ÍDOLO DE ÍNDOLE INDOLOR
Compôs mais uma música. Mas esta não era só mais uma música, dessas que se põem em miolos de discos e ninguém dá tanta importância, nem um grande hit que o ajudaria a conquistar mais prêmios e engordar ainda mais sua conta bancária; era mais do que especial: feita para as comemorações do aniversário de quarenta anos de seu grande ídolo, De Profundis ( pseudônimo extraído do título da obra de Oscar Wilde. Apesar de roqueiro, revelava-se um intelectual de mão cheia, de gosto requintado, a começar pela escolha de seu novo nome. O real era Joaquim. Qualidades percebidas por seus milhões de fâs.) Tudo estava perfeito, as guitarras, o coro, as cordas, mas não o cantor. Precisava de alguém que cantasse e tocasse como seu ídolo. Decidiu que só e somente só o seu ídolo poderia cantar a obra feita em sua homenagem, era perfeccionista e turrão, teimoso, desses que quando enfiam uma coisa na cabeça, nada e ninguém o faz desistir ou adiar uma decisão. Acontece que o homenageado já tinha passado desta para melhor. Como convidá-lo? Se ainda houvesse um telefone, uma Internet no além, um programa de computador que registrasse seus timbres e depois se pudesse manipular a voz, colocando-as no midi. Mas não. Teria então que arranjar uma solução:
Convidou imitadores, artistas que faziam cover do De. Cada um foi passando por seu exigente crivo e infelizmente e obviamente, nenhum deles atingiu o resultado almejado. O tempo estava passando e faltavam só três dias para o espetáculo. Teve uma ideia:
iria procurar um centro espírita. Talvez seu ídolo baixasse em algum cavalo...
Procurou centros de todas as espécies, desde os mais pobres, até os mais ricos. Só encontrou quem psicografasse, ninguém emitia a voz poderosa de De. Num desses dias, em um terreiro, um maluco pegou uma faca e o tentou matar, mas foi contido, antes profetizou:
- Você vai desencarnar dentro de dois dias e vai para o inferno!
Faltava apenas um dia e o maestro não escondia seu nervosismo e preocupação. Teria que se render às circunstâncias e contratar um outro bom cantor, pois já o haviam pagado, um valor muito alto, pertinente ao seu status.
Lá por três horas da manhã alguém bate desesperadamente à porta. Levanta da cama sobressaltado:
- Quem é?
- Sou eu!
- Eu quem?
- De Profundis!
Abriu a porta, meio desconfiado, e viu que era realmente o artista. Perguntou:
- Que honra. Por que veio parar aqui? E não entrou direto em casa?
- Pessoas educadas batem à porta! Amigo, minha missão é vir te buscar. Sei que não mediu esforços para me homenagear, mas está perturbando a minha paz, quero atingir um outro plano e não consigo sair deste. Os fãs não me deixam. Minha sorte é ter um nome de batismo. As pessoas não gostam muito do Joaquim, gostam de uma fantasia que é o De Profundis. Já que provou ser na terra a pessoa que mais me amou e ama, está pronto para me ajudar nessa tarefa. Venha comigo, agora!
Enfim, largou imediatamente todos os seus afazeres, agarrou firmemente a mão do outro, não olhou para a casa rica, seus objetos, seus prêmios. Deixou para trás todo o seu passado glorioso e seu corpo
inerte no chão da sala principal.