APARÊNCIAS
Acordei com um chute violento desferido pelo policial, não há maneira pior de ser despertado. Senti que a potência do golpe causara danos a algumas costelas, um gosto de sangue invadiu minha boca. Fui agarrado pelos cabelos para em seguida ser atirado novamente no chão barrento. Era difícil acertar o pensamento, minha mente estava tão nublada quanto o céu cinzento sobre nossas cabeças. Senti o gosto da graxa e couro, deixei meu sangue no coturno do homem da lei, usei a palma da mão para limpar o filete que escorria em meus lábios.
Fui erguido do chão e jogado na viatura sob xingamentos, eles me chamavam de assassino, diziam que eu morreria na cadeia. Meu corpo estava lavado em vermelho, era um sangue que não me pertencia. Vi um veículo, uma caminhonete, estava com o vidro da janela correspondente ao lado do motorista completamente estilhaçado, a porta estava aberta. Lembro de ter visto um casal, sim, havia um casal, namorados provavelmente, aproveitando a quietude de um recanto afastado. Mas, eu não conseguia lembrar de mais nada, tudo estava confuso, foi quando ouvi um dos homens gritar que havia encontrado algo, ele estava distante, saía de um matagal. “Duas cabeças”, gritava. Foi o suficiente para que o soldado que me vigiava fizesse uso do punho cerrado para trazer trevas à minha visão.
A água fria despejada em meu rosto trouxe-me de volta à realidade mais uma vez. Olhei ao redor e percebi que estava jogado numa sala empoeirada, dois sujeitos com aspecto de poucos amigos me encaravam. O que estava com o balde nas mãos proferiu uma ordem para que eu tomasse assento na cadeira postada em um dos cantos, obviamente não questionei tal imposição, afinal, meu corpo já sofria com o castigo imposto sem que eu tivesse emitido uma só palavra.
Fazendo uso de técnicas de intimidação e mostrando pouca paciência, a dupla de policiais tentava a todo custo obter uma confissão que atribuísse a mim a responsabilidade sobre o suposto assassinado do casal encontrado no matagal. Não os culpo por isso, pois fui encontrado inconsciente a poucos metros do local do crime, coberto de sangue, provavelmente das vítimas, e por conta disso juro que assumiria de bom grado a culpa, afinal nunca fui uma pessoa adepta à violência, jamais constituí uma inimizade em minha vida, sempre acreditei na justiça e na verdade dos fatos, o problema é que eu não lembrava de nada acerca da noite anterior, portanto não poderia absorver esse débito baseado apenas em aparências.
Eles não se conformavam com a minha atitude, muito menos acreditavam na ausência de lembrança que eu alegava. O ódio era visível no olhar que me lançavam, mas eu estava sendo sincero em minha afirmações e torcia para que o bom senso prevalecesse naqueles homens. Fui deixado sozinho na saleta.
Não sei se era sorte ou azar o fato de estarmos em pleno final de semana, as características próprias de uma cidade pequena indicavam que apenas no próximo dia útil os processos investigativos e periciais teriam início, com isso eu teria tempo para divagar sobre o que realmente havia acontecido, o problema consistia em ter de passar a noite na cadeia sem a proteção involuntária do conhecimento coletivo, não era raro ouvir histórias preocupantes sobre vingança e justiça com as próprias mãos.
O dia passou e eu segui enclausurado e esquecido entre as paredes frias daquela sala de interrogatório, com as manchas vermelhas e ressecadas no corpo, sem direito a um copo d’água. Por entre as barras de ferro, que lacravam a entrada de ar na parede, pude enxergar os últimos raios de um sol vermelho que se escondia atrás dos morros, não tardou para que a noite esticasse seu longo e escuro abraço.
Um policial surgiu de maneira abrupta, esperei pelo pior, entretanto ele apenas ordenou para que eu ficasse de pé. Achei que seria tratado de maneira respeitosa, enganei-me redondamente. Fui golpeado no estômago pelo cacetete que o homem trazia na mão, arqueei o corpo tamanha a dor que sentia, fui agarrado pelos cabelos e arrastado pelo corredor.
Uma cela já estava aberta à minha espera, um outro policial mantinha-se de pé, vigilante. Em poucos instantes eu batia com as costas no chão gelado do cubículo. As grades foram lacradas por um pesado cadeado, ergui a cabeça e notei mais três outros presos dividindo comigo o mesmo espaço. Aquilo não fazia o menor sentido para mim. Eles mantinham uma certa distância, como se estivessem instruídos para tal.
Como no outro cômodo, a cela ostentava um vão na parede, transpassado por três barras de ferro, era possível perceber o céu através dele, mas não era viável vislumbrar o chão, pois a altura impedia qualquer investida nesse sentido. Pelo menos permitia que o ar noturno entrasse e circulasse trazendo um pouco de alívio ao clima pesado e sombrio daquele lugar.
