Quando o céu se abriu

Sentados na sala da central de processamento de dados, três jovens debatem acerca da divergência no estoque. Um supermercado desse porte gigantesco não pode trabalhar com uma diferença acima dos 10%, no último balanço foi constatada uma divergência de 17%, o gerente quase enfartou, a matriz cobra um ajuste imediato, os funcionários trabalhando sob pressão.

- O almoxarifado nunca dá baixa nos produtos que vão para a troca, vamos criar um sistema para isso.

- Com certeza é uma boa idéia. Outra coisa, tem que cobrar empenho maior dos encarregados, os funcionários muitas vezes jogam o produto no lixo sem dar baixa, aonde estão as pontas dos queijos e presuntos? A divergência dos frios e do açougue estão muito acima da média.

Um terceiro jovem ouvia atentamente e olhava do alto, através de uma grande janela, o supermercado apinhado de gente, carrinhos lotados, muito barulho, mas nada fora do normal para um sábado de noite, horário do pico semanal.

- Relatório semanal, quem vai tomar conta?

Antes do término da frase a luz se apagou, o supermercado inteiro ficou as escuras, gritos e risadas, nenhuma luz de emergência e o gerador devia estar sem óleo.

- O gerador está demorando a ligar.

Um minuto depois o som das portas sendo arriadas, norma da segurança para se evitar os furtos. Os três jovens ainda debatiam o assunto. Na gaveta, um deles tateou até encontrar uma lanterna e a deixou ligada para caso de precisarem sair da sala ou se locomoverem dentro dela. O ar começou a ficar abafado, os No break se encarregaram disso, sem o ar-condicionado aquela sala em breve iria ficar insuportável, talvez apenas por mais tinta minutos, era o tempo das baterias descarregaram completamente.

Um dos jovens abriu as janelas e as portas.

- Muito bom ar puro.

Os murmúrios começavam a aumentar, pessoas indignadas esperavam por respostas para o apagão. Os seguranças tentavam acalmar o povo e ao mesmo tempo os impedia de sair do supermercado, várias dessas pessoas, obviamente com muitas compras embaixo da roupa. Quando o dono sai ed casa, os gatos vão as forras, é o que diz o ditado.

Do lado de fora, o céu começou a se abrir, como se um zíper invisível estivesse deslizando e abrindo o fecho. Assim, com um misto de cores, sons estranhos e ruídos abafados, uma população em glória olhava vislumbrada para aquilo. Pessoas cutucavam as outras, aquele que dormia é acordado pelo filho: “Veja, veja papai”.O triste abre um belo sorriso e a idosa levanta os braços gordos esperando que fosse levada para o paraíso, alguns fiéis numa igreja perto, ficaram ajoelhados pedindo perdão pelos seus pecados, Jesus estava voltando para o seu tão aguardado julgamento. A escuridão era total, nenhuma casa tinha iluminação, todos os postes apagados, sem nenhuma luz a cor do céu ganha um brilho especial, as estrelas se mostram mais ousadas, brilhando para os espectadores mundanos. A visão era como se você estivesse deitado na grama de uma fazenda isolada do mundo, olhando a dança estática das estrelas. O ruído começou a aumentar, uma mão cadavérica apareceu através da fenda que se abria, quando os primeiros gritos assustados ecoaram na noite.

Pequenas rachaduras começaram a aparecer na base de alguns prédios, a terra sambava, as placas estavam se ajustando, o princípio do terror. Ações estranhas se encontravam em pequenos pontos, um poste que girava sozinho, depois de tanto girar foi lançado aos céus, como um foguete que tivesse acabado de deixar alguma base. Um casal no carro, não teve tempo de abrir a porta, um buraco se abriu e foram tragados. A multidão corria desesperada, se acotovelavam, estavam em completo desespero. Quando o céu se abre sem mais nem menos, a ordem no mundo se perde, é o que acontecia nesse exato momento nessa ínfima parte do globo. A multidão se assustou ainda mais, quando com passos gigantescos, ele saiu da fenda, esmagando carros e pessoas, seguido por uma pequena horda de selvagens famintos. Os três jovens ainda não sabiam da falta da ordem, mas algo eles sabiam que estava fora do normal.

Gritos aterrorizados agora eles podiam ouvir, tinha chegado ao supermercado. Gôndolas voavam, pessoas eram lançadas para todos os cantos, os jovens não entendiam o que se passava lá embaixo, o portador da lanterna dirigia jatos de luz em busca de uma explicação, eles só conseguiam enxergar prateleiras, produtos e pessoas voando, mirando em alguns pontos eles viam poças enormes de sangue.

- Mas o que diabos está...

Não conseguiu terminar a frase, foi arrancado pela janela, nem um grito conseguiu emitir, a ação foi muito rápida. Os dois amigos se entreolharam sem entender, gritaram o nome do amigo, iluminaram todos os cantos do supermercado e nada dele.

- Fudeu, vamos morrer.

- Porra, cala a boca, não seja pessimista.- Falou o que tinha a lanterna. – Vamos ficar aqui quietinhos, seja lá o que for talvez vá embora.

Eles tentavam racionalizar a situação, viajar nos planos de fuga mais incríveis, algo sempre acontece lhe obrigando a mudar de idéia, nesse caso foi um torso, ele veio voando e quebrou a janela, o jovem iluminou e chocado percebeu que era do seu amigo, eles eram os únicos que usavam esse tipo de camisa, mesmo com muito sangue e tripas, era possível ler: C.P.D. escrito nela.

Um dos jovens saiu correndo assustado da sala, o outro da lanterna o tentou conter, mas não conseguiu, foi correndo atrás iluminando o caminho. O jovem entrou no banheiro no final do corredor e fechou a porta, deixando o da lanterna do lado de fora: “filho da puta”, pensou, chegou a bater três vezes na porta, em vão. Oito segundos, foi o tempo suficiente para um se dar conta que fez a escolha errada, a parede do banheiro foi destruída e o jovem levado. Desesperado, o jovem da lanterna vinha correndo de volta para a sala do C.P.D, mas os barulhos que vinham dela não eram encorajadores, começou a sentir que alguma coisa vinha o perseguindo, sentia uma presença maligna, correu freneticamente enquanto sentia um frio na nuca, sabia que estava vindo para o matar, se aproximava rapidamente. Chegou na grande porta que dava acesso as salas da administração, enfiou a mão no bolso e tirou rapidamente a chave, abriu a porta e a fechou num piscar de olhos, quando algo se chocou contra ela.

A balbúrdia começava a diminuir, não se ouvia mais gritos, o jovem com sua inseparável lanterna iluminava o caminho, ofegante via horrorizado corpos de seus antigos companheiros de trabalho dilacerados no chão, via corpos de clientes também. Um ainda respirava, mas sem as pernas e com as tripas de fora, não iria sobreviver por muito tempo. Correu para fora do supermercado, as paredes tinham sido destruídas, mais pessoas mortas e um céu que tinha uma abertura.

Um vento incessante fez uma bagunça com o seu cabelo, sentiu novamente a presença do mal, rezou em silêncio, se abaixou esperando a morte que não veio. Levantou os olhos, o gigante demônio apontou o dedo para ele, a horda o seguiu, e como se o céu fosse um grande fecho, usou novamente o zíper, dessa vez para o fechar.

Quando o céu se abre, o mundo perde a ordem, dessa vez o céu iria se abrir em outra parte do globo, transformando a ordem em caos.