DOR SEM FIM
Eu mal conseguia manter-me de pé. A visão turva e os passos cambaleantes tornaram-se constantes nos últimos dias, resultado direto das viagens freqüentes ao inferno submerso na companhia do demônio etílico, válvula de escape para minhas frustrações.
Fui praticamente arrastado para fora do bar, relutei em sair, não estava satisfeito com a idéia de abandonar o meu refúgio, mas o dono do estabelecimento, um misto de agenciador maldito e portador de milagres para desafortunados, insistia que precisava lacrar as portas da minha perdição, afinal as luzes de um novo dia estavam prestes a surgir. Saí, mas não sem levar uma garrafa comigo, meu organismo clamava por mais, necessitava de novos açoites do álcool.
Eu quase não sentia mais a ardência do líquido enquanto este percorria o caminho que lhe era destinado, era possível que àquela altura a repetição do ato fizesse mais efeito do que a bebida propriamente dita. Não importava. A única coisa que fazia sentido era apertar bem o pescoço daquelas lembranças malditas que tanto doíam em meu peito, e afundá-las cada vez mais nas garrafas de whisky até que parassem de respirar, trazendo-me a paz que meu coração e minha alma tanto necessitavam.
Ela havia me abandonado, assim, simplesmente. Juntou suas coisas e foi embora, depois de tantos anos juntos. Talvez tivesse sido, de fato, minha culpa. Não, não por causa da bebida como pode parecer, esta só veio a fazer parte da minha vida justamente para preencher o vazio que essa ausência me faz. O mais provável é que a minha culpa corresponda ao absentismo doméstico causado pelas garras dominantes do trabalho.
Não houve conversa, nem argumentos, não tive sensibilidade para perceber o problema, muito menos oportunidade para repará-lo, se é que a causa para sua partida fora realmente esta que especulo. Mas, isso também não vem ao caso, o que importa é que deixei uma lacuna em aberto, e o que ela me disse ao ir embora leva a crer que esse espaço já fora preenchido. De acordo com suas palavras, ela havia se deparado com “um outro alguém”, e partir seria o melhor a fazer, visto que “não queria me machucar”. Como ela pode entender de dor sem saber o que ocorre comigo agora? Como ela pode querer o meu bem se faz isso comigo? Olhem para mim, sou um farrapo humano, uma sombra distante do que um dia já fui.
Continuei meu andar trôpego pelo final de madrugada, um estranho senso de direção parece guiar a todos os alcoólatras, só isso para justificar a maneira como consigo distinguir o percurso até minha residência mediante tamanha mistura de tons e borrões desconexos. Quando cheguei próximo ao que julguei ser o Parque Central, pensei ter atingido o ápice da minha embriaguez, pois o que vi, ou imaginei ver, desafiava todas as regras da lógica.
Por puro reflexo saquei a arma que há muito jazia no coldre, embora eu estivesse mergulhado até o pescoço no mar etílico, as reações inerentes à minha profissão, atividade essa que tanto me consumira ao longo dos anos, mostraram-se inalteradas. Era possível que a descarga súbita de adrenalina na corrente sangüínea tivesse me deixado mais atento e lúcido.
Uma mulher gritava ensandecida enquanto algo grande e robusto a atacava, era possível distinguir os filetes rubros em sua pele, mesmo com as trevas da madrugada ainda dominando o cenário. A imagem da minha esposa tomou-me de assalto, senti um aperto no coração, certamente uma aflição resultante da cena que se desenrolava diante de meus olhos. Era preciso ajudar aquela mulher, eu devia fazer alguma coisa.
Apertei o gatilho da pistola, um disparo que tive como certo revelou-se totalmente equivocado, não atingi o alvo e nada consegui, além de chamar a atenção da criatura. Seu olhar cruzou com o meu e percebi o ódio vivo, um instinto primitivo e cru. Entendi que ela não descansaria enquanto não acertasse as contas com aquele que a desafiara, interrompendo o momento sagrado da refeição.
Estava claro e evidente que eu seria atacado, mas algo inusitado ocorreu, potentes luzes foram projetadas em sua direção, ouvi disparos, uma espécie de rede cruzou o ar, mas não conseguiu aprisionar o ser que fugiu embrenhando-se por entre as árvores do parque.
