Masoquismo
Masoquismo
Ele havia escolhido um carro muito bom para roubar, apesar daquele não ser um modelo esportivo. Tinha freios ABS, e um recurso de controle de estabilidade computadorizada, os quais já haviam tolerado muita imprudência até o momento, mas ele forçava o carro cada vez mais. E com ansiedade crescente.
Olhando pelo retrovisor, ele nem podia ver mais as luzes das viaturas da polícia. Comeram poeira facilmente. A vibração dos pneus rolando contra o asfalto chegavam aos seus ouvidos com total clareza. Os faróis apagados. Para que estragar a beleza da luz do luar? Aos seus olhos a pista parecia iluminada pelo Sol a pino... O ruído do possante motor de 3300 centímetros cúbicos, além da rápida passagem das árvores às margens da auto-estrada de mão dupla, davam-lhe uma nítida noção de velocidade.
Mais uma curva para a direita foi vencida com uma perigosa, mas precisa, derrapagem. Ele deu uma guinada sutil para desviar de uma pedra no asfalto. Quebrar o carro dessa maneira não estava em seus planos. A adrenalina despejada em seus sistema circulatório fazia o sangue ferver nas veias, aguçando os sentidos, acelerando os reflexos, alimentando a ousadia. Uma excelente prévia da verdadeira emoção que ele procurava.
Agora ultrapassou uma carreta no momento em que um outro automóvel vinha na direção oposta. Por dois centímetros não ocorreu um acidente grave, entretanto os dois retrovisores foram destruídos, um contra o outro carro e o da direita pela carreta. Ele olhou de relance pelo retrovisor achou graça ao ver aquele FIAT rodopiar desgovernado, imaginando o choque do motorista, que com certeza só percebera o vulto a mais de 190 km/h vindo na direção oposta após o choque que lhe arrancou o retrovisor.
Imediatamente a sua atenção se voltava para a condução do veículo, novamente. Nesse trecho da rodovia haviam vários declives e aclives, e ele via mais uma elevação a frente. Ele acelerou indo a 210 km/h e venceu a subida. Ignorou a placa da curva à esquerda, chegando ao topo com velocidade quase suficiente para tirar o carro do chão. Fez a curva. A estabilidade eletronicamente assistida se recusou a permitir que o carro se desgovernasse... “Diabo de suspensão boa!!!” Praguejou...
Tirou o cabelo castanho liso da frente dos olhos claros de pupilas dilatadas e examinou o percurso à frente: logo após a curva, um novo declive, seguido de um aclive acentuado. E entre os dois, uma extensa poça d’água acumulada, possivelmente da chuva que caíra a algumas horas atrás. “E aí?” Disse ele em voz alta, dando um tapinha no volante. “Será que você sabe esquiar?” E encostou o acelerador no assoalho.
O velocímetro mostrava 220 Km/h quando o carro atingiu a água, milimetricamente equilibrado. Ele se firmou no volante para não ser jogado para frente diante da severa desaceleração. E o carro esquiou maravilhosamente...
Ele via o fim da poça se aproximar com um misto de alívio e desapontamento, quando percebeu que a roda direita atingiu algo. Não conseguiu perceber o que foi, se um galho grande, ou uma pedra ou buraco oculto sob a água, mas a suspensão foi destruída no ato, e a direção irremediavelmente perdida.
O carro estava a 180 km/h quando começou a girar em sentido horário, deixando várias fagulhas incandescentes de uma roda pendendo e três faixas esfumaçadas dos pneus se arrastando no asfalto, mas o carro não capotou até atingir o meio-fio, quando então girou lateralmente duas vezes em pleno ar. Bateu no chão e passou a capotar ao longo do comprimento, hora batendo a traseira, hora a dianteira no chão.
Sem estar com cinto de segurança, o condutor foi sacudido de um lado para outro. Logo no impacto contra o meio-fio, ele quebrou o vidro do lado do motorista com o crânio, mas não foi arremessado para fora, por que se agarrou firmemente ao volante, que se envergou. Ao primeiro impacto do carro no chão, ele foi arrancado violentamente do banco, indo atingir o teto, o que lhe deslocou o ombro, esmigalhou a omoplata e o úmero do lado direito.
O giro louco do carro o jogava contra os bancos, contra o teto, contra as portas, o volante... Mesmo a abertura dos airbags não puderam impedir as múltiplas fraturas, pois todos eles previam que a pessoa estivesse presa pelo cinto de segurança.
Finalmente a capotagem foi detida por uma robusta árvore, que finalizou a sessão de deformações da carroceria achatando longitudinalmente a cabine, o teto e o capô. O carro ainda ficou parado em equilíbrio precário sobre o que restou da traseira, num semi-abraço com a árvore. Então caiu sobre os eixos.
