que algumas substâncias analgésicas ou alucinógenas podiam causar sensações semelhantes às que ele estava sentindo e por isso concluiu que havia sido drogado. Devia ter sido vítima do golpe “boa noite Cinderela”.

Assim que esta idéia passou por sua cabeça, contudo, ele sentiu algo mais em sua mente, uma ironia profunda e selvagem, assim como uma certeza absoluta de que não era nada disso. Estes pensamentos eram estranhos e perturbadores, pois vinham de uma parte de sua mente que parecia não lhe pertencer, e isso o deixou ainda mais assustado do que ele já estava. Realmente apavorado Fábio recostou-se na parede e fechou os olhos, tentando evitar a completa perda do seu juízo.

E enquanto ele tentava organizar seus pensamentos e raciocinar mais claramente um rangido surdo vindo do alto da escada chamou sua atenção. Uma grossa porta de madeira apodrecida se abriu, e a criatura que entrou por ela fez sua cabeça girar de pavor. Aquilo provavelmente havia sido um homem algum dia, mas agora estava tão horrendamente deformado e coberto por tantos ferimentos de aspecto gangrenado que se lhe perguntassem ele diria tratar-se de um zumbi. A criatura olhava para ele com um brilho doentio e louco nos olhos avermelhados, e de alguma forma Fábio teve certeza de que aquela coisa nutria um ódio profundo por ele. Mas logo atrás do monstro atravessou a porta outra figura, que o fez esquecer imediatamente daquela coisa horrenda que o assustara e o deixou completamente aturdido. Ela era pequena, mal chegava a um metro e sessenta de altura, com cabelos loiros e um corpo esbelto e bem delineado perceptível através do comprido vestido justo de mangas longas que usava, feito de um tecido grosso e escuro. Apesar da palidez cadavérica seu rosto muito jovem era bonito, com feições delicadas e olhos de um negro tão profundo que pareciam um céu noturno sem estrelas. Fábio podia lembrar vagamente de já ter conhecido moças ainda mais bonitas do que ela, mas a atração que sentiu ao vê-la era tamanha que agora parecia jamais ter existido nenhuma outra mulher em todo o mundo.

- Ah, que bom que você já acordou, - disse a jovem com uma voz calma e melodiosa que parecia vir de dentro dele mesmo – eu estava ansiosa por vê-lo desperto novamente.

- Quem é você? – Perguntou Fábio de maneira um tanto óbvia.

- Meu nome é Karina. Eu transformei você, e de agora em diante você será meu companheiro. – Disse a estranha com uma naturalidade que para Fábio pareceu completamente deslocada. – E este é Groucho, - disse ela se referindo displicentemente ao zumbi – ou pelo menos eu o chamo assim, e ele agora é meu servo.

Fábio percebeu o ódio crescendo dentro da criatura encurvada e asquerosa ao lado da jovem, mas notou também que não estava mais assustado com ela pois a presença de Karina de alguma forma lhe dava uma confiança que ele não podia imaginar de onde vinha. A jovem havia dito que o havia transformado, mas ele não conseguia atinar sobre o que ela estava falando e perguntou ansioso.

- Você disse que me transformou? O que quis dizer com isso?

- Ora, eu o transformei em um vampiro igual a mim. Assim como fiz com o Groucho aqui também, anos atrás. – Respondeu ela novamente com uma naturalidade que não deveria apresentar. – Desta noite em diante nós vamos ficar juntos, para sempre.

-O quê? – Exclamou Fábio, agora achando tudo aquilo ridículo. – Que história maluca é essa? O que foi que você me deu? E para onde me trouxe?

- Ai, ai, - lamentou-se Karina, entediada – isto é tão chato! Agora tenho que provar que falo a verdade, mesmo você já tendo visto o Groucho aqui. Não dá para perceber que ele não é mais humano?

Fábio tinha que concordar que o aspecto daquela coisa era muito pouco parecido com o de um ser humano. E de alguma forma ele sabia que tudo o que ela dizia era verdade, esta certeza absurda brotava do fundo do seu ser. Sua mente racional, contudo, ainda lhe dizia que aquela história era ridícula, embora no fundo do seu espírito ele pudesse perceber que ela estava sendo totalmente sincera.