As horas passaram, permaneci no mesmo canto, olhando para o céu e tentando trazer luz à minha mente, foi quando tudo se apagou, todo o pavimento das celas estava entregue às trevas, olhei para os detentos que se amontoavam na beliche, parecia que eram sabedores do que estava por vir.
Fortes pancadas sacudiram as grades de ferro, encolhi-me mais ainda no canto, era um pesadelo, um terrível e real pesadelo. Escutei o ranger que caracterizava a abertura da cela, logo fui vítima de um verdadeiro massacre. Por mais que eu tentasse me proteger, não havia como evitar a sucessão de golpes, a dor era insuportável, novamente o gosto de sangue preenchia minha boca, senti que alguns dentes voaram, a morte era questão de tempo.
Apesar da dor indescritível que me assolava, de toda a violência a que era submetido, minha maior preocupação se voltava para um outro ponto, o ardor crescente que começara em meu estômago e se espalhava rapidamente por todo o corpo. Não era nada relacionado aos impiedosos golpes que destruíam completamente meu corpo, era algo diferente, indomável.
A essa altura eu mal sentia as pancadas, estava totalmente entorpecido e é até estranho dizer, mas me sentia mais forte. Olhei para o céu, mas ao invés de perceber as trevas completas que até então tomavam conta da minha visão, enxerguei os detalhes de uma noite estrelada e clara. De repente um turbilhão tomou conta de mim, mil imagens se esparramavam em minha mente, as lembranças estavam de volta, unidas e limpas, sacudindo minha razão, causando-me desespero.
A culpa era minha! Meu Deus, a culpa era minha! A ignorância acerca desse fato maldito, isso sempre ocorria, a amnésia só me abandonava quando já era tarde demais. Não! Eu precisava fazer alguma coisa! Eles não sabiam o perigo que corriam.
Gritei para que fugissem! Implorei para que me deixassem sair! Não me ouviram, não me ajudaram a poupar suas vidas. Minha visão ficava cada vez mais turva, minhas palavras já não faziam sentido. Nada mais importava. Só o olhar apavorado, que agora eu enxergava claramente, estampado em seus rostos quando perceberam o que acontecia. O cheiro do medo invadindo minhas narinas, que cheiro delicioso...
Acordei com o sol queimando meu rosto, que dor de cabeça. Demorei a encaixar o raciocínio, eu estava num matagal, nos fundos de uma fazenda. Onde estavam minhas roupas? Como eu havia parado nesse lugar? As lembranças me faltavam...
Banhei-me num córrego próximo, a fim de livrar meu corpo das manchas vermelhas e ressequidas que se espalhavam em toda parte. Avistei um fio que se estendia por uma vasta área na parte de trás da residência, a armação ostentava várias peças de roupa. Venci a distância até lá, escolhi algumas que julguei adequarem-se a mim e fugi.
Durante a fuga deparei-me com pedaços de animais destroçados; galinhas, cabritos, porcos, não sei, eram muitos. Sangue e carne despedaçada por toda parte, os urubus se refestelavam com as sobras daquela matança. Era estranho, mas não percebi uma só pessoa nas cercanias da propriedade.
Cheguei ao centro comercial da cidade, uma multidão se aglomerava na porta da delegacia. Percebi inúmeras viaturas oficiais, ambulâncias, serviço de remoção de corpos. Além da imprensa local, era possível perceber, também, representantes das grandes redes da capital. Muitas pessoas choravam e gritavam de maneira desesperada. Meu Deus! O que teria acontecido?
Aproximei-me o máximo que pude, um cordão de isolamento havia sido estabelecido. Perguntei a um popular o que havia ocorrido, o rapaz me disse que um grande massacre havia acontecido na delegacia, não havia nenhum sobrevivente, fosse preso ou policial. O interior do prédio estava lavado em sangue, com pedaços de corpos para todo lado. Lembrei da visão há pouco na fazenda.
Em que mundo estamos? Quem teria feito isso? Eu estava coberto de sangue...
Não, sempre fui uma pessoa correta, não, eu não seria capaz de uma atrocidade dessas...
Mas, eu não me lembro de nada...
Não, não posso assumir uma culpa apenas pelas aparências...
Este é o último texto do ciclo "Contos da Lua Cheia", que referem-se a figura do lobisomem ( pelo menos por enquanto ).
Confiram os outros textos dessa sequência:
"DOR SEM FIM"
"ACORRENTADA"
"BELEZA DIVIDIDA"
"DILEMA"
"LEMBRANÇAS DA FERA"
Abraços,