O corpo moído do motorista estava preso nas das ferragens. Estava deitado com o peito sobre o encosto retorcido do banco do carona, e as pernas sobre o assento do banco traseiro com fraturas, inclusive expostas, espalhadas por toda sua extensão. O teto amassado o imobilizava. Depois dos curtos segundos estonteantes entre o acidente e sua atual condição, seu cérebro começava a receber informações de seus sentidos, principalmente dor... Muita dor.
Ele gemia de maneira entrecortada diante do turbilhão torturante que o atingia. Seu eu parecia se inflamar, se expandir até preencher o infinito. Seu coração batia com força, acelerado. Sua respiração se tornou rápida, espremida no pequeno espaço que restou para a caixa torácica se mover. Era um momento místico, para ele. Ele se sentia eufórico. Se sentia... Completamente vivo!
Um som alto de derrapagem anunciou a parada de um carro. Max, um homem de meia idade saiu estarrecido de seu carro popular, tirando nervosamente um telefone celular do bolso da calça jeans com uma mão e empunhando uma lanterna com a outra. Observou o estrago naquele carro enorme. Sacudiu a cabeça. “Jovem, com certeza...” Pensou.
Subitamente uma lufada de vento trouxe um cheiro familiar... Gasolina!
Sim. Estava vazando gasolina... Mesmo naquele estado lamentável, ele podia sentir... Agora só faltava...
Vulsh!!! Uma enorme labareda engoliu o carro acidentado. O homem de meia idade quase caiu para trás, com o susto... O telefone da emergência já havia atendido, e ele berrava a localização do acidente, dizendo a estrada e qual o quilômetro. “Vou deligar! Estou sozinho e o carro está pegando fogo. Vou apag... Ó, MEU DEUS!!! ALGUÉM ESTÁ VIVO LÁ DENTRO!!!”
Gritos altíssimos, e um braço para fora das ferragens em chamas, se agitando em desespero... Max largou o celular no chão, arrancou nervosamente o extintor debaixo do banco do motorista e correu para tentar o impossível...
Porém ele parou na metade do caminho, pois o que ele viu fez seu coração gelar.
Em meio aos gritos e as chamas, o teto do carro era forçado para cima por uma força enorme. Logo uma cabeça horrendamente queimada, com a pele se descolando, fez companhia ao braço que estava à mostra. Então o outro braço. O ser humano que estava sendo assado vivo colocou uma mão no teto, outra na porta e tirou o resto do corpo para fora, caindo no chão.
Em meio à alucinante experiência, o protagonista dessa insana corrida conseguiu ouvir o disparo do extintor... Depois percebeu que alguém o arrastava para longe do carro em chamas. Ele não gritava mais, porém o outro sim, e de dor, pois queimara suas mãos na sua carne quente. “Bendita solidariedade humana...” Pensou.
Permitiu-se deitar enquanto o homem que o tentava salvar pedia ao celular pelo amor de deus, para que alguém viesse logo... Esse homem ficaria com ele até o fim. E nem imaginara de quanta ajuda seria.
Tentou concentrar toda a sua atenção para as sensações de seu corpo. O sentia reagir vigorosamente desde o ferimento inicial. Os ossos partidos serem pressionados de volta para o lugar... A pele e carne imoladas pelas chamas se reconstruírem de dentro para fora, acompanhados de uma ardor que aliviava a dor cruel. Quando conseguiu separar as pálpebras que haviam sido soldadas pelo calor, viu o vulto embaçado do homem falando ao celular. Tossiu, para desobstruir as cordas vocais recém reconstruídas. Solícito, o homem se ajoelhou imediatamente ao seu lado.
“Não se preocupe, o socorro já vem. Ele diss... Aaaaaaaaaahhh...”
A pele e os restos da jaqueta de couro ainda eram quentes o suficiente para queimar, e por isso o homem gritou. Não pela mordida. Esta era indolor. Os gritos persistiram por poucos segundos, pois era enorme a avidez com que seu sangue era sugado para dentro do corpo do vampiro, que imediatamente o utilizava para desfazer os danos que a “brincadeira” da noite provocou.
Satisfeito, ele se pôs de pé, arrancando pedaços de couro carbonizados junto com porções de pele grudada neles, abrindo grandes feridas que imediatamente começavam a se fechar. Agora seus olhos estavam perfeitos novamente. Afastou-se do incêndio. Ficou durante alguns minutos olhando para as estrelas, permitindo que a brisa da noite lhe esfriasse o corpo. Olhou para o horizonte e viu as luzes dos radlights vindo da cidade mais próximas. Em pouco tempo estariam aqui. Ele agarrou o corpo do homem no chão, jogou no porta malas do seu próprio carro, sentou ao volante e fugiu.
Já bastava de diversão por esta noite. Agora era hora de se livrar do corpo e do carro. Tarefas a se cumprir ainda antes do Sol nascer. Então seria hora de descansar bastante, até ficar pronto para outra.
FIM
Siqueira, 28/12/2009