- Como aconteceu, como cheguei aqui?

- Ora, eu o segui até o estacionamento quando saiu da faculdade no início da noite na última segunda feira, e lá tomei a sua mente e o fiz dirigir até aqui. Então me alimentei do seu sangue e pouco antes de você morrer cumpri o ritual, e agora você é meu. Veja, desde que meu mestre e meus antigos companheiros foram destruídos eu estava muito sozinha, e fiquei escondida por muito tempo. Você não tem idéia de como décadas e décadas de absoluta solidão podem ser horríveis. Quando finalmente me senti mais segura eu saí, e transformei o Groucho para que me fizesse companhia. Mas eu não sabia como escolher direito e acabou não dando muito certo com ele, então eu tinha que escolher outro companheiro que eu gostasse mais de ter comigo.

- Eu não entendo, você está dizendo que transformou esta coisa também, e que eu vou acabar igual a ele? – Perguntou Fábio realmente incomodado com a perspectiva de virar um monstro como aquele.

- Ah, espero mesmo que não! Quando eu escolhi esta “coisa” a qual você se refere ele era um lindo rapaz, simpático, extrovertido e ativo, e eu era inexperiente e não entendia bem o que a transformação causa à mente da pessoa que é transformada. A personalidade exuberante que ele tinha, que eu achei tão atraente quando ainda vivia, acabou se transformando em total falta de controle. Ele vive se desgastando em caçadas descuidadas, e acabou com este aspecto ridículo. Mas acho que o mesmo não vai acontecer contigo, você é bem diferente, calmo, pacífico, controlado. Basta tomar cuidado e nunca precisará ficar como Groucho.

Fábio pôde perceber nitidamente que o vampiro deformado sentiu-se profundamente triste com os comentários da Karina, e surpreendeu-se ao perceber que sentia uma pontada de pena dele.

- Você está dizendo que ele está assim porque quer? Não acredito nisso, ninguém em sã consciência iria querer ficar assim. – E logo ao dizer isso lhe ocorreu que ele não tinha nenhuma garantia de que o tal Groucho estivesse de fato em sã consciência. Mas mesmo assim sua dúvida se mantinha, era possível evitar ficar daquele jeito, caso realmente tivesse sido transformado em um vampiro como Karina afirmava e ele sentia?

- Veja, - começou ela a explicar – nossos corpos estão mortos, e isso tem algumas implicações. Nossos sentidos são muito apurados e nós somos capazes de concentrar uma força muito maior que as pessoas normais, além de não podermos morrer em decorrência de ferimentos comuns que matariam facilmente um ser humano. Mas por outro lado nossa cicatrização é muito lenta, um pequeno corte que em um humano vivo estaria curado em uma ou duas semanas conosco pode levar meses ou até anos para desaparecer. Como não sentimos dor é fácil sofrermos ferimentos sem nem mesmo percebermos, como os leprosos, e se deixarmos estes ferimentos se acumularem, bem, o Groucho aqui dá uma boa idéia do que pode acontecer. Por isso me visto deste jeito, com estes vestidos que me cobrem e protegem todo o corpo. Não é porque gosto de moda gótica, mas para evitar ao máximo possível me desgastar. Você também irá se vestir assim, suas novas roupas já estão prontas lá em cima, no nosso quarto.

Fábio tentava raciocinar sobre tudo o que ela dizia mas a fraqueza que sentia e o forte ardor no estômago estavam tornando difícil se concentrar. Ele não estava se sentindo nada bem e esta mania da vampira em dizer que ele agora pertencia a ela e seria seu companheiro não ajudava em nada. Era verdade que ele sentia uma atração irracional e quase irresistível por ela, mas daí a ela já considerá-lo como seu companheiro ia uma distância muito grande. Afinal, ele sabia que já tinha uma garota, e sentia que gostava muito dela embora agora não conseguisse lembrar de seu nome, ou rosto, na verdade de nada sobre ela, por mais esforço que fizesse.

- Que história é essa de nosso quarto? – Perguntou Fábio em um protesto que soou mais débil do que ele gostaria. Ele se concentrou para que sua voz saísse mais firme e insistiu: - Quem lhe deu o direito de decidir que nós seremos companheiros ou qualquer coisa que seja? Eu vou é sair daqui e voltar para minha casa, esta história toda já está me cansando e...