A essa altura eu suava frio, meu coração parecia querer saltar do peito, até o gosto amargo da boca havia desaparecido. Olhei para o veículo que lançava os holofotes, não reconheci a instituição, não havia nenhuma referência na lataria da viatura, apenas o negro absoluto. A placa era muda, mas a experiência me dizia que o amadorismo passava longe dali. Pensei em me identificar, entretanto o bom senso desfez esse pensamento. O sol já anunciava seus primeiros raios, o melhor seria retornar para casa.
Enquanto caminhava, um sentimento que já me visitara antes parecia crescer e dominar cada vez mais minha vontade. Um desejo incontrolável de dar um basta em tudo, de cessar de uma vez por todas com o sofrimento avassalador que me torturava a alma. Afinal, não havia mais razão para viver mesmo. A pessoa que trazia sentido à minha vida resolvera me abandonar, alguns conseguem fazer uso do trabalho para esquecer decepções. Mas como tirar proveito de uma rotina enraizada na violência? O álcool me mataria aos poucos de qualquer forma...então seria melhor e mais rápido enfiar logo uma bala na cabeça...
Além do mais, a mensagem que li nos olhos daquela criatura prometia uma morte terrivelmente dolorosa...meus dias estavam contados...
Cheguei em casa, mas não cruzei a porta. Permaneci sentado nos degraus, de costas para a varanda, divagando acerca do meu destino. Tudo estava claro, o álcool já não exercia tanta influência, encostei levemente o cano da pistola na cabeça. Posicionei o dedo indicador nas ranhuras do gatilho, iniciei uma oração, julguei estar pronto.
Inspirei fundo o ar da manhã, não haveria hesitação, mas fui impedido por um toque repentino no ombro. Girei lentamente o rosto, então vi aqueles traços familiares que tanto me traziam euforia, deixei a arma cair no chão, não precisaria mais dela. Embora dominado pela felicidade inesperada, não pude deixar de me preocupar, sua fisionomia era tensa e retraída, ela estava envolta por um lençol que deveria estar num varal do quintal.
Assim como o tecido que a envolvia, sua pele também exibia manchas em vermelho vivo. Tentei argumentar, mas seus dedos tocaram meus lábios, num gesto claro para que eu guardasse silêncio. Ela me disse muitas coisas, a que mais agradou aos meus ouvidos foi ter a certeza de que estava voltando para mim. Confesso que fiquei preocupado com seus ferimentos, mas ela afirmou que logo estaria bem, a tentativa de machucá-la se mostrara infrutífera, procurei saber mais, no entanto tive minha curiosidade reprimida, e não quis entrar em novo atrito, não agora que a tinha de volta em meus braços.
Fiquei lisonjeado, e um pouco confuso, quando ela me disse que o corpo é um templo sagrado responsável por resguardar a essência vital, que na falta de um nome mais apropriado chamamos de alma. Por conta disso é errado maculá-lo com a impureza do chumbo, quando se pode encontrar um destino mais nobre para tal revestimento.
Ela me confessou que só pensava em mim quando me deixou, isso soou meio incoerente, mas a afirmação deveria ser encarada como fato concreto, como uma real preocupação. No entanto, nunca poderia passar por sua cabeça que eu fosse capaz de cometer um ato tão inconseqüente contra mim mesmo, e isso ela não poderia admitir, em hipótese alguma. Ainda mais depois de ter visto a minha aura com outros olhos, de uma maneira diferente, como nunca havia visto antes.
Ela havia voltado, só isso importava, eu não queria saber nada sobre o que tinha acontecido, ou sobre a maneira enigmática e estranha com a qual falava. O meu desejo era estar ao seu lado. Passaríamos a noite acordados, ao ar livre, ela ansiava apreciar a lua cheia comigo, como costumávamos fazer antes de tudo que havia ocorrido. De acordo com suas palavras, “antes de ter encontrado um outro alguém, antes de tornar-me uma nova pessoa”.
Não entendi o que ela quis dizer, mas pouca coisa havia entendido mesmo. Em meu peito só havia uma certeza, nada poderia ser pior do que não tê-la comigo, ou poderia?