- Você sabe perfeitamente que não fará isso. – Disse Karina de forma peremptória, não deixando que ele concluísse a frase – Eu o acompanhei por quase um ano sem que você soubesse antes de finalmente transformá-lo, e agora que o transformei você não tem mais escolha. Sua mente está ligada à minha, sua vontade não é mais livre, e sua casa agora é aqui comigo. Sua fome o está deixando fraco e confuso e por isso você ainda não percebeu sua nova situação, mas assim que você se alimentar tudo ficará claro. Groucho, vá buscá-la! – ordenou ela então ao outro vampiro.

Enquanto o servo de Karina subia obedientemente as escadas e saía do aposento Fábio percebeu que algo terrivelmente ruim estava para acontecer, mas a dor em seu estômago agora era tão forte que ele tinha dificuldade em se concentrar para tentar imaginar o que seria. Ele colocou a mão sobre o abdômen e dobrou o corpo, mas o fogo que parecia queimar suas vísceras não se abrandou nem um pouco com seus esforços. Fábio começou a gemer, e novamente sentiu sua mente inundada por uma sentimento de urgência autoritária que agora ele sabia vir de Karina e ser dirigido ao pobre Groucho. Realmente havia alguma ligação entre a mente deles três, e a vampira era a fonte desta ligação. Mas a dor de estômago que parecia aumentar a cada momento não deixava que ele tentasse explorar melhor esta conexão. O que diabos havia de errado com ele afinal?

- Esta dor que você está sentindo é fome. – Disse ela, sabendo que ele precisava de uma explicação mesmo sem ter perguntado coisa alguma em voz alta. Seu corpo gastou toda a energia que tinha durante os três dias que durou sua transformação, e agora é preciso repô-la. Você precisa de sangue, e já vai tê-lo, não se preocupe.

Fábio sentiu-se enregelar por dentro, pois ele sabia o que Karina estava dizendo. Se ele realmente tivesse sido transformado em um vampiro ele precisava beber sangue para aplacar seu sofrimento, e ela já havia providenciado uma vítima para fornecê-lo. Era isso que Groucho havia saído para buscar. Para seu horror ele percebeu que o simples fato de pensar em sangue já fazia sua boca salivar e um formigamento agradável surgir em seu interior, mitigando o ardor em seu estômago. Com um susto enorme ele percebeu que seus dentes caninos estavam se esticando para fora, saindo dos alvéolos e escapando por entre os seus lábios ressequidos e sedentos. Era realmente de sangue que ele precisava, mas esta idéia ao mesmo tempo que o seduzia também o horrorizava. Ele podia pressentir que, na situação em que estava, assim que começasse a beber sangue não conseguiria parar até que não houvesse mais nenhum disponível. Se sua fome não fosse tão grande e seu estado não estivesse tão debilitado talvez até fosse possível se controlar, mas neste momento isto seria impossível e estava claro como cristal que se para obter sangue ele tivesse que sugá-lo de alguma pessoa, esta morreria exangue muito antes dele conseguir parar. E em sua mente ele percebeu que era isso mesmo que Karina queria, que ele matasse alguém e se tornasse um assassino como ela, selando para sempre seu destino e ligando-o de forma inseparável ao da vampira, enquanto eles existissem. Como já havia se passado com Groucho.

Mas isto não podia acontecer. Desde pequeno Fábio sempre foi uma pessoa boa e sensível, e o sofrimento dos outros o incomodava como se fosse o seu próprio. Ele tinha um sentido de empatia altamente desenvolvido e fôra isto que o levara a optar pela carreira da medicina, justamente para poder aliviar o sofrimento dos outros e sempre que possível evitar que viessem a morrer. Sua opção por se tornar médico havia sido justamente pela abnegação em prol da vida, e agora Karina queria que ele fosse a causa da morte de alguém!

Concentrando-se nos pensamentos dela que conseguia perceber ele compreendeu quais eram exatamente seus planos. Ela aprendera com Groucho que devia escolher pessoas que não se deixassem levar pela exaltação dos novos poderes e necessidades da vida vampiresca, e o escolhera exatamente por suas características de personalidade mais comedidas e, por que não dizer, humanas. Mas agora precisava que ele rompesse com sua própria natureza e matasse, para chegar ao perfeito equilíbrio entre homem e monstro que o tornaria o parceiro ideal para ela, já que Groucho havia mostrado ser monstro demais.

Enquanto Fábio se digladiava com sua fome de sangue, com sua consciência e com o fluxo de seus pensamentos misturados aos de Karina, Groucho surgiu no alto da escada arrastando com certa agressividade uma jovem mulher quase morta de pavor, que se debatia furiosamente na tentativa de se libertar das garras do zumbi. Por um momento a mente de Fábio ficou mais leve e ele sentiu nitidamente a vontade da vampira estender-se até a mente da recém chegada e envolvê-la, abafando seus pensamentos próprios e fazendo-a se acalmar em um profundo transe hipnótico. Ele percebeu que fôra assim que Karina o dominara e o trouxera até aquele lugar onde agora estava, e por isso ele não conseguia lembrar-se de nada.

Quando a vítima se acalmou Groucho tomou-a nos braços e desceu com ela as escadas com seus passos cambaleantes, embora persistentes. Fábio sentia que o vampiro deformado também tinha, como ele próprio, interesse pelo cheiro do sangue da mulher. Mas como já havia se alimentado recentemente com o seu sangue, não enfrentava os mesmos problemas que ele em se controlar. O ardor em seu próprio ventre, contudo, estava mais forte do que nunca e ele sentia o desejo pelo sangue da recém-chegada crescendo quase a ponto de sobrepujar todos os seus receios e pudores. Ele não mais via a mulher como uma pessoa e sim como alimento, e não conseguiria se controlar por muito mais tempo. Eram seus últimos momentos de hesitação antes de partir para o ataque.

- Isso, isso meu querido. – Disse Karina. – Você não tem porque se controlar agora, ela está indefesa e não resistirá ao seu ataque. Eu controlo a mente dela, e ela não irá reagir. Alimente-se e poderemos ficar juntos para sempre.

Fábio não podia suportar mais a ânsia por sangue que o possuía e esticando o corpo avançou sobre a mulher inerte e tomou-a de Groucho, segurando-a em seus braços. Jogando a cabeça para trás e abrindo sua boca ao máximo enquanto projetava os caninos para frente, ele estava pronto para a mordida fatal. Karina assistia extasiada, tão ansiosa por ver o novo companheiro que escolhera tornar-se finalmente um vampiro completo que afrouxou por um momento seu controle sobre a mente dele.

E então aconteceu.

Um segundo antes de morder sua vítima Fábio levantou os olhos e fitou o rosto da mulher, e com o controle que Karina exercia sobre ele atenuado ele pôde enfim reconhecê-la. Era Jaqueline, sua noiva!

O choque do reconhecimento varreu a mente de Fábio, deixando-o tão confuso que o controle de Karina desapareceu totalmente e ele lembrou-se de tudo o que lhes acontecera. Ele e Jaqueline estavam entrando em seu carro no estacionamento da faculdade quando Karina dominou a sua mente, paralisando-o totalmente para o espanto da noiva. A vampira entretanto não tinha poder para controlar os dois ao mesmo tempo, e coubera a Groucho subjugar Jaqueline à força. É claro que ela reagiu como lhe foi possível antes de desmaiar, e o horrendo vampiro carregava alguns novos ferimentos abertos por suas unhas e dentes, o que explicava a animosidade dele contra ela. E foi assim que eles chegaram ali, ele dirigindo seu próprio carro com a mente dominada por Karina e sua noiva inerte, carregada por Groucho. E ali ele tivera seu sangue sugado pelos vampiros até quase a morte, e fora transformado em um deles enquanto Jaqueline havia sido preservada até agora para servir como sua primeira vítima. Mas isto não era tudo o que ele se lembrava. Ele também recuperou a memória de toda sua história com Jaqueline, de quando se conheceram, dos momentos que viveram juntos, de como o amor entre eles crescera e dos sonhos que compartilharam. Ele se lembrou do quanto a amava, que queria passar o resto de sua vida com ela, uma vida que ele não possuía mais, mas ela sim. E decidiu que jamais seria a causa da existência dela terminar!

Praticamente sem pensar Fábio apertou Jaqueline contra seu corpo e correu com ela escada acima, antes que Karina pudesse reagir. A vampira ainda se concentrava em manter o transe da jovem e demorou demais para perceber o que estava acontecendo. Antes que ela pudesse fazer qualquer coisa Fábio alcançou o topo da escada e passou pela pesada porta, encontrando a chave na fechadura pelo lado de fora. Rapidamente ele liberou uma das mãos, fechou a porta e a trancou para ganhar tempo. Só então virou-se e percebeu que estava na grande sala de um casarão antigo, com a pintura das paredes de uma cor que já era indefinível e o reboco caído em vários pontos deixando à mostra tijolos bastante velhos. Havia muitas janelas, mas todas estavam cobertas por grossas cortinas de tecido negro e se não fossem seus novos sentidos vampíricos ele não teria podido enxergar o grande portão de folha dupla que ficava em uma das paredes laterais e que deveria ser a saída daquela casa. Com sua noiva nos braços ele correu para lá e chutou a madeira envelhecida com as forças que ainda tinha, fazendo com que os caixilhos se soltassem e ela se abrisse um pouco deixando uma fresta por onde lhe foi possível se esgueirar. Enquanto isso, Karina se refazia da surpresa no porão e abandonava o controle da mente de Jaqueline para dominar a dos dois vampiros que ela havia transformado. Mas por um momento ela não conseguiu decidir qual dos dois devia controlar, Fábio ou Groucho, pois não era capaz de manter o controle total de ambos ao mesmo tempo. E isto deu ao estudante de medicina mais alguns segundos para escapar.

Já do lado de fora da casa Fábio descobriu que era uma noite estrelada e encontrou um estreito caminho de pedras que levava da varanda arruinada até uma estrada de terra, uns cinqüenta metros à frente. Com Jaqueline já despertando em seus braços ele correu até lá e por nenhum motivo particular escolheu a direção à direita para fugir o mais depressa que pôde do horror que ficara para trás. Neste momento a vampira decidiu que antes de mais nada precisava sair do porão e mandou que Groucho arrombasse a pesada porta, feita de madeira muito mais grossa que a da entrada, a qual Fábio já arrombara. Isto levou alguns instantes, e quando finalmente conseguiram sair os dois vampiros descobriram que o rapaz e sua noiva já tinham quase um quilômetro de vantagem.

Karina ordenou que seu servo fosse atrás deles enquanto tentava utilizar seus poderes hipnóticos para parar o fugitivo, e o zumbi obedeceu imediatamente. Fábio estava fraco, sentia terríveis dores no estômago e embora corresse bem mais rápido que um ser humano normal com certeza não podia correr tão rápido quanto um vampiro bem alimentado. Com a pressão mental de Karina sua velocidade se reduziu ainda mais, embora naquela distância o controle dela sobre ele não fosse capaz de fazê-lo parar totalmente. Porém Groucho, cujo verdadeiro nome havia um dia sido Felipe, também não estava na melhor forma possível devido ao enorme acúmulo de ferimentos que sofrera desde que fôra transformado, e sua velocidade também não era a maior possível. Mas ainda assim ele poderia ter alcançado Fábio em pouco tempo, se realmente quisesse. Só que este não era exatamente o caso. Apesar de saber que Karina jamais iria considerá-lo seriamente como um companheiro devido ao seu estado lastimável, e dela ter-lhe dado seu apelido infame para lembrá-lo de como o achava grotesco e ridículo, ele não podia deixar de sentir uma forte atração por ela e não estava nem um pouco satisfeito em imaginá-la tendo Fábio ao seu lado. Por ele o outro podia fugir levando sua noiva e nunca mais voltar, e por isso sua velocidade era bem menor do que poderia realmente ser. E assim a distância entre o perseguidor e seus perseguidos aumentava ao invés de diminuir.

Karina notou o que estava acontecendo e soltou um urro de ódio. Ela concentrou-se em Groucho, controlando sua vontade e obrigando-o a correr mais rápido, mas com isso sua influência sobre Fábio se arrefeceu e apesar das dificuldades o rapaz conseguiu aumentar sua velocidade. A distância da perseguição parou de crescer, mas não diminuiu, e logo a vampira percebeu que aquilo seria inútil. Por hora Fábio havia escapado dela.

Mas o jogo ainda não estava terminado. O dia logo iria amanhecer e embora Fábio ainda não soubesse ele seria obrigado a se esconder do sol para não ser destruído por seus raios. E na noite seguinte Karina e Groucho poderiam encontrá-lo facilmente, já que ele não teria para onde ir. Ele agora era um deles, e não podia voltar para sua família nem procurar abrigo junto a nenhum outro grupo humano. É verdade que ao contrário dos planos da vampira a namorada do rapaz provavelmente escaparia com vida e contaria sua história para outras pessoas que acabariam por vir até o abrigo deles na tentativa de encontrar Fábio. Mas Karina não se preocupava muito com isso, pois de qualquer forma já planejava encontrar um esconderijo melhor onde pudesse viver mais confortavelmente com seu novo companheiro e seus planos seriam apenas acelerados. Ela reconhecia agora que havia sido um erro tentar aproveitar as circunstâncias convenientes e usar Jaqueline como a primeira vítima de Fábio, e já havia decidido encontrar outra pessoa para oferecer a ele na próxima noite, alguém a quem ele não se sentisse tão ligado. Mas para isso tinha primeiro que garantir a sobrevivência dele até lá.

Ainda correndo com Jaqueline já desperta e muito assustada em seus braços o rapaz chegou em um ponto da estrada de terra no qual ela se encontrava com uma pista de asfalto, que descia de um conjunto de morros cobertos por mata fechada à direita e atravessava um pequeno riacho por uma ponte de madeira. Ele reconheceu o local, esta era a estrada que vinha de Guaratiba e chegava até a praia do Grumari, no final do Recreio dos Bandeirantes. A casa dos vampiros devia ser a sede de algum antigo sítio ou fazenda que fora abandonado quando a região tornou-se uma reserva ambiental, muitos anos atrás. Concentrando-se por um momento ele percebeu que Groucho ainda vinha atrás deles, pois Karina ainda não havia mudado suas ordens, e Fábio decidiu seguir à esquerda pelo asfalto o que o levaria à estrada na beira da praia.

Logo após dar alguns passos, contudo, ele parou, sentindo sua mente ser novamente invadida pela vontade de Karina. Mas desta vez ela não tentava controlá-lo, apenas lhe passava uma mensagem que parecia vir do seu próprio inconsciente, como palavras sussurradas ao seu ouvido que ele podia perceber nitidamente apesar do cansaço e da terrível dor em suas entranhas: “Você precisa se esconder, ou os raios do sol irão queimá-lo até a morte. Não vou persegui-lo mais esta noite e sua noiva está livre para ir embora, mas encontre um lugar escuro para passar o dia”. E ao mesmo tempo em que recebia esta mensagem ele percebeu nitidamente que a atenção de Groucho foi desviada, e agora o vampiro deformado não pensava mais nele e sim em voltar para seu esconderijo e para junto de sua senhora. Karina estava cumprindo sua promessa.

Fábio sentiu um enorme alívio por Jaqueline. Ela estava salva e poderia viver a vida que ele um dia desejou compartilhar. Delicadamente ele a colocou de pé no asfalto da estrada e caiu de joelhos gemendo, vencido pela fraqueza e pelo ardor insuportável no estômago. Sua namorada abaixou-se e o abraçou, perguntando o que estava acontecendo. Ela ainda estava extremamente confusa, não sendo capaz de compreender a aventura pela qual havia passado e muito menos o estado do seu amado. Com um enorme esforço Fábio levantou-se novamente e passou o braço sobre os ombros dela, e incapaz de dizer qualquer palavra começou a caminhar lentamente pela estrada pensando nas palavras da última mensagem de Karina. Jaqueline o acompanhou também calada, amparando-o como pôde e ainda com esperanças de que ambos poderiam voltar para casa e retomar suas vidas, como se os acontecimentos dos últimos dias tivessem sido apenas um terrível pesadelo.

Alguns minutos depois os dois chegavam à beira da praia e também ao limite das forças de Fábio. Ele agora se sentia tão enfraquecido que seus sentidos, antes supersensíveis, estavam rapidamente se embotando como se ele estivesse morrendo. De certa forma isto era um alívio, pois seu olfato não percebia mais o odor do sangue de Jaqueline e assim ele sentia diminuir a compulsão para atacá-la em busca de alimento, que até aqui tivera que lutar constantemente para controlar. Saindo da estrada ele a levou até a areia em frente ao mar e sentou-se, agarrando o estômago que agora doía de forma quase insuportável e gemendo alto. Sua namorada abaixou-se e colocou os braços a sua volta carinhosamente, preocupada com seu visível sofrimento.

- Fábio, você está bem? – Perguntou a moça em voz baixa e muito assustada. – Estou com medo de ficar aqui, aquela coisa pode nos encontrar se ficarmos parados. Você não pode andar?

- Não se preocupe mais com ele. – Fábio respondeu em um sussurro quase inaudível entre seus gemidos. – Ele não vai te incomodar nunca mais. Mas você precisa ir embora. Siga pela estrada, em breve irá amanhecer e com certeza algum carro vai passar e te ajudar. Eu não tenho mais para onde ir, e vou ficar aqui.

- Como assim, ficar aqui? Você está muito mal, sua pele está gelada e esta dor em seu estômago deve ser de algum ferimento interno. Você precisa ir para um hospital, e rápido!

- Eu não tenho mais forças para andar Jaqueline, e ainda que tivesse isto não adiantaria nada, ninguém mais pode me ajudar agora. E mesmo que alguém pudesse eu não iria querer esta ajuda. Eu não posso mais ficar com você, meu amor, e não quero mais ficar nem comigo mesmo. – E dizendo isso ele baixou a cabeça, e descobriu que um vampiro não tem lágrimas para chorar.

Jaqueline percebeu que seu namorado não iria mesmo se levantar mais e um princípio de desespero quase a dominou. Era óbvio que ele estava ferido e sem ajuda médica provavelmente morreria do ferimento que estava causando sua fraqueza e a dor em seu estômago. Ela não queria abandoná-lo, mas se ficasse ali com ele ao invés de ir procurar ajuda certamente Fábio morreria antes que ambos fossem encontrados. Se ela partisse as chances dele aumentavam e isso a fez tomar sua decisão.

- Se você não pode andar então eu vou buscar ajuda. – Declarou Jaqueline juntando a coragem que lhe restava. - Esta estrada tem que levar até algum lugar habitado e eu vou encontrar alguém para vir te ajudar. Prometa que vai ficar aqui, visível da estrada, e se algum carro passar você vai pedir ajuda. Eu vou tentar chegar até alguma casa, uma barraca de sanduíches, qualquer coisa. – E dizendo isso ela lhe deu um longo beijo no rosto e se levantou, partindo de volta à estrada com o passo mais acelerado que conseguiu. Fábio ficou observando-a partir sabendo que nunca mais se veriam e naquele momento desejou que o sol nascesse logo e tudo acabasse de uma vez.

Ele continuou sentado, vencido pela dor e pela fraqueza intensa, mas não teve que esperar muito tempo. Em poucos minutos o horizonte ao longe começou a clarear, e logo uma forte luminosidade surgiu vermelha no céu praticamente sem nuvens, anunciando a alvorada. Quando os raios do sol nascente tocaram sua pele Fábio sentiu apenas um ligeiro formigamento ao invés da dor atroz que imaginava iria sentir. Ele levantou sua mão e ainda conseguiu observar apenas com uma curiosidade distante a sua pele, carne, unhas e até mesmo os ossos se dissolvendo em vapor e numa poeira acinzentada finíssima, que a brisa do mar dissipava imediatamente. E então seus olhos deixaram de funcionar, e ele ficou no escuro. A dor em seu estômago foi desaparecendo aos poucos enquanto Fábio se dissolvia, e nos seus últimos segundos de consciência ele pensou em seu destino, em como lhe havia sido oferecida a vida eterna mas com a exigência de que em troca que ele renunciasse a tudo o que ele era e ao que mais queria nesta vida, o amor de Jaqueline.

Só havia uma resposta que ele podia dar a esta oferta. E esta resposta era não!

Leandro G Card
Enviado por Leandro G Card em 31/12/2009
Reeditado em 17/03/2